O mundo podia ter nascido aqui

Cusco

A terrar. Respirar. A respiração é importante aqui, neste lugar a 3400 metros de altitude, onde o ar pesa, os movimentos se tornam mais lentos e o tempo assume a sua relatividade. Um dia é o que temos para explorar Cusco, outrora capital do império inca, fundada no século xv por Pachakuteq, o nono inca, que nos recebe de braços abertos à entrada da cidade, dando a ver, quase 500 anos depois da chegada dos espanhóis, que a terra pode ter sido conquistada, mas o povo não. A Avenida do Sol deixa para trás casas de tijolo, cartazes kitsch de partidos políticos e construções precárias, tão ao jeito da América Latina, para nos conduzir ao berço da civilização inca.
A primeira paragem é na Casa Cartagena, hotel boutique e spa cujas paredes ancestrais pertenceram a uma nobre casa colonial e deram guarida a Pablo Neruda e a Che Guevara. Ali ficaríamos para sempre não fosse lá fora, a uns metros de distância, estar à nossa espera um local classificado pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade. Já vamos. Antes há que fazer a adaptação à altitude. Meia hora de repouso, um chá de coca e, para os mais sensíveis ao mal das alturas, uns sorojchi pills, anunciados em outdoors logo à saída do avião. Não ter pressa e respirar lentamente também ajuda.
Comecemos então a construção do puzzle. Faltarão sempre peças: Lima, Arequipa, Puno, lago Titicaca, Iquitos, só para referir as mais fáceis de encontrar. O Peru é um país imenso, de geografias, gentes, culturas e até línguas muito diversas, cinco mil anos de história e uma gastronomia riquíssima que anda agora nas bocas do mundo. E é isso mesmo que este país, que se reinventa, quer. Estar nas bocas do mundo. Dar-se a conhecer. Ser visitado. Façamos-lhe a vontade. Por nós, seguiríamos deambulando pelas ruelas da cidade velha de Cusco, todas elas começando ou desembocando na Plaza de Armas, umbigo do umbigo do mundo, mas Willy, o nosso guia cusquenho, é implacável.

Todas as ruas da cidade velha de Cusco vão dar à Plaza de Armas. É preciso tempo para as explorar. E perceber que há vida além da história e das atrações turísticas.

A lembrar o Wally (embora nós saibamos sempre onde está Willy, ele faz questão), olhos perscrutadores que nem os óculos disfarçam, tem uma história fabulosa para contar. Conta-a todos os dias, o dia todo, parece não se cansar de a repetir, e quer ser ouvido. Mas concede um momento com a velhota pequenina de vestes típicas peruanas – saias rodadas pelo joelho, jaqueta, xaile colorido, montera na cabeça – e um lama pela trela, estrategicamente posicionada na Plazoleta Nazarena, a caminho da praça central.
A troco de alguns soles, a que estende a mão após cada disparo da máquina fotográfica ou do smartphone, deixa-se fotografar com os turistas que passam naquele que é um dos lugares in de Cusco, onde estão situados hotéis e restaurantes de luxo e sofisticadas lojas de artesanato e prata. Descobriremos, daqui a pouco, muitas outras personagens, igualmente fotogénicas, espalhadas pela cidade, ganhando a vida assim.

O turismo é por aqui a principal atividade. «Mais de 70 por cento dos cusquenhos vivem direta ou indiretamente deste», explica Willy, enquanto caminha em direção à praça central e se prepara para iniciar a sua preleção sobre as pedras seculares que serviram de matéria-prima aos edifícios: «Isto foi construído pelos incas, aquilo foi construído pelos incapazes», diz, referindo-se aos colonizadores. O ódio a Francisco Pizarro, e aos seus homens, é também ancestral. Está claro até na Catedral, mandada construir por este em 1559 sobre o palácio do inca Viracocha, numa demonstração de força que levou mais de cem anos a ser concluída e que é hoje o ex-líbris de Cusco. Lá dentro, onde as fotografias não são permitidas, a respiração volta a faltar diante da católica opulência em ouro e prata, mas o que fica na memória são sinais de resistência, como a Virgem Maria, representada como Pacha Mama (Mãe Terra), o Cristo (negro) da Boa Morte ou a valiosa coleção de arte cusquenha, pontuada por uma Última Ceia, pintada por Marcos Zapata no século xviii, em que o prato principal é cuy assado (porquinho-da-índia, comida típica da gastronomia peruana) e Judas tem o rosto de Francisco Pizarro. «Entre os símbolos da religião católica estão símbolos andinos: a Pacha Mama, o altar a Viracocha, deus criador do universo inca. Estão aqui há quase 500 anos a mostrar que a filosofia andina é mais forte do que a religião católica. Quiseram retirá-los, mas a população juntou-se para o impedir», diz Willy, que dali nos leva a Qorikancha ou Templo do Sol ou Convento de Santo Domingo. Terá sido aqui que Manko Qhapac, o primeiro inca, se fixou com a sua irmã e mulher Mama Ocllo, no século xi, tendo mandado construir um templo ao Sol, templo maior do império inca, que Pachakuteq reedificou e rebatizou de Qorikancha, cercado de oro. E apesar de, desde 1534, ser um convento dominicano – foi doado por Juan Pizarro, irmão de Francisco, a quem calhou em partilhas, à Ordem dos Predicadores (dominicanos) –, é em torno do Sol e da forma como os incas viam as estrelas, o cosmo e o universo que é mostrado.

