Viajantes Extraordinários

Na selva da ilha do Bornéu, Quirino Tomás correu perigo de vida. Perdeu-se quando ia ao encontro de uma tribo seminómada, porque saiu do caminho de betão para atravessar a pé um riacho de pouca profundidade. Disseram-lhe que o trilho continuava por ali, mas após 15 minutos de caminho percebeu que estava sozinho, sem água – pouco antes, escorregara e perdera a garrafa numa ribanceira – e sem trilho à vista. À volta, a imensidão verde-escura da floresta, ramos e espinhos afiados. «O choque de adrenalina foi tremendo. O meu cérebro só me disse “vais morrer aqui”.» Salvou-se por um acaso: antes de mudar de direção, viu na bússola para onde se encaminhava. Tratou de, rapidamente, verificar os pontos cardeais e inverter a marcha, mas aquilo que foram 15 minutos a andar para frente acabou por implicar uma hora de caminho a desfazer o engano, cortando a custo entre as árvores.

Esta foi a primeira vez que o engenheiro civil de 29 anos, natural de Rio Maior, se viu em maus lençóis. A segunda estava na Indonésia, a fazer mergulho no Parque Nacional de Komodo. Viu o instrutor ser lançado para o infinito e sentiu-se sugado para baixo por uma corrente forte. Para resistir à força do mar, agarrou-se à parede de coral. «Não se pode fazer, mas naquele momento não tinha outra hipótese», justifica. Era uma questão de sobrevivência. Acalmou, verificou que tinha ar suficiente e trepou praticamente até chegar à superfície.

Apesar destes dois episódios, algo traumáticos, Quirino garante que é «uma pessoa de sorte». Talvez a sorte lhe tenha valido para continuar, sem grandes mazelas, a viagem de 16 meses que fez pela China e Sudoeste Asiático. A ideia inicial era ligar Istambul – «o ponto mais a leste onde já tinha estado» – a Pequim, na China. Mas ao traçar o percurso dessa viagem percebeu que em pouco tempo estaria a atravessar o Irão e o Paquistão, pelo que cedeu aos pedidos da mãe e, reconhecendo que a experiência em viagens fora da Europa era nula – tirando dois inter rails que fez no tempo da faculdade –, decidiu começar a viagem na China, fazer o percurso ao contrário, do Oriente para Ocidente. Também não teve a mais meiga das chegadas, mas preferiu a confusão de Pequim à proximidade de eventuais zonas de guerra logo no início da experiência como viajante a tempo inteiro.

No final, a rota que tinha preestabelecida, a tal odisseia que o levaria da China à Turquia, como escreveu no cabeçalho dos quatro cadernos pretos que preencheu com o relato ao pormenor da viagem, não chegou a acontecer. Preferiu a liberdade de não fechar portas que lhe iam abrindo, e da China passou para o Laos, Tailândia, Malásia, Indonésia, Brunei, Timor, Filipinas e Birmânia, chegando a regressar mais do que uma vez à Indonésia e à Malásia, por exemplo. «Foi tudo um puzzle», recorda. Garante que não fez mais do que encaixar as peças, até porque, diz ele, «sempre achei que o meu desígnio era viajar». E sozinho. Ter companhia, explica, é como criar uma bolha protetora que pode ser muito útil mas impede o indivíduo de experimentar verdadeiramente a cultura e a tradição de cada país. Além disso, Quirino defende a tese de que as pessoas têm naturezas distintas: as de natureza «árvore» preferem estabelecer-se num sítio apenas, criar laços e raízes. As de natureza «vento», como ele, querem ser livres e andar por aí, mesmo que corram o risco de se tornar «escravas da liberdade» que tanto anseiam.

Foi seguindo esta teoria de sua lavra que chamou Histórias do Vento (historiasdovento.com) à página que criou para contar online as aventuras da viagem que começou em fevereiro de 2013 e terminou no verão de 2014.

Natural de Rio Maior, este Engenheiro Civil de 29 anos fez a viagem de uma vida através do Continente Asiático.

Quando chegou ao aeroporto da Portela trazia cinco euros no bolso, porque prolongou o percurso mesmo até ao limite do orçamento disponível. Trabalhou durante três anos como bolseiro do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) com o objetivo simples de amealhar para a viagem que havia de fazer e, agora que chegou, só pensa em mudar-se para a Noruega, onde o trabalho qualificado é mais bem pago do que em Portugal. Cá, sente que não tem lugar. O plano é, novamente, trabalhar para ganhar dinheiro e partir. Talvez a América Central seja o próximo destino. Entretanto, vai recordando as experiências de um estranho e longo percurso que o fez conhecer pessoas de nacionalidades várias e sensibilidades tão diferentes. Durante 15 dias, chegou a partilhar a rota com um rapaz chinês de 20 e poucos anos que conheceu num hostel, porque perceberam – com a ajuda de terceiros – que pretendiam visitar os mesmos locais da China.
E ainda que ter um nativo por companhia facilitasse muito a mobilidade num país onde se sentia «praticamente analfabeto», comunicar com alguém através do smartphone que traduzia inglês para chinês e vice-versa foi, no mínimo, um desafio.

Mas nada comparado com a Indonésia, onde mudar de ilha «era como mudar de país». Porém, em todas as ilhas a mesma peculiaridade ao nível dos transportes: os autocarros apanham os viajantes e continuam a circular pelas redondezas durante mais duas ou três horas, até terem lotação completa, e só depois partem em direção ao destino. Pior mesmo é quando «já estão cheios de gente e continuam às voltas!», conta Quirino a rir. Quando entrou em Timor-Leste, depois de cerca de oito meses em viagem, e voltou a ouvir falar português, emocionou-se. Comprovou que a hospitalidade não é coisa de europeus: esteve um mês a viver em casa de uma família timorense que o acolheu como a um filho.


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