São nove e meia da manhã. Localizamos a minivan numa das praças do centro histórico de Florença. Entramos e seguimos viagem. Andamos pouco mais de vinte quilómetros e paramos. A partir daqui passamos das quatro às duas rodas. Não levamos os cabelos ao vento porque é obrigatório o uso de capacete, mas a brisa enche-nos o peito de ar e a paisagem, de liberdade. Percorremos de Vespa as pequenas estradas do countryside florentino. O cenário é pintado de ocres e verdes. Circulamos pelas colinas da Toscana e diante dos nossos olhos desfilam as vinhas do Chianti, o famoso vinho tinto da região muitas vezes chamado bordeaux italiano.

Como tudo em Itália – e especialmente em Florença –, também (e até) a história de Chianti começa há uns quantos séculos. Aponta-se o xiii para os primeiros registos documentais sobre as montanhas de Chianti em torno de Florença. E como tudo na capital da Toscana, também o Chianti teve mão dos Médicis: em 1716, Cosimo III de Médici delineou a área de produção oficial deste vinho e ainda hoje, depois de muitas outras «delineações», é considerada a zona do Chianti Classico.

Não era nosso objetivo explorar tudo. Queríamos apenas sentir o pulsar desta paisagem cinematográfica e terminar o passeio com o cheiro do vinho no copo – e o sabor na ponta da língua. Foi o que fizemos, parando a moto em sítios estratégicos:
na enoteca Le Cantine di Greve in Chianti e no Museo del Vino, na aldeia medieval Castello di Montefioralle, considerada uma das mais belas de Itália, e acabámos com um almoço verdadeiramente toscano. Regado com Chianti, claro! Mas não é preciso andar de moto nem sair de Florença para a provar em toda a sua essência. Basta dar tempo ao garfo. Ele vai encontrar o(s) caminho(s).

Vale tudo, até tirar trippa

Simples, abundante, humilde, fresca, local, tradicional. São seis caraterísticas da cozinha toscana, mas podiam ser tantas mais… Aqui, crê-se num ditado: «Cozinhar como a nossa mãe é bom, cozinhar como a nossa avó é ainda melhor!» Para comer bem em Florença não é preciso muito. Só ter em atenção que é uma cidade que recebe milhões de turistas por ano e, por isso, é fácil atirar ao lado. Mas igualmente fácil acertar no porta-aviões. Começar no Mercado Central não é má política. Fica em San Lorenzo, o bairro com nome do santo que foi queimado vivo na brasa, em cima de uma grelha. Reza a lenda que a meio da «tosta» o mártir ainda recomendou aos executores: «Podem virar-me agora, este lado já está bem assado.»

O maior e mais antigo mercado alimentar da cidade foi erguido em 1874. Feito de ferro e vidro, encerra uma espécie de best-of dos produtos alimentares italianos. Nas bancas, desfilam em toda a sua beleza variedades quase infinitas de cogumelos, trufas, manteigas de trufas e compotas de trufas, enchidos como os salumi, as salsiccia di cingale (salsicha de javali), presuntos de todas as idades e proveniências, queijos, pastas, legumes, pão (atenção ao pane toscana!)… E até azeites e vinagres balsâmicos de diferentes idades, com direito a balcões de provas. Uma ronda por aqui chega para perceber porque os cozinheiros toscanos acreditam ser seu dever não modificar os ingredientes, antes revelar a sua glória inata. Os produtos não são bons… são excelentes!

Este é também um bom local para experimentar a trippa, uma das especialidades máximas da cidade, com direito a venda exclusiva em rulotes espalhadas pelas ruas, os trippai. A trippa é parecida com a nossa à moda do Porto, igualmente resultado de uma boa dose de entranhas, mas aqui misturadas com molho verde ou picante.

Vale a pena cruzar as pontes que ligam a margem direita à margem esquerda de Florença. E perceber como a cidade assume uma personalidade em cada um dos lados.