A Catedral, o Convento de Santo Domingo, o típico Bairro de San Blaz ou o Mercado de San Pedro são lugares a não perder.

E agora já podemos deambular? Sim, mas com rédea curta. Pelas ruas e vielas inclinadas que nos levam a almoçar ao Pachapapa, no bairro (alto) de San Blaz, zona de artistas e artesãos, que merece mais tempo de fruição, conseguimos apanhar pedras de um chão que não é nosso e olhar melhor quem connosco se cruza. Mulheres e crianças (homens não, porque será?), em vestes tradicionais de cores garridas, miúdos que saem do colégio à hora de almoço fardados de branco e grená em desordenada fila indiana, turistas que se atropelam a tirar fotografias, adolescentes morenas (aqui são todos morenos) em conspiração, velhotes sentados em bancos de jardim. Os dias passam devagar nesta cidade, mas torna-se óbvio que precisávamos de mais do que um dia para a viver. Ver não chega. À porta do restaurante, um rapaz vende pinturas, suas e de outros companheiros da escola de artes que diz frequentar (ou ter frequentado, a memória falha). Apesar de perceber que não terá clientela, não desarma e começa a contar a história de San Blaz, o bairro mais antigo de Cusco. Parece haver um potencial guia turístico em todos os cusquenhos. Não é cuy assado o repasto, embora alguns rodem no espeto que está no centro do pátio onde almoçamos. Mesmo que houvesse coragem para provar porquinho-da-índia, não é possível. Só por encomenda. Um alívio para a consciência de quem faz da curiosidade profissão. A carta é variada e até incluí pizza e pasta, para os menos aventureiros, mas não exageremos, aji de pollo, chicharrones e lomo de alpaca para partilhar. O incontornável ceviche fica para o jantar, no Limo, sofisticado restaurante de fusão na Plaza de Armas, na antiga casa do inquisidor, ao qual nem todos os convivas tiveram fôlego para chegar. Até lá ainda há muito que andar. E antes que voltem a encarrilar-nos no circuito turístico, exigimos um desvio.

Casa Cartagena, hotel de luxo que foi outrora uma nobre casa colonial.

No Mercado Central de San Pedro há poucos estrangeiros. É aqui que se abastecem os cusquenhos e é aqui que sentimos que nem só de história vive este povo. Deambulamos por fim, sentindo os cheiros, ouvindo as vozes em conversas cruzadas, por entre sacas, geometricamente organizadas, de frutos e legumes e batatas (no Peru há mais de três mil variedades) e milho e quinoa e leguminosas e frutos secos e chás. Também há tecidos, roupas, quinquilharias, artesanato. E peixes, mariscos, frangos, pintos, porquinhos-da-índia (coitados). E bancas que servem refeições. Pode almoçar-se, lanchar-se, jantar-se. Muitos arriscam. E provavelmente bem. Nós não temos tempo, a próxima paragem é o Miradouro de Santa Ana. Para lá chegarmos passamos pelo distrito de Santiago, a zona mais pobre da cidade. Fora de questão sair do autocarro. Pela janela um relance da vida destas pessoas que raramente vão à cidade velha. Só alguns, talvez aqueles que posam para as fotografias dos turistas e que também estão no miradouro, como um miúdo pequeno e um lama. Sucesso garantido. Como o é a vista que daqui, deste alto, se tem sobre o tal umbigo do mundo. Falta pouco para o pôr do Sol, mas não podemos perder a cabeça: Saqsayhuamán. Diz-se que Cusco foi desenhada, por Pachakuteq, em forma de puma. Saqsayhuamán é a cabeça. Fortaleza militar e centro administrativo e intelectual, é tida como uma das maiores obras arquitetónicas incas. No entanto, mais do que a construção, até porque foi usada pelos espanhóis como «pedreira» para a reedificação de Cusco colonial, o que impressiona é a harmonia de terra e pedras, silêncio e luz. Posto o Sol, é tempo de regressar ao hotel. A tentação de não voltar a sair é grande, mas há compras que têm de ser feitas, antes do jantar, e a rua que desce da Plazoleta Nazarena para a Plaza de Armas é um verdadeiro centro comercial (se bem que, na verdade, as compras possam – e devam – esperar por Lima, mas disso falaremos noutra edição). Não fosse o dia seguinte começar de madrugada para apanhar o comboio para Machu Picchu e depois do jantar beberíamos um copo no Norton’s Bar, num primeiro andar da Plaza de Armas, que desde manhã nos anda a piscar o olho, ou dançaríamos no Mama Africa, ali ao lado. Faltou a respiração. Talvez dancemos em Machu Picchu.

Nem todos têm fôlego para a noite de Cusco, mas o Norton’s Bar ou o Mama Africa, na praça central, são tentadores.

 

Texto de Catarina Pires - Fotografias de Leonardo Negrão/Global Imagens
Reportagem completa na edição de março 2015 - n.º 245
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