Jordaan

Surgiu no início do século XVII para alojar emigrantes e trabalhadores das classes mais baixas da sociedade. Rembrandt passou aqui os seus últimos anos, foi palco da resistência holandesa aos nazis, sofreu uma profunda renovação na década de 1970 e é hoje um dos bairros mais procurados e caros de Amesterdão. Em Jordaan, no centro da cidade dos pecados, encontrámos um bairro onde apetece viver.

Qualidade de vida

É o bairro onde fica a casa da Anne Frank. Talvez seja esta a forma mais direta de explicar a localização de Jordaan, já que o local onde viveu a menina judia continua a ser um dos espaços mais visitados de Amesterdão. A funcionar desde 1960 como museu e testemunho do horror da II Guerra Mundial, já recebeu mais de 30 milhões de visitantes, 1,2 milhões em 2014, o recorde anual de entradas. E é este o ponto de partida para descobrir o bairro da moda em Amesterdão.

As filas prolongam-se por dezenas de metros e de minutos a qualquer hora do dia. E os visitantes não desarmam. Há quem opte por fazer marcação via internet e evitar as filas, mas a maioria aguenta à beira do Prinsengrach (canal do Príncipe) e junto à Westerkerk, a Igreja Ocidental com a sua torre de 87 metros, a mais alta de Amesterdão. Do topo (7,50 euros a subida dos 180 degraus, entrada gratuita na igreja), a visão dos vários canais é ainda mais recompensadora. Algures por baixo da igreja estarão os restos mortais de Rembrandt van Rijnn (1606-1669), um dos mais talentosos pintores holandeses. Consta que se terão perdido no tempo os registos da sua presença, mas é assumido que Rembrandt ficou no bairro onde passou os últimos anos da sua vida. O pintor mudou-se para Amesterdão em 1631 e três anos depois casava-se com Saskia, a filha do presidente da câmara, ou o equivalente à altura. Em 1639 compraram casa no bairro, mas três anos depois Saskia morreu deixando um filho, Titus, de 8 meses. Dificuldades financeiras levaram-no a mudar-se para uma casa mais pequena. Era o tempo em que os artistas começavam a ter estúdios em Jordaan e abriam cada vez mais lojas de artesãos. Hoje, no número 184 da Rozengracht ainda há a referência à casa de Rembrandt, o homem que antes do último suspiro ainda viveu a tragédia de ver morrer o filho e a neta.

Todos os dias, milhares de pessoas fazem fila à porta da casa-museu de Anne Frank. Mais de 30 milhões já a visitaram desde a abertura em 1960. E muitas mais virão.

Esses tempos em Jordaan eram de trabalho, de cultura e de alguma boémia. A cidade tinha começado a ser povoada em 1612, maioritariamente por emigrantes e trabalhadores de ofícios (carpintaria, alfaiataria, o trabalho do ferro e do cabedal). Até ao século xix a população não parou de aumentar, a cidade cresceu e começaram a surgir as bolsas de pobreza e a contestação. Os ideais de Karl Marx ganhavam força entre as classes trabalhadoras e, num domingo de excessos e de festa popular em 1886, a polícia foi chamada a intervir e 26 habitantes locais foram mortos. Jordaan não era um bairro fácil. A II Guerra Mundial e a ocupação alemã trataram do resto. Os judeus foram perseguidos e os clubes de boxe deram luta aos invasores, que em fevereiro de 1941 iniciaram os raides bairro dentro. A população juntou-se, saiu à rua e fez greve num dos poucos episódios deste conflito em que os homens de Hitler foram enfrentados pelos judeus. O resto da história é conhecida. A família de Anne Frank tentou esconder-se, mas acabou por ser denunciada pela vizinhança e enviada para o campo de concentração de Auschwitz.

O hotel Aitana (aitana.room-matehotels. com) está a cinco minutos do bairro de Jordaan, no porto de Amesterdão, com vista para a água e para a cidade.