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A frugalidade é um substantivo que geralmente se cola à culinária florentina. Por vários motivos e o primeiro tem que ver com o facto de aproveitarem a vaca integralmente – from nose to tail, como dizem os ingleses. Depois, há que dizer que outra das especialidades da cidade é o lampredotto, que mais não é senão estômago marinado durante um par de dias. E ainda… acrescentar que, se em Florença quer ser florentino, é fácil arranjar no mercado um talho onde comprar pulmões.

Os toscanos são mangiafagioli (come-feijões). O feijão aqui dá-se bem com tudo e com todos: a solo, simples ou com azeite, na sopa (ribollita, que também leva pão) ou como acompanhamento… A cozinha toscana é camponesa de alma e coração e não se envergonha disso. O que não significa campónia e muito menos pouco criativa. Se não acredita, tem duas hipóteses: não sair do seu lugar nas próximas linhas ou entrar imediatamente para o avião.

Bella bistecca

Não são precisos concursos nem referendos nem sondagens. O prato mais emblemático desta cidade à beira do rio Arno é a bistecca alla fiorentina. E para quem não sabe o que é, imagine-se uma costeleta de vaca tipo desenho animado. Com cerca de cinco centímetros de altura, mais de um quilo de carne da melhor qualidade (se possível da raça Chianina), grelhada na brasa, de preferência em madeira de castanheiro. Mal passada, claro. Com sangue a sair-lhe pelos poros, pois sim. Temperada apenas com sal e pimenta e um pouco de azeite no final. A bistecca é como a maioria dos cozinhados desta região a norte de Itália: simples, feita com produtos frescos e de boa qualidade e com muito poucos ingredientes. Divinal, em suma.

Não faltam lugares em Florença para provar a verdadeira bistecca. Nós recomendamos um entre muitos: o Boccanegra (Via Ghibellina 124r), por ter uma boa bistecca e uma esplanada bem florentina, ambiente descontraído e também pela melhor focaccia provada na cidade, feita em forno a lenha. No Alle Murate (Via del Proconsolo 16r) também se serve bistecca. Neste restaurante de autor, a chefe Giovanna Iorio faz uma «interpretação de bistecca». Aliás, todos os pratos do menu combinam receitas ancestrais e ingredientes sazonais com um olhar contemporâneo.

A bistecca do Boccanegra faz-se acompanhar de batatas e salada de pimentos assados. E vem com tudo o que é caraterístico deste prato made in Firenze: sangue, muito sangue.

O Alle Murate é um restaurante de alta-cozinha. Se ficássemos por aqui, ficava praticamente tudo por dizer. Porque o Alle Murate é também um minimuseu. Para além de se provar um prato de ravioli com cebolas doces que parece caído do céu, faz-se uma visita ao Inferno de Dante… Nas paredes do restaurante descobrem-se frescos do século XIV onde figura o poeta e pai da língua italiana, o florentino Dante Alighieri, e umas ruínas onde ainda se podem ver os pilares de madeira que sustentavam a cidade. É restaurante, sim senhor. Mas é também um museu vivo, que fornece inclusive um audioguia em várias línguas. Onde, senão em Florença?…

Fazer renascer

Florença é um museu vivo. Em cada esquina, uma estátua; em cada praça, um monumento; em cada loja, uma pintura. Não é preciso entrar nas galerias para apreciar arte e não é preciso ser apreciador de arte para ver frescos originais e outras relíquias.

A Officina Profumo – Farmaceutica di Santa Maria Novella (Via della Spada, 16) é um exemplo. É certo que abriu uma «sucursal» em Lisboa há uns anos, mas é na mesma incontornável a visita a esta loja-mãe, ao lado da Basílica de Santa Maria Novella, no bairro homónimo. É mais do que uma loja. É também ervanária, perfumaria, é antigo convento e até tem frescos medievais e o maior claustro da cidade. No seu jardim de ervas, os antigos monges procuravam a cura e ainda hoje são vendidos nestes balcões vintage muