Entre a recuperação e o progresso. É a isso que se assiste em Leiria. O centro histórico tem cada vez mais motivos de interesse e já se pensa no futuro. Está na hora de um grande evento.

Texto de Paula Sofia Luiz
Fotografias de Ricardo Graça/GI

Passear nas ruas estreitas onde a arquitetura de Ernesto Korrodi alberga agora mais comerciantes do que moradores, onde os bares, restaurantes e lojas tomaram conta do cenário. Leiria já não é a noite do Terreiro (Largo Cândido dos Reis) de que os estudantes do Politécnico tomaram conta nos anos 1990. É a cidade que quer ser Capital Europeia da Cultura em 2027, e por isso vai ensaiando em todas as áreas, com a preciosa ajuda dos que a fazem viver, todos os dias. «Somos a cidade mais bem posicionada do país, geograficamente. Mas Leiria ainda depende muito da iniciativa privada.»

Quem fala assim é Vasco Ferreira, peça importante nesse puzzle do centro histórico, que a partir da Praça Rodrigues Lobo tem criado um leque de alternativas para quem gosta de boa comida, ou tão‑só de apreciar a vista para o castelo, e acompanhar um momento de lazer com um bom copo de vinho ou cerveja artesanal. Vasco e o sócio, Sabino Carvalho, complementam‑se bem. A sociedade já vinha do tempo dos pais, na área do têxtil, e quando os filhos acabaram os cursos, juntaram‑se os dois à esquina daquele edifício. «A nossa ideia sempre foi valorizar a cidade, contribuir com projetos que tragam valor acrescentado», conta Vasco.

A hora do Mata Bicho

Começou pelo Chico Lobo, seguiu‑se o Lobo Mau, mas é no Mata Bicho – Real Taverna que conta esta história, num capítulo que começou em 2011. É hora de jantar e cheira a petingas em molho de escabeche na mesa do lado. Os petiscos colaram‑se à imagem da casa, há quem não prescinda deles ao final do dia, na esplanada que mora ali durante o ano inteiro, fintando o inverno. Mas há um rol de especialidades naquela Taverna, para saborear ao jantar: arroz de garoupa, polvo à lagareiro, cataplanado mar, pastéis de bacalhau com arroz de tomate.

Depois há o forno a lenha, sempre pronto a fazer estalar a piza caseira. Entre a ampla sala do edifício Zúquete (que até ao século XIX foi o Palácio dos Marqueses de Vila Real) e a esplanada da praça, há capacidade para servir oitenta pessoas. «Metade dos nossos clientes são turistas», conta Vasco, que não raras vezes encaminha uns e outros para outras experiências, no vizinho Chico Lobo. «Ali temos uma cozinha mais inovadora, de gastropub, com risotos, massas e hambúrgueres arrojados», descreve o empresário que anda com a ideia de brindar a praça com sets musicais, festas after‑work, mal o verão se anuncie.

Tostas de morcela? Ora Eça…

Atravessar o centro histórico de Leiria não é apenas uma viagem no tempo, antes uma experiência intercultural. Há a comida indiana que leva seguidores até à Rua Gago Coutinho, paralela à Rua da Misericórdia, onde a antiga igreja deu lugar ao Centro de Diálogo Intercultural, junto à Casa dos Pintores, retratada por inúmeros artistas. Ali por perto há as tascas mais ou menos antigas como o Porto Artur, onde a Alzira e o Abel adivinham o gosto de quem os procura; ou o bar marroquino Nekob, ideal para apreciadores de chá. Ficaram gravadas naquela zona as marcas da comuna judaica dedicada em tempos à tipografia e ao comércio, e que hoje convivem bem com as primeiras lojas alternativas (A Garagem Est.1990 e a Tucha), dedicadas ao punk e ao gótico. Estamos na cidade onde a associação Fade In criou o festival Entre muralhas, pronto a saltar para fora do castelo no próximo agosto.

O centro histórico de Leiria é hoje uma viagem pela gastronomia internacional. A cada canto, um petisco diferente.