A solução para Jordaan surgiu na década de 1970, com a remodelação desta área da cidade: construção, modernização, planeamento urbano. Chegaram estudantes, jovens empresários e voltaram os artistas – novos – a fazer lembrar os seculares. Veio gente de todo o mundo. Entre os que chegaram, veio Tozé Maia, 52 anos. «Tinha 25 quando Cavaco cortou nos subsídios aos jovens e resolvi emigrar. Pensei nos EUA, mas encontrei um casal amigo que morava aqui e vim.» Trabalhou na companhia aérea KLM como fresador mecânico, depois da experiência da distribuição de café em Portugal, em Vila Franca de Xira, onde cresceu. Vive num apartamento junto aos canais, mas é na Haarleemerstraat que passa a maior parte do dia. Não na rua, mas na Casa Bocage, a mercearia portuguesa que abriu há 13 anos na principal artéria de comércio do bairro. E já estendeu o negócio a Barcelona e à distribuição dos produtos. Tem tudo: pastéis de nata (os reis do pedaço), pastéis de bacalhau, café à nossa moda, conservas, azeite, vinhos, compotas, temperos, tudo o que for preciso para pôr de pé uma refeição portuguesa. E quem mais o procura são holandeses. Ou portugueses que andem em viagem, como foi o nosso caso. Tozé será o cicerone. Só pode ser ele, foi a primeira loja onde entrámos e, como diz o povo, não há coincidências.

Esta é uma cidade onde não faltam turistas. Em Jordaan nem tanto, mas o bairro ganha fama de forma muito rápida.

À direita da Estação Central, no emaranhado de ruas e de canais, ergue-se desde o início do século xviii um bairro especial. Descubra-o connosco.

Na mesma rua, umas centenas de metros antes ou depois do refúgio português – depende do ponto de partida – há uma loja de fotografia que tem à venda grandes clássicos e máquinas modernas, tripés e lentes, sacos e mochilas, tudo o que tem que ver com mundo desta arte. Não resistimos e entramos. O dono, holandês, fala inglês com um sotaque tão carregado que mais de metade das palavras se perdem pelo caminho. Conseguimos perceber que tem a loja há 45 anos, quando um apartamento no bairro custava qualquer coisa como 25 mil euros. Hoje, estão a 1,25 milhões… «É uma grande diferença, diz-nos. Em tudo, não só no dinheiro, mas na segurança, na qualidade de vida – tudo aumentou.» Dizem os comerciantes da área que esta é a principal rua de delicatessens da Holanda.

Basta sair para o passeio para perceber do que se fala. No outro lado da estrada, sempre cruzada por gente apressada montada em bicicletas, está o Grape District, uma loja cujo nome não engana. Há vinho por todo o lado. Umas dezenas de metros adiante a Dutch Homemade, um pequeno paraíso para quem gosta de chocolates e macarons. E os amantes do petisco também não se vão sentir mal. É que na mesma rua há a Ibericus, a mais importante loja da Holanda na venda de presuntos espanhóis (provavelmente os porcos são criados e alimentados em Portugal…). É difícil fugir a tantas tentações, mas Tozé Maia leva-nos para o coração dos canais depois de mais um café e uma água com gás.

Diz que o nome do bairro deriva do francês jardin, tal a quantidade de flores e jardins que os habitantes gostavam de manter dentro e fora de casa. Hoje, a tradição mantém-se e há pátios nas traseiras e no meio dos prédios à espera de ser descobertos. Esse é mais um atrativo deste aglomerado de ruas à direita de quem sai da Estação Central e que se estendem, paralelas, à Praça Dam, o coração de Amesterdão. Turistas, além dos que vão à casa de Anne Frank, só os que procuram o lado mais trendy e sossegado da capital oficiosa dos Países Baixos. Também existem as legais coffee shops. Uma delas – Barneys – é quase sempre destacada na Cannabis Cup, a competição que todos os anos procura selecionar os melhores produtos de cada uma das lojas que vendem drogas leves, space cakes, refrigerantes e chás. Não é esse o turismo – nem o sexual, sempre associado às montras do Red Light District – que as autoridades locais procuram promover. O foco agora está nos universos gourmet, design e cultural, numa tentativa de mudar a imagem da cidade de todas as liberdades. Duas questões se levantam: ainda irão a tempo? Será possível conciliar os diferentes interesses?

