Do alto da colina do castelo avista-se Nice: montanhas pontuadas de casas envolvem uma cidade cor de terra que se debruça
sobre um mar calmo. Num olhar demorado para a velha Nice, identificamos com clareza as barraquinhas coloridas do mercado de flores da Cours Saleya e as ruas labirínticas que escondem galerias e restaurantes.

Mas o melhor mesmo será começar pelo princípio. O avião aterra com um ligeiro atraso no Aeroporto Internacional da Côte d’Azur e não há filas nem confusão, sendo impossível adivinhar que este é um dos mais movimentados aeroportos do país. Afinal, abril ainda nem ia a meio. A viagem de carro até ao centro de Nice é rápida e de certa maneira compensa o atraso provocado pela greve dos controladores aéreos. As palmeiras românticas vão traçando o caminho, multiplicando-se nas ruas junto a um mar que hoje está azul-turquesa. Caterina, a representante do turismo que nos acompanha, avisa-nos de que a água costuma mudar de cor ao longo do ano. Num inglês marcado pelas suas origens italianas, garante-nos que quem vive em Nice gosta de mergulhar no Mediterrâneo em qualquer altura, à exceção, claro, dos dias chuvosos. Na verdade, é raro estar mau tempo, mas agora que aqui estamos as nuvens cinzentas não parecem estar dispostas a ceder lugar à famosa luz que inspirou mestres como Marc Chagall ou Henri Matisse.

Para chegar ao restaurante onde temos almoço marcado percorremos a Promenade des Anglais, construída em 1824 com o patrocínio dos nobres britânicos que por aqui passavam o inverno. A Promenade é um passeio largo que se estende por sete quilómetros e abraça a baía dos Anjos. Há bicicletas para alugar e bancos virados para o mar ao longo de toda a costa, num convite expresso à contemplação. Paramos no semáforo ao lado de um Triumph vermelho dos anos 1960. O condutor, de boné e polo desportivo, sorri-nos orgulhosamente antes de arrancar.

O serviço Vélo Bleu disponibiliza cerca de mil bicicletas para alugar, ideais para explorar os sete quilómetros da Promenade des Anglais, junto às praias da cidade.

Passamos pelo Negresco, que a par do Carlton de Cannes é um dos mais emblemáticos hotéis da Riviera Francesa. Mais adiante, surge o Palais Méditerranée, um imponente hotel casino inaugurado a 10 de fevereiro de 1929 e recentemente remodelado. Os casinos são, aliás, desde os anos 1920, um ponto de paragem obrigatória durante uma visita a Nice. Pelo caminho, a Belle Époque vai-se apresentando aos recém-chegados, eternizada nos edifícios em tons ocre, amarelo ou laranja, com portadas de um verde-água já esbatido pelo tempo e pela proximidade do mar.

Finalmente, chegamos ao nosso destino. Entramos a pé na velha Nice, o bairro histórico, cruzamos o mercado de flores na Cours Saleya e percorremos ruelas labirínticas repletas de lojas e galerias. No número 58 da Rue Droite, a «rua dos artistas», encontramos o Acchiardo. Pequeno e acolhedor, este restaurante familiar tem as mesas dispostas em filas apertadas e antigas panelas e tachos de cobre estão em exposição nas paredes. Jean François e Raphael entregam-nos as ementas. São bisnetos do homem que em 1927 abriu o Acchiardo e lhe deu o nome da família. As suas raízes estão no Piemonte, em Itália, e hoje a família está dividida: metade é italiana, metade é francesa. A especialidade do dia era pernil de cordeiro assado, mas como o nosso voo atrasou já não chegamos a tempo de provar. Dividimo-nos entre filete de peixe vermelho à la provençale e escalope à casa. Enquanto esperamos pelo prato principal dedicamo-nos com convicção às entradas.

A cidade está entregue aos artistas. Vêm dos quatro cantos do mundo procurar inspiração, mas também para mostrar na rua os sons e as cores que trazem na bagagem.

Primeiro assiette niçoise: um sortido de petits farcis (vegetais recheados com carne e pão cozidos no forno), pimentos grelhados, curgete e pissaladière (uma espécie de tarte com cebola e anchovas). Aqui, apesar do ambiente informal, nada é deixado ao acaso: o pai de Jean François e Raphael, Joseph, começa a trabalhar todos os dias às cinco da manhã para poder preparar os deliciosos petits farcis. Para a mesa vem também a famosa salada niçoise que, como o nome indica, é típica da cidade de Nice e confecionada com atum, ovo, anchovas, pimentos, tomate e azeite. Nice e Lyon são, aliás, as duas únicas cidades francesas com etiqueta gastronómica.