Qualquer dessas artérias vai desaguar na Rua Direita (o nome certo é Barão de Viamonte), que desce até à Sé. É ali que Susana Ventura e Luís Ferreira abrem todos os dias a porta do Espaço Eça, dedicado ao escritor, que celebrizou toda aquela zona da cidade no romance O Crime do Padre Amaro. Há quatro anos, o casal resolveu escrever a própria história nesta aventura. «Pensámos numa cafetaria dedicada ao Eça, com uma biblioteca em que fosse possível ler a obra dele, um espaço para alimentar a alma mas também o corpo», conta Luís. E isso faz‑se com tostas de alheira, sardinha ou morcela de arroz, produto regional, acompanhadas de sumos naturais, vinho a copo ou cerveja artesanal. Depois há os bolos caseiros que Susana faz todos os dias. No tempo que lhe sobra, dedica‑se à marca de artesanato que criou, há anos, no mesmo centro histórico de que é devota.


Ficar a caminha da praia

O verde do pinhal envolve o Villas da Fonte – Leisure & Nature, a15 quilómetros de Leiria e a dez minutos da praia do Pedrógão. Emília Pinto começou por construir «umas casinhas de madeira», mas uma amiga ligada ao turismo incentivou-a a avançar para o hotel. «Este é um espaço sobretudo para famílias e casais, um lugar de tranquilidade», conta Emília. Desde 2014 já acrescentou ao projeto restaurante e bar, além dos dez bungalows (com capacidade para seis pessoas) e cinco quartos. A decoração é inspirada no mar. Cá fora há bicicletas à espera de quem queira aventurar-se. Quem prefere ficar tem hidromassagem, piscinas (interior e exterior) e um jogo de xadrez gigante, no jardim.

Aroeira, Monte Redondo.
Web: villasdafonte.pt
Quarto duplo a partir de 60 euros por noite (inclui pequeno-almoço)


Destino: Apartado 28

«A Rua Direita é torta, os sinos estão fora da Sé, o rio corre ao contrário – em Leiria tudo assim é.» O ditado antigo corre pela história desde há muitas gerações, numa terra que fez dessas fraquezas forças. Passando o Largo do Gato Preto, tão pitoresco, como se o destino fosse a Avenida Heróis de Angola, há um desvio obrigatório desde há alguns meses: o Apartado 28. Dois amigos sonharam o espaço durante anos, fizeram uma pausa nos outros negócios (ele designer de sapatos, ela decoradora de interiores) e lançaram‑se na recuperação de um edifício.«Mais do que um café», pode ler‑se na parede do fundo do bar, de frente para o palco por onde passam músicos de jazz, soul, rock ou punk, ao fim de semana.

No andar de cima, há quatro salas cuidadosamente decoradas e preparadas para reuniões, a que se junta sempre uma exposição temporária de um artista convidado, e uma ou outra marca de roupa, sapatos ou acessórios. Até final de maio, é Helena Cadete quem ocupa o espaço.

«Sempre quisemos que o bar fosse uma oficina de cultura, ao serviço dos diversos criadores», conta Humberto, enquanto saboreia um Selo Verde, o cocktail mais pedido da carta. É uma mistura de xarope de maçã com sumo de limão e vodca, uma explosão de cor e sabor. O Apartado 28 é fiel depositário de um brunch todos os dias, com croissants, éclairs e outros bolos a fazer lembrar Paris, onde os dois amigos se conheceram.

Livros, memórias e uma cafetaria em Arquivo

Regressando ao centro pela Avenida Combatentes da Grande Guerra, há tesouros guardados na Arquivo – Bens Culturais. À primeira vista pode parecer apenas uma livraria, mas quando passamos a porta número 53 percebe‑se a diferença. Os livros fazem sempre companhia às exposições, aos debates, ao clube de fotografia, clube de leitura, tudo enquadrado numa agenda cultural que chega a todas as idades, com programas que pensam no público desde a infância à terceira idade.

Alexandra Vieira herdou dos pais a livraria (fundada em 1980), mas em 2000 quis fazê‑la crescer. Mudou‑a para outra casa, onde houvesse espaço para a cafetaria, por exemplo. «Os arquitetos acompanharam na perfeição o que se desejava para aquele espaço já por si tão bonito, cheio de luz», conta, ela que acedeu ao pedido do pai (entretanto falecido), José Ribeiro Vieira, um homem cuja marca ficou na cidade através de outros canais, como o Jornal de Leiria.

Da literatura à animação noturna, Leiria tem muito por onde escolher. Dê-lhe tempo e espaço.