A conversa segue animada com Tozé, benfiquista ferrenho que segue à distância os sucessos do clube. Estamos em Prinsengracht, novamente, o canal do Príncipe. Paralelos, correm os Herengracht e Keizersgracht, canais dos senhores e do imperador. É final de semana, faz sol em Amesterdão. Os chatos – de casco achatado, entenda-se –, barcos de cruzeiro percorrem os canais. Saem junto à Estação Central, passam pelo porto cantado por Jacques Brel e navegam pelas principais artérias da cidade. Depois há as embarcações particulares, em que a festa se faz sentir de forma mais audível, seja pela música seja pelas gargalhadas. Afinal, esta é uma cidade para rir…

Haarleemerstraat é a rua comercial de Jordaan. Consta que tem as melhores mercearias da Holanda.

Tozé Maia, o nosso homem em Jordaan. Na Casa Bocage vende os sabores nacionais.

«Brad Pitt costuma jantar por aqui quando cá vem. O rei e a rainha também», diz o empresário português antes de nos levar a ver as loiças de Bordallo Pinheiro. Estão em exposição, mas não num museu. Estão antes na Mar Decor, loja de outro português, Miguel Rebello. Ali bem perto serve-se «a melhor tarte de maçã de Amesterdão» – elogio de Tozé Maia e do guia que nos acompanhou à torre da igreja. Winkel é o nome do restaurante/café a decorar. Também serve saladas e uma sopa de milho com salsicha merguez que é qualquer coisa de delicioso. Aproveite as mesas na esplanada para ver passar os melhores exemplos da bela vida de bairro.

A família real holandesa, atores de Hollywood, jet set holandês, estrangeiros a viver em Amesterdão, famílias centenárias, jovens casais endinheirados. Há de tudo em Jordaan. E ainda bem.

Miguel Rebello e a sua Mar Decor, onde vende as cerâmicas portuguesas.

O final de semana é sinónimo de mercados de rua e de brunch. Nos primeiros, destaque para o de Lindengracht, aos sábados, das 10h00 às 14h00. Tem roupa em segunda mão e produtos biológicos. No segundo, a atenção vira-se para o G’s (reallyniceplace.com), um pequeno restaurante decorado como a casa dos nossos avós onde as mimosas e os cosmopolitans fazem companhia a ovos mexidos, torradas e saladas. É novidade na cidade, há que aproveitar enquanto se consegue mesa. Seguimos sempre junto aos canais. À porta das casas, grupos de amigos juntam-se para mais uma cerveja. Na água há 2500 casas flutuantes dispersas pela cidade. Também em Jordaan podemos vê-las. São cada vez mais uma opção de alojamento, além dos hostels, hotéis e apartamentos privados. Na primavera e no verão os dias são mais longos. O sábado à noite começa ainda com a luz do sol bem forte. Nos bairros mais turísticos já quase não se consegue andar sem chocar com ninguém. Aqui, em Jordaan, há sempre uma mesa vazia à porta do bar. A vida é passada noutro ritmo. Até as bicicletas que passam parecem vir mais devagar que nas outras ruas do centro. Deixamos Tozé à porta de casa, despedimo-nos e combinamos uma bica para o dia seguinte, no sítio do costume. Continuamos o nosso caminho até ao porto de Amesterdão, mesmo ao lado deste bairro que consegue sempre surpreender-nos por mais voltas que demos. Podíamos perfeitamente viver aqui.


Esta viagem connosco
Gustavo Bom – fotógrafo
Nasceu em Lisboa em 1974. Estudou Psicologia no ISPA e Fotografia no IPS e no Arco, em simultâneo. Desde 2000, faz parte deste grupo de comunicação, em que é uma das caras mais conhecidas da Global Imagens. Estreia-se neste mês de julho com uma reportagem na Volta ao Mundo – o roteiro pelo bairro de Jordaan, em Amesterdão.

Texto de Ricardo Santos - Fotografias de Gustavo Bom/Global Imagens
Reportagem da edição de julho 2015 - n.º 249
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