Canais sujos, pessoas que falam um inglês impercetível e um céu escuro ameaçado por velhas chaminés industriais. É fácil odiar Manchester. Mas foi lá que surgiram os The Smiths e os Oasis, que brilhou David Beckham e que nasceu o primeiro computador. Uma cidade que produz futuro em fábricas abandonadas.

Texto de Tiago Carrasco
Fotografias de Keith Vaughton

Há cidades que constroem a sua identidade no horizonte. A silhueta de arranha‑céus de Nova Iorque remete para o capitalismo moderno. Os minaretes nos píncaros de Istambul transportam‑nos para séculos de fé islâmica. Manchester tem chaminés. Grandes cilindros de tijolo apontados para o céu pardo que nos contam que esta cidade do Noroeste de Inglaterra foi um dos expoentes máximos da revolução industrial. Hoje é possível vê‑las, alternadas com torres espelhadas e cartazes publicitários digitais. Há duzentos anos, não – tal a densidade do fumo negro expelido pelas bocas das usinas e dos moinhos de algodão que se multiplicaram ao longo dos canais como cogumelos na floresta.

A Murrays’ Mills, no bairro de Ancoats, às portas do centro da cidade, foi das primeiras e continua de pé para recordar a história. Uma autêntica pérola da arqueologia industrial. O moinho original do gigantesco complexo fabril, o Old Mill, foi edificado em 1797 e não existe no mundo tão antigo local de produção de algodão com máquinas a vapor, ainda sólido. A empresa prosperou e em 1806 já era a líder mundial, com mais de mil trabalhadores. Um passeio matinal por entre os armazéns em lenta decomposição é o melhor prelúdio possível ao conto de Manchester: uma povoação camponesa que entrou no século XVIII com dez mil habitantes e que duzentos anos mais tarde albergava setecentas mil almas. Promessas de melhores ordenados com o advento do carvão e do aço atraíram agricultores de várias províncias da Grã‑Bretanha, bem como da Irlanda ou mesmo de Itália. O êxodo rural foi aqui patenteado.

Na urbe, os migrantes encontraram emprego, as artes e as escolas. Mas também uma dura realidade: a exploração laboral, a proliferação dos bairros de lata e uma vida sem condições de higiene, onde a água dos rios e canais usada para despejar os detritos das fábricas e as necessidades dos operários era utilizada para beber e cozinhar. A cólera e a mortalidade infantil dispararam. Esta Manchester, sufocada pelo progresso, foi descrita por Friedrich Engels em meados do século XIX como «o inferno na terra». No entanto, o alemão não podia saber que a decadência antecede a criação. Manchester tinha muito para dar.

Os portais do tempo que lhe permitem viajar para o apogeu industrial estão em Castlefields, nas margens do rio Irwell. O Museu da Ciência e da Indústria não podia ter sido instalado em lugar mais simbólico – a estação de comboios de Liverpool Road, o primeiro terminal ferroviário de passageiros do planeta, de 1830, resultante da ligação de Liverpool a Manchester por caminhos‑de‑ferro. Dividido em cinco naves, exibe modelos pioneiros de locomotivas, aviões, carros, caldeiras a vapor e máquinas de tecelagem, contando ainda de forma interativa como um grupo de cientistas dividiu pela primeira vez um átomo em Manchester ou mostrando uma réplica, feita com alguns componentes originais, do primeiro computador – o Baby – que processou o seu programa inaugural na Universidade de Manchester, em 1948. É apenas um segmento do aparelho e, ainda assim, tem tamanho de armário. Um dos homens por trás do seu desenvolvimento foi Alan Turing, o genial criador da máquina Enigma que ajudou a descodificar os códigos nazis na guerra, a quem Manchester prestou tributo através de uma estátua – o Alan Turing Memorial – situada entre a universidade e a Canal Street, na Gay Village. Lembre‑se que Turing se suicidou dois anos após ter sido condenado por práticas homossexuais.

A menos de dez minutos a pé do Museu da Indústria fica o Museu da História do Povo, com uma retrospetiva da luta pelos direitos dos trabalhadores ao longo de duzentos anos, recorrendo a painéis digitais e a secções identificadas por diferentes cores. No People’s Museum (gratuito, como todos os museus públicos da cidade) está documentado o Massacre de Peterloo que vitimou dezenas de trabalhadores que reivindicavam o direito ao voto, bem como a ascensão do socialismo, o nascimento do Partido Trabalhista e das sociedades secretas e até temas atuais como a imigração e o movimento LGBT.

A herança industrial está muito presente na cidade inglesa. Chaminés e armazéns abandonados misturam-se com edifícios modernos.

