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Ponto de vista

Amesterdão

Há uma passagem da história de Portugal que vive no cemitério judaico português, em Ouderkerk aan de Amstel. A página que não morre, nem mesmo num sítio adequado a falecidos, estende-se ao período que vai de 1536 a 1821, Inquisição, e aos anos que antederam a persecução protagonizada pelo Santo Ofício. O Édito de Expulsão expedido por Dom Manuel I, em 1496, acabaria por ser rescindido, mas com facas: proibiu a emigração e procedeu a Conversão Geral, efectiva e por decreto. A Matança da Páscoa, dez anos depois, incentiva nova diáspora judaica aos cristãos-novos. Uns dirigem-se para o Sul de França, outros transitam pela Flandres, um menor número segue para Itália, alguns vão para o Império Otomano, e muitos optam pela Holanda.

Em Amesterdão, o fundamental porto livre, usufruem da liberdade religiosa que lhes havia sido amputada pela política do reino e edificam uma florescente comunidade que se destacou no século xvii. As palavras de Jorge Patrão, secretário-geral da Rede de Judiarias de Portugal (RJP), a entidade que promoveu uma viagem inédita para marcar os 400 anos da edificação da necrópole judaica mais antiga daquele país, traziam uma intenção de eternidade: «Nós viemos de Portugal com o intuito de assinalar os 400 anos deste cemitério, homenagear os portugueses coagidos ao exílio e também trouxemos um pouco de terra da nossa terra.» Que se excluam os simbolismos; uma oliveira de raiz alentejana medrará na entrada onde repousam gerações de portugueses. A árvore que a botânica sentencia que o seu crescimento é moroso, mas em compensação assegura-lhe longevidade abissal, foi plantada pelas mãos de quem presenciou o momento: a presidente da Câmara de Amstel, membros da Fundação David Henriques de Castro, o rabino da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão (1), a comitiva que saiu de Portugal: o presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, representantes da comunidade israelita de Lisboa, o rabino de Belmonte, a responsável da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» e o presidente da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos. Faltou a representação da embaixada de Portugal na Holanda. Não lhe sobrava agenda para nenhuma iniciativa fomentada pela entidade cujo objectivo é valorizar o legado judaico e cristão-novo.

Em 1996, António Guterres foi a Amesterdão entregar o documento que revogava o Decreto de Expulsão dos judeus.

De Portugal saíram há tantos cem anos os descendentes de alguns elementos do Santo Serviço, o coro da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão, formado em 1886 e que, até à II Guerra Mundial, tinha uma centena de sopranos. A quase totalidade não sobreviveu à matança nazi. Um dos cantores, de apelido Cassuto, português de sangue, conta que o restabelecimento só aconteceu em 2003 e que o reportório musical enche-se de canções tradicionais. Do idioma ancestral só sabe dizer, e com dicção irrepreensível, «amigo», «saudade», «obrigada» e «meu Portugal». Nos cemitérios, afinal, não só se enterram pessoas e se visitam as tumbas – canta-se. Que se entenda: para os sefarditas, os campos-santos não representam endereços definitivos de morte. Terá sido neste pressuposto que o emblemático cemitério acolheu a denominação hebraica Beit Haim, cuja tradução tenta confirmar que o tempo de um homem não expira no dia do seu funeral: Casa da Vida.

A origem do terreno de quatro hectares, elevado a património protegido no World Monuments Fund e Monumento Nacional Holandês, acha-se intrinsecamente associada à criação e ao desenvolvimento da próspera agremiação fundada por portugueses judeus expulsos ou, pseudoconvertidos à força, que regressaram à sua religião primitiva. Viveram com querida liberdade e cimentaram caule na, então, aclamada capital da tolerância. A condescendência haveria de ter uma única reticência. Apesar de o primeiro sepultamento não ter causado mal-estar na população – o corpo de Joseph Senior, uma criança de 7 anos, recebeu compaixão da vila –, meia dúzia de habitantes de Ouderkerk aan de Amstel não queria cadáveres judeus nas imediações. O governo local não deu, sequer, meio tímpano às queixas e, em Maio de 1614, autorizava a congregação a sepultar os seus defuntos.

Quatro séculos atravessam o ano da inauguração do lugar que abriga 2700 campas. É preciso mergulhar os pés no piso lamacento para descobrir copiosas inscrições tumulares que vincam o coração daqueles que foram forçados a largar Portugal sem que nunca Portugal tenha emigrado das suas consciências. Debaixo da pedra repousam, por exemplo, o pai do filósofo Benedito Spinoza, Miguel Spinoza, natural da Vidigueira; Sara Abendana – a mãe de Maria Nunes, a primeiríssima portuguesa judia em Amsterdão; Efraim Bueno, o médico nato de Castelo Rodrigo que Rembrandt pintou; o albicastrense Elias Montalto, esculápio da rainha de França; Maria de Medicis; Manuel Dias Soeiro, aliás, Menasseh Ben Israel, lisboeta levado em criança para a Ilha da Madeira, pioneiro da imprensa na Holanda e o rabino que, em 1651, convenceu Oliver Cromwell a fazer regressar à Inglaterra judeus que, desde o reinado de Eduardo I, estavam interditos de calcar chão britânico; Isaac Aboab da Fonseca, de Castro D’Aire, um dos líderes espirituais da comunidade, o inicial rabino das Américas, amigo de padre António Vieira, poeta pungente e o mentor da Grande Sinagoga Portuguesa em Amesterdão (1) e, que chegou a ter três mil fiéis.