Alexandra deixou a sociologia engavetada e, com a ajuda de João Nazário (atual diretor do jornal) e do braço direito que é Susana Reis, tem levado a bom porto essa ideia de tornar a Arquivo uma verdadeira casa de cultura, em todas as dimensões. A mais recente aposta são as visitas dançadas às exposições, com a bailarina Inesa Markava. «A agenda não para e as ideias também não», sublinha Susana. Só nos primeiros meses do ano já por ali passaram Sobrinho Simões, Afonso Cruz, Gonçalo M. Tavares, António Barreto. António Lobo Antunes foi lá várias vezes. Saramago não foi ao edifício, mas juntou‑se à Arquivo numa Feira do Livro da cidade.

Ao Largo da comida e amigos

Quando o Sol se põe, é Ao Largo que Leiria se junta, num misto de «comida e amigos», como fica claro no lema deste restaurante que privilegia a cozinha «mais tradicional, de conforto». À mesa chega parte dessa comida bem portuguesa e tradicional, inspirada em vários cantos do país. «A comida são pessoas, lugares e memórias», sublinha Sofia Xavier, que juntamente com o irmão Miguel e a cunhada Joana Areia e o amigo Arlindo Cid formam o quarteto que aqui «atua» de terça a domingo, com a preciosa ajuda de mais quatro pessoas.

São também essas pessoas que fazem a diferença no atendimento, tão notada por quem aqui entra, seja para saborear o atum braseado, a alheira com ovo de codorniz e grelos, a morcela de arroz com pimento ou outro qualquer petisco. «Todos os dias há uma carta nova», conta Sofia Xavier, que há um ano deixou a paginação do Diário de Notícias para se dedicar a este sonho antigo. «Sempre quis ter uma tasca», sorri. A noite já se pôs no coração de Leiria. Na rua pedonal, brincam os mais novos, enquanto os mais velhos se deliciam com o melhor da vida, prometido no slogan do Ao Largo: comida e amigos, nem mais.


Guia de Leiria

COMER

Mata Bicho – Real Taverna
Das 10h30 às 00h00; quinta a sábado, até às 02h00. Não encerra
Preço médio: 25 euros
PÇ. RODRIGUES LOBO, 3
TEL.: 244821723
WEB: MATABICHO.COM

Chico-Lobo
Das 09h00 às 00h00; quinta a sábado, até às 02h00. Encerra ao domingo.
Preço médio: 15 euros
PRAÇA RODRIGUES LOBO
TEL.: 244821723
WEB: CHICOLOBO.PT

Ao Largo
Encerra à segunda.
Preço médio: 15 euros
RUA DR. CORREIA MATEUS, 36
TEL.: 911555323
WEB: FACEBOOK.COM/AOLARGOLEIRIA

Espaço Eça
Das 09h00 às 19h00.
Encerra ao domingo.
Petiscos a partir de 3,50 euros
RUA BARÃO DE VIAMONTE, 10 A
TEL.: 244091950
WEB: FACEBOOK.COM/ESPACOECA

Restaurante Porto Artur
Das 08h30 às 00h00.
Encerra ao domingo.
Preço médio: 7 euros
RUA RODRIGUES CORDEIRO, 21
TEL.: 244823270

COMPRAR

Arquivo – Bens Culturais
Das 10h00 às 20h00.
Encerra ao domingo.
AVENIDA COMBATENTES DA GRANDE GUERRA, 53
TEL.: 244822225
WEB: FACEBOOK.COM/LIVRARIA.ARQUIVO

A Garagem Est. 1990
Das 11h00 às 20h00.
Encerra ao domingo.
RUA MIGUEL BOMBARDA, 12
TEL.: 244825757
WEB: FACEBOOK.COM/GARAGEMEST.1990

SAIR

Apartado 28
Das 15h00 às 02h00; sexta e sábado, até às 03h00.
Encerra ao domingo e à segunda.
RUA ALMEIDA GARRET, 8
WEB: APARTADO28.COM

Nekob – Maroc Café
Das 20h30 às 02h00.
Não encerra.
TEL.: 918668084
WEB: FACEBOOK.COM/NEKOBMAROCCAFE


Reportagem publicada na edição de julho de 2018 da Volta ao Mundo (número 285).


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