Embora pareça que Manchester se ergueu do carvão, as fundações da localidade têm quase dois mil anos e foram feitas por velhos conhecidos dos portugueses: os romanos. Em Castlefields, ainda é possível ver as ruínas do Forte de Mamucium, principalmente da sua ala norte, e ainda as reconstruções levadas a cabo após a descoberta arqueológica. Quem já viu Conímbriga ou o Templo de Diana, pode ficar desapontado com a escassez de pedras milenares, mas a visita vale essencialmente pelo charme do canal cujas águas refletem tímidos raios de sol ao fim da tarde e se agitam com a passagem dos comboios em velhas pontes que se intersetam nas alturas. Quando o imperador Severo aqui chegou no ano 200 d.C. para suster uma rebelião, já viviam em Manchester mercadores e soldados de vários cantos do império, inclusive uma guarnição de Bracaraugusta – Braga, nem mais nem menos.

Dando costas à história e centrando a atenção no estômago, passagem obrigatória pelo Mr. Thomas’s Chop House, parte da paisagem da movimentada Cross Street desde 1870, altura em que Thomas Studd decidiu abrir um restaurante para os homens de negócios poderem desfrutar da gastronomia tradicional e de cervejas produzidas nas redondezas. Pouco mudou desde então: o edifício de estilo georgiano com tijolos de terracota é por si próprio uma atração, mas não é comparável ao bife da casa – Mr. Thomas Famous Corned Beef Hash –, uma receita secreta com dez dias de preparação, servido com batatas assadas, cebolas, ovo e bacon crocante. Sempre acompanhado pelo intenso sabor de uma Ale de Lancashire. No final da rua, em Albert Square, insinua‑se a beleza vitoriana do edifício da câmara municipal, com um relógio na torre conhecido por Great Abel – o equivalente de Manchester ao Big Ben londrino. Infelizmente, o espaço estará interdito aos visitantes nos próximos seis anos, devido a obras de restauração.

Caminhando na direção oposta da Cross Street, chega‑se ao bairro medieval, identificável pela presença incontornável da Catedral de Manchester, uma pérola gótica na cidade dos armazéns. Mais extensa do que alta, a sede da diocese, de finais do século XV, presenteia todos os visitantes logo à entrada com uma obra têxtil da portuguesa Cristina Rodrigues – O Reino dos Céus – oferecida pelo município de Castelo Branco como homenagem ao reinado de Isabel II. Decorre um encontro judaico, prova do ecumenismo reinante.

A catedral, pérola gótica dos finais do século XV, mais extensa do que alta, fica em pleno bairro medieval, um dos locais de passagem obrigatória.

Do lado oposto dos Jardins da Catedral, um discreto portão dá acesso à Escola de Música de Chetham’s, onde outrora funcionava o hospital. Há concertos de música clássica à hora de almoço. Porém, não é pelas orquestras mas pelos livros que a maioria dos visitantes aguarda pelo guia para entrar. Junto à escola de música, fica a Biblioteca de Chetham’s, a mais antiga biblioteca pública do Reino Unido, em funcionamento contínuo desde 1637 e com mais de cem mil volumes disponíveis. Entre eles, alguns tesouros, como Principia Mathematica, escrito por Sir Isaac Newton há quase 400 anos. Não foi à procura deste exemplar que F. Engels e Karl Marx se encontraram na sala de leitura, pejada de livros acorrentados às estantes, para prepararem o Manifesto Comunista, obra que iria mudar o curso da história. Foram, sim, títulos sobre economia e estudos sobre as condições de trabalho no Reino Unido, como The State of the Poor e Several Essays in Political Arithmetick, que hoje repousam sobre a mesa utilizada pelos teóricos do comunismo para as longas horas de pesquisa.

No verão de 1845, Marx foi a Manchester visitar Engels, que se mudara para o Noroeste de Inglaterra para trabalhar na fábrica de algodão do pai. A exploração laboral que testemunharam foi de tal maneira impressionante que lhes acelerou a determinação para desenvolver um modelo social alternativo: sem Manchester, talvez não houvesse União Soviética nem Cuba. Junto à secretária, estão as linhas de uma carta que Engels endereçou a Marx em 1870, quando o Manifesto já incendiava consciências e Engels permanecia na capital da Revolução Industrial: «Nos últimos dias, passei novamente muito tempo sentado na secretária onde estivemos juntos há 24 anos (…). A janela de vidro colorido garante que o tempo está sempre bom aqui. O velho Jones, o bibliotecário, ainda é vivo, mas está muito velho e já se reformou.» A madeira escura e as lombadas amarelecidas dos livros atiram‑nos para o cenário vivido pelos filósofos alemães – mas a janela foi substituída e já não dá para camuflar a chuva que cai lá fora.