Passar a noite dentro da arte
Em Nice, a arte está na rua, nas galerias, nas fachadas, nos museus Chagall e Matisse e até nos hotéis. O Windsor (11 Rue Dalpozzo), onde passamos as nossas quatro noites na capital da Riviera Francesa, está nas mãos da mesma família há três gerações. Aqui, podemos literalmente dormir dentro da arte. Metade dos quartos deste hotel foram transformados por artistas contemporâneos franceses. Desde o «quarto dourado» de Claudio Parmiggiani às suaves palavras amarelas colocadas nas paredes do quarto 242 por Robert Barry, o Windsor guarda uma surpresa atrás de cada porta. O quarto mais arrojado tem a capacidade de induzir uma noite de sono no mínimo perturbadora e está assinado pelo famoso artista Ben, que encheu as paredes do 365 com frases escritas em cores berrantes sobre os sonhos que teve neste quarto.

Nice a 360 graus
Subir ao terraço do Museu de Arte Contemporânea é uma oportunidade para ver Nice em toda a sua grandeza.

Há quem peça para trocar assim que dá de caras com a estranha mistura de tons e palavras que inundam o espaço. O projeto Quartos dos Artistas nasceu em 1987, depois de o tio da atual gestora do hotel, Odile Payen-Redolfi, ter visto uma exposição de arte contemporânea na Bélgica. Em Gent, Bernard Redolfi-Strizzot apaixonou-se por uma exposição que consistia em viajar pela cidade para ver quartos que os donos de várias casas tinham aberto à imaginação de artistas. Foi assim que decidiu transpor o conceito para o seu hotel.

Nice, um «museu a céu aberto»
O Windsor está a poucos minutos da majestosa Praça Massena, que, com o seu chão de azulejos pretos e brancos, é o local para onde conflui a energia da cidade. Os edifícios, que formam um U, escondem lojas e cafés nas suas arcadas e os bancos espalhados pela praça convidam a ver, sem preocupações, as pessoas e o tempo a passar. Quando a noite cai, uma obra de arte instalada na praça ilumina-se. Sete homens transparentes, que representam os cinco continentes e os dois polos, estão sentados sobre os seus joelhos no cimo de altos pilares e vão mudando de cor numa espécie de diálogo mudo. Esta obra integra um projeto que tem como objetivo transformar a cidade num «museu a céu aberto».

Esta espécie de exposição de rua é permanente e composta por 223 obras de 13 artistas diferentes, colocadas junto às paragens de elétrico. Desde pinturas gigantescas feitas em edifícios de habitação a instalações que jogam com a cor e a luz, estes trabalhos podem e devem ser visitados com a ajuda de um guia, algo que fizemos já ao entardecer para entender melhor aquelas que são iluminadas.

Um museu a céu aberto: é assim que Nice se apresenta aos amantes da arte. O projeto conta com 223 obras de 13 artistas diferentes, colocadas perto de paragens de elétrico. Conversation à Nice (em cima) são sete figuras coloridas que iluminam a Praça Massena.

Da cozinha Michelin aos azeites de Nadim
Segunda cidade mais visitada em França depois de Paris, Nice tem restaurantes para todos os gostos. No Aphrodite, o chef de uma estrela Michelin David Faure prepara-nos um elaborado menu de degustação em que intercala a cozinha tradicional com a molecular. O jantar começa com um fumegante cocktail da casa com licor de cereja e gengibre e a partir daí as surpresas não param de chegar à mesa. Durante quatro horas provamos de tudo um pouco, desde espuma de ouriço-do-mar, foie gras ou gelado de pera cristalizado com azoto. O jantar acaba com uma surpresa: o chef aparece com dezenas de caixas de ovos, fazendo-nos acreditar que, estranhamente, estaria prestes a cozinhar ovos estrelados para a sobremesa. Em colheres perfiladas à nossa frente estava aquilo que pareciam ser gemas. Um a um, o chef ia partindo os ovos e para pequenas frigideiras caía o que pensámos serem as claras. Fomos levados a julgar que a gema tinha sido cozinhada à parte. Com azoto líquido, aquele «ovo estrelado» pouco convencional foi solidificado e servido com uma fatia de pão. Finalmente, provámos a sobremesa para descobrir que a clara era, afinal, panna cotta e a gema um doce de manga.