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Consagrada a 2 de Agosto de 1675, a construção que ocupa quase um quarteirão segue o conselho talmúdico de que a Casa de Oração deve ser mais alta do que os edifícios à sua volta e contém componentes arquitectónicos do Templo de Jerusalém. As suas 72 janelas em arco consentem a instilação de fulgor natural e, à noite, mil velas instaladas em 26 lustres de bronze polido e em castiçais dispostos nos bancos iluminam o salão medular. Pelo facto de ser mantida a tradição de recusar energia, e porque a temperatura invernosa concorre com a da Sibéria, os serviços religiosos só se realizam nas festas judaicas. O costume de não usar electricidade salvou a sinagoga de não ter sido o centro de deportação; os nazis concluíram que o local não era adequado. Poupada milagrosamente da fúria hitleriana, reabriu a 9 de Maio de 1945, e ao término do Holocausto, na Holanda, dos 140 mil judeus restavam 20 mil, dos quais 800 sefarditas. Com frio ou não, a porta não fecha; abre para concertos e o bilhete adquirido no Museu Judaico (2) dá acesso a uma visita.

A Grande Sinagoga Portuguesa em Amesterdão chegou a ter 3000 fiéis. Hoje, a comunidade é de 350 pessoas.

Joël J. Cahen provém da família Rodrigues de Miranda. A meio do percurso saem-lhe vocábulos da pátria dos seus antepassados para explicar que as pequenas casas térreas que separam da via pública a propriedade central da sinagoga basilar, outrora residências de famílias judias, constituem o bairro judaico, inserido no roteiro cultural da cidade. Naquela que já representou a maior sala de estudo pertencente à Etz Haim (Árvore da Vida) – sociedade religiosa criada em 1637 para apoiar e financiar o estudo do judaísmo – instalou-se, em 1953, uma pequena sinagoga, denominada Sinagoga de Inverno, aquecida e com a luminosidade que advém da invenção de Thomas Edison. No serviço matinal do Shabat – Sábado – assistiu-se ao protocolo habitual entre uma comunidade de cerca de 350 correligionários: os administradores da sinagoga vestidos a rigor de cartola, preces enunciadas numa pronúncia sefardita típica de Amesterdão, e uma curiosidade: a prevalência do emprego ilimitado da língua portuguesa. As suas paredes estão forradas com quadros com os nomes dos benfeitores da irmandade.

Fácil reconhecer o tronco da base genealógica: Spinoza, Henriques, Pinto, Fonseca, Barbosa, Pereira, Teixeira, e Rodrigues, Silva, Vaz Dias, Mendes da Costa, Peixoto, Ferro, Chaves. E tantos outros. De modo igual constava Guterres, e quiçá esta ramificação estará ligada ao alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, presente por acompanhar a esposa, a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa. A sessão evocativa dos 500 anos do Decreto de Expulsão dos judeus de Portugal ocorreu na Assembleia da República durante o seu governo, e o próprio António Guterres, em 1996, veio de Lisboa a Amesterdão para entregar na biblioteca Montezinos Etz Chaim (3) o documento que revogava o Decreto da Expulsão. Classificada Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, a colecção da biblioteca que remonta a 1616 é impressionante. Reúne 560 manuscritos e possui trinta mil livros. Pelos nossos olhos passaram um corredor de relíquias encadernadas, livros redigidos em português no pergaminho, a Hagadá (texto utilizado para os serviços da noite de Pessach, Páscoa), de Amesterdão, e a sentença decretada pelos juízes do Tribunal Rabínico da comunidade Talmude Torá (Estudo da Lei) a Benedito Spinoza, o Herem – excomunhão –, esse medonho acórdão ortografado, claro, em português. No Verão de 1656, os seus postulados a respeito de Deus em sua obra foram motivo para que o filósofo fosse reprovado. O pensador que imeditamente propôs a interpretação histórica dos textos bíblicos morreria a 21 de Fevereiro de 1677 e o seu corpo vencido da tuberculose jaz em Nieuwe Kerk, em Haia, a 47 quilómetros de distância do pai.

(3) Biblioteca Montezinos Etz Chaim
(3) Biblioteca Montezinos Etz Chaim

Uma mulher com memória
Miriam Assor nasceu em Lisboa, estudou Comunicação e Psicologia, trabalhou na companhia aérea EL AL, colabora com vários periódicos na condição de jornalista feelancer e tem obras literárias publicadas. A escrita começou no semanário O Independente e, desde então, essa tem sido a missão principal. Viajar, muito, e se possível em direção ao Mediterrâneo e ao Médio Oriente. Amesterdão, que lá está tão bem na Europa Ocidental, foi uma inesperada surpresa: o Sol tímido arranja sempre forma de se prender à cidade de todas as liberdades.


A pedido da autora, este texto é publicado sem as regras do novo Acordo Ortográfico.

Texto de Miriam Assor
Ponto de vista da edição de maio 2015 - n.º 247
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