Chetham’s não é a biblioteca mais ilustre de Manchester. Em Deansgate fica a John Rylands, mais impressionante a nível de tamanho e de arquitetura, mas menos acolhedora. Alberga muita papelada de respeito, como uma Bíblia de Gutenberg (uma das primeiras obras impressas), manuscritos medievais e até um papiro que se pensa ser o pedaço sobrevivente mais antigo do Novo Testamento. Por estes dias, pode ainda visitar uma exposição sobre a obra de Martinho Lutero.

Decadência e vanguarda andam de mãos dadas nas ruas e fachadas. Num passeio a pé de poucos minutos mudamos facilmente de realidade.

Diante de Chetham’s, de onde saem grupos de adolescentes de uniforme e com variados instrumentos musicais, fica o Museu Nacional do Futebol, alto e envidraçado, contrastando com as tonalidades do casco antigo. Como um tradicional adepto inglês, pare antes para uma pint no Old Wellington’s Inn, um pub instalado num pitoresco edifício com a típica fachada anglo‑saxónica com quadrículos de madeira. O caminho para a entrada do museu do futebol é um passeio da fama, com pedras de bronze embutidas na calçada figurando as caras de alguns dos melhores jogadores do mundo: estão lá Bobby Charlton, Messi e Maradona, mas também os portugueses Eusébio e Ronaldo. O rececionista não perde a oportunidade de se cruzar com um português para falar de Cristiano Ronaldo, uma lenda do Manchester United: «Dizem que ele está em declínio mas eu acho que está apenas a poupar‑se para a Liga dos Campeões e para ganhar o Mundial.» Museus de futebol são o tipo de sítio onde o craque madeirense vai atingir a imortalidade, isso é certo. Como Pelé, que tem o último piso só para uma exposição sobre a sua carreira, onde para além dos mais de mil golos do rei o visitante pode conhecer peças raras como a capa do álbum que gravou com a cantora Elis Regina ou o retrato que Andy Wahrol lhe dedicou.

Os restantes três andares dedicam‑se a mostrar os primórdios do desporto‑rei com os holofotes concentrados na realidade britânica. Os mais fanáticos vão certamente entrar em êxtase com peças como a primeira camisola usada pela seleção inglesa numa partida de futebol (contra a Escócia), o último carro de George Best ou os primeiros cromos da década de quarenta do século passado. Os vídeos dão a conhecer histórias impressionantes como a de Bert Trautmann, guarda‑redes alemão do Manchester City em 1949, ex‑paraquedista nazi que conquistou até os mais críticos quando ajudou a sua equipa a vencer uma Taça de Inglaterra jogando dezassete minutos com o pescoço partido. A entrada é grátis mas para marcar penalties e entrar nas salas interativas é preciso deixar algumas libras. Nenhuma outra atividade como o futebol internacionalizou tanto o nome de Manchester.

As camisolas vermelhas do Man. United, a equipa mais vitoriosa da cidade, podem ser vistas da Islândia até à Austrália. A nº 7 tornou‑se uma lenda – só equiparável no desporto ao nº 23 dos Chicago Bulls – ao ter sido vestida por talentos como George Best, Eric Cantona, David Beckham e Cristiano Ronaldo. Em 2016‑2017, foi considerado o clube mais valioso do mundo, avaliado em 2,86 mil milhões de euros. Para conhecer melhor a história dos diabos vermelhos, que começou, como não podia deixar de ser, pelos operários da ferrovia, visite o estádio de Old Trafford (o Teatro dos Sonhos, para os fãs). Mas quem tem os olhos postos no futebol do futuro deve optar por visitar o clube rival, o Manchester City, que tem um projeto para se tornar o maior clube do mundo na próxima década. Quer saber como? Nos tours guiados ao Etihad Stadium vão explicar‑lhe como o clube, financiado com dinheiro dos Emirados Árabes, já tem seis equipas em quatro continentes, um departamento de comunicação para cada nacionalidade dos seus jogadores e as instalações mais modernas do mundo. O futebol global: mais uma vez Manchester quer ditar tendências.

Manchester é também a cidade do desporto-rei. É aqui que fica o museu nacional do futebol, onde estão imortalizados os melhores do mundo.

Como fez na música. A Cottontown foi o berço de bandas lendárias como os The Smiths, The Stone Roses, Happy Mondays, Joy Division, Chemical Brothers e Oasis. Não estaremos a exagerar se dissermos que é das cidades com mais singles de sucesso por quilómetro quadrado, o que com uma seleção prévia no Spotify pode oferecer uma banda sonora de luxo para uma caminhada de auscultadores nos ouvidos pelo Northern Quarter, o bairro onde o legado musical é mais presente.