Preso às raízes da tradição está o L’Oliviera. É para um almoço descontraído que entramos na porta 8 Rue du Collet, onde o dono deste restaurante, o sorridente Nadim, nos dá a provar alguns dos seus melhores azeites, que escolhe entre produtores da região. Molhamos o pão na primeira taça para provar o azeite de Nice e comprovamos que, tal como nos tinha sido dito, tem um sabor doce. Muito mais doce do que aquele que vem a seguir, da região de Baux de Provence. «Sabe a relva, não sabe?», pergunta Nadim. Sim, sabe estranha e agradavelmente a relva. Depois de uma refeição em que o azeite é o ingrediente principal de cada prato – até no tiramisu que comemos à sobremesa – , dedicamo-nos a deambular pela cidade. Nada é muito longe em Nice e caminhar é a melhor maneira de conhecer os seus recantos.

No entanto, o elétrico e os autocarros chegam praticamente a todo o lado. E para subir até à colina do castelo, que de castelo só tem o nome porque este foi destruído em 1760, há um elevador no sopé do monte. Lá em cima, uma cascata, um jardim onde as crianças brincam livremente e duas das melhores vistas de Nice: de um lado a baía dos Anjos e do outro o porto da cidade. Cuidadosamente organizada, a marina construída no fim do século XVIII dá abrigo a pequenos barcos de pesca de todas as cores, a imponentes iates de bandeira britânica, às memórias dos tempos em que foi um dos mais importantes portos da região na transação de azeite.

A marina, meticulosamente organizada e emoldurada pelas montanhas, está recheada de imponentes iates de bandeiras britânica e francesa, mas são também os pequenos barcos de pesca que continuam a emprestar um colorido muito especial ao local.

O porto é rodeado pelos Alpes Marítimos, que se organizam numa espécie de anfiteatro aberto para o mar. E é para as montanhas que vamos, pouco depois de nos despedirmos de Nice com um almoço no Beau Rivage, um dos muitos restaurantes plantados à beira-mar.

A aldeia fortificada de Chagall
Depois de uma viagem de pouco mais de meia hora em carro alugado na estação de comboios de Nice, chegamos ao primeiro destino que sublinhámos no mapa. Aldeia medieval muralhada e encavalitada nos Alpes Marítimos, Saint-Paul-de-Vence está inundada de galerias de arte (Chagall passou aqui quase vinte anos da sua vida) e lojas onde se vende desde roupas coloridas a artesanato ou saquinhos de lavanda. Para além da igreja do século XIII, é também uma boa decisão visitar a famosa Fundação Maeght, dedicada à arte contemporânea.

Apesar de ser uma aldeia pequena, vale a pena ficar por um dia num dos hotéis da Route de la Colle, a poucos metros da entrada da zona muralhada. Abrir a janela de manhã e respirar o ar puro da montanha antes de seguir para outras paragens é algo de pacificador. Para almoçar, entramos sem querer no Malabar. Mais tarde, acabamos por descobrir que, apesar de simples e pequeno, tem ótimas referências e um carpaccio de boi divinal. No Malabar usam-se apenas produtos frescos e à sobremesa serve-se um petit gateau de fazer água na boca a quem teve a péssima ideia de escolher qualquer outra sobremesa.

À noite, em Saint-Paul-de-Vence, as lojas fecham e a povoação mergulha num silêncio profundo, quase fantasmagórico. Chega a ser difícil encontrar um sítio para jantar, pelo menos antes de o verão chegar.

O ar perfumado de Grasse
Fragonard, Galimard, Molinard. Para quem está nos Alpes Marítimos, Grasse, a capital do perfume, é paragem obrigatória, bem como as suas três perfumarias históricas, todas de nomes consonantes. Para aqui chegarmos percorremos de carro os 13 quilómetros que separam Saint-Paul-de-Vence e Grasse. Pelo caminho, vislumbram-se inúmeras aldeias alcandoradas na montanha. Apesar de as nuvens teimarem em afastar o sol e a subida ser pontuada pela chuva, não há nada que pareça ser capaz de manchar a beleza destes caminhos.

Para descobrirmos se a fama dos perfumes da cidade corresponde ou não à realidade, optamos por visitar Fragonard, a mais famosa das três perfumarias. A intensidade dos aromas assim que se entra na fábrica histórica é inebriante. A visita guiada, que qualquer pessoa pode fazer sem marcação, começa na última fase de produção: a embalagem do produto. Percorremos as várias salas com um grupo de japoneses faladores e desejosos de levar para casa todas as fragrâncias que conseguirem carregar. A nossa guia é Monique, que nos explica que 15 mililitros deste perfume francês custa 26 euros aqui na fábrica, mas numa loja normal pode ultrapassar os oitenta. A venda a preço de fábrica tem que ver com as embalagens.

São todas douradas, espretensiosas e conservam o perfume durante cinco anos. O facto de não ser preciso contratar um designer torna possível a venda a um preço mais baixo. Monique explica que para se fazer, por exemplo, um litro de óleo de rosa são precisas 3,5 toneladas destas flores. Para produzir os perfumes, a Fragonard trabalha com alguns dos mais famosos «narizes» do país. Nos primeiros anos de aprendizagem um «nariz» consegue reconhecer pelo menos 250 cheiros e quando ganha experiência pode chegar a identificar três mil.

Monique pergunta se alguém sabe a diferença entre perfume e eau-de toilette. Apesar de alguns abanarem a cabeça em jeito de consentimento, ninguém se atreve a responder. A resposta é simples: o perfume tem vinte por cento de essência e oitenta de álcool, a eau-de-toilette apenas dez por cento de essência, oitenta de álcool e dez de água.

A Fragonard, inaugurada em 1926 por Eugène Fuchs, só cria perfumes para mulher. Os homens têm de se contentar com a eau de-toilette. Os rostos mais conhecidos desta perfumaria são precisamente três mulheres da família – Anne, Agnes e Françoise – que acompanharam o pai desde cedo na gestão da empresa. Foram elas as principais responsáveis por abrir novos horizontes ao negócio: bijutaria, produtos para a casa e vestuário Fragonard têm agora lojas próprias.

A marca é também responsável pela gestão de um museu, que expõe obras de Jean-Honoré Fragonard, o pintor do século xviii que inspirou o nome da perfumaria.

A visita guiada continua. Na sala seguinte perfilam-se os contentores onde as essências estão guardadas, para serem depois misturadas com o álcool. Quando os dois ingredientes se juntam têm de ficar em repouso durante três semanas e só então serão filtrados. Os filtros parecem-se com os do café, mas em ponto grande.

Há ainda uma unidade de produção de sabão, que é vendido em forma de ovo com seis cheiros diferentes. O processo é o mesmo de há décadas. «Só mudámos a pessoa que o faz», brinca Monique. Para fazer um único perfume, a Fragonard costuma misturar entre 20 e 250 essências diferentes, usando todo o tipo de flores: rosa, jasmim, túbaros, flor de laranjeira, violeta, cravo, junquilho. Ao contrário de outras perfumarias da região, esta não vende as suas essências a outras marcas de perfume, distribuindo exclusivamente para as suas boutiques. Só que, depois dos muitos pedidos a Monique, o grupo de turistas japoneses acaba mesmo por sair da loja com dezenas de frascos dentro de sacos floridos.

Também a perfumaria Molinard faz visitas guiadas à sua fábrica histórica e na cidade há ainda para ver o Museu do Vestuário e da Bijutaria e o Naval. Na Catedral de Nossa Senhora de Puy podem admirar-se quadros de artistas como Rubens e Fragonard. Totalmente proibido é sair de Grasse sem fazer uma visita ao Museu Internacional da Perfumaria, uma homenagem perfeita a esta arte. No número dois da Boulevard du Jeu de Balon conta-se a história do perfume desde a Antiguidade – com passagem pelo Egito, o Médio Oriente e a Grécia – até ao século XXI. Ao longo de todo o percurso estão espalhados difusores que permitem sentir cheiros como tomilho, incenso, noz-moscada, flor de laranjeira ou essência de rosa.

No final, há mesmo uma instalação chamada Jardim da Adição, que liberta odores como ópio, cogumelos alucinogénios, cocaína, uísque, café ou tabaco. Ficamos a saber que, antes de se dedicar aos perfumes, Grasse era conhecida na segunda metade do século xix pela produção de cintos, sapatos, luvas e caixas de bergamota. E foi quando surgiu a moda de usar luvas perfumadas que a indústria das essências começou a desenvolver-se por aqui.

Entre curvas e contracurvas, seguimos até Gourdon, mais uma aldeia pitoresca com um castelo medieval do século ix que a rainha Vitória visitou em 1891 e uma vista que alcança quase oitenta quilómetros da Riviera Francesa, desde Nice a Theoule-sur-Mer. De Grasse a Gourdon são cerca de 17 quilómetros, mas o mar continua sempre ali, a uma curta viagem de distância. Considerada uma das aldeias mais bonitas de França e construída 650 metros acima do nível do mar num rochedo isolado, Gourdon, que não chega a ter quatrocentos habitantes, é uma aldeia silenciosa, com inúmeros jardins e casas enfeitadas com flores. Junto de uma delas, um gato persa espreguiça-se lentamente, com a mesma calma que se sente ao percorrer toda a região, desde o Mediterrâneo até ao ponto mais alto da montanha.


Agradecimentos:
Turismo de França
TAP: flytap.com


nicetourisme.com;
grasse.fr;
saint-pauldevence.com;
francetourisme.fr;
nice.aeroport.fr;
lignesdazur.com

Texto de Catarina Reis da Fonseca - Fotografias de Leonardo Negrão/Global Imagens
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