Para uma pausa para comer, as pizas napolitanas do Rudy’s ou a fast‑food vegan V‑Rev são excelentes opções. Vagabundos e hipsters, em acesa disputa pelas barbas mais longas, convivem entre barbearias patuscas e pubs com cheiro a vómito. Decadência e vanguarda, sempre juntas, num viveiro que por momentos parece um esgoto pós‑industrial, uma espécie de Prior Velho ampliado, e noutros uma civilização inteligente de uma galáxia distante, mais rápida do que o seu próprio tempo.

E no meio desta loucura vivem as guitarras e os discos. Podem ser encontrados na Vinyl Exchange, a maior loja de venda, compra e troca de vinis e CD raros, aberta desde 1988. «O britpop foi a última grande onda de venda de CD, no final dos anos 1990», diz Richard, dono da loja. «Hoje vendo muitas edições antigas. Mas isso não quer dizer que o movimento tenha morrido. Há inúmeras bandas talentosas a atuar nos bares da cidade.» Um desses pubs é o Night and Day, onde grupos como os Elbow, Artic Monkeys e Kasabian subiram ao palco quando ainda eram desconhecidos. Quando se ouviram ameaças do encerramento do bar por causa do barulho, pôs‑se a circular uma petição que somou mais de quarenta mil assinaturas. O N&D continua a organizar concertos quase todas as noites.

Nas redondezas, fica o Afflecks, um palácio convertido em centro comercial alternativo, com dezenas de lojas independentes com moda rétro, T‑shirts de bandas e tatuadores reputados. Não faltam opções para conhecer o passado post punk, acid‑house e britpop de Manchester; a Manchester Music Tours, gerida pela família de Craig Hill, o último baterista de Inspiral Carpets, falecido no ano passado, efetua percursos que passam, entre muitos outros locais, pela casa dos irmãos Gallagher ou pelo Lesser Free Trade Hall.

A música das últimas décadas passa por aqui. Dos Smith aos Oasis, passando pelos Stone Roses, Happy Mondays ou Joy Division.

Foi aqui que os Sex Pistols tocaram em 1976 um concerto que iria mudar a música. Porquê? Porque entre os 43 espetadores estavam, entre outras divindades, Morrissey (The Smiths), Ian Curtis (Joy Division) e Tony Wilson (Factory Records/The Hacienda) e todos eles retiraram alguma coisa daquela barafunda de concerto. A história está no fantástico filme 24 Hours Party People.

Lucy Mae, emergente vocalista de jazz, tem muito orgulho na sua cidade. Afinal, Manchester foi recentemente classificada como um dos melhores sítios para viver em Inglaterra e mostrou o seu caráter com a forma como se ergueu do ataque terrorista ao concerto de Ariana Grande, na Manchester Arena. A cantora cita alguns nomes não tão conhecidos do grande público – Elkie Brooks, JP Cooper e a Cinematic Orchestra – para provar a apetência dos mancunians para a melodia. E ainda aqueles que estão a aparecer: «O rapper WherezNeekz, Honeyfeet, Skeltr, The Breath, Ask My Bull… são muitos», diz.

Pode ter a sorte de apanhar alguns destes nomes em salas como o Matt&Phreds ou Band on the Wall. Nascida em Manchester, Lucy também passou a sua vida a tentar encontrar razões para tanta criatividade musical numa cidade com cicatrizes genéticas causadas pela inalação de fumos tóxicos e contacto com metais pesados: «O trabalho duro pode estar na génese do desenvolvimento de muitas bandas. Como muitas fábricas ficaram abandonadas, a juventude aproveitou esses espaços para improvisar salas de ensaio e estúdios», diz. O seu namorado, o músico Luc Phan, acrescenta a vida universitária como polo agregador de muitos jovens de todos os continentes: ele próprio é filho de mãe vietnamita e pai francês.

Essa miscigenação, prevalente desde a era do algodão, pode bem ser o motivo principal de tantas influências musicais convergirem em Manchester: Irish Blood, English Hearth, já cantava Morrissey. Algo que o brexit coloca em risco: «Desde que as pessoas em Manchester tenham poder não vão deixar que essas mudanças políticas afetem a cena musical», diz Lucy. «As nossas bandas são constituídas por gente de todo o mundo e é importante que isso se mantenha assim. Os mancunians vão lutar até à morte por essa causa.»


Reportagem publicada na edição 282 da revista Volta ao Mundo, em abril de 2018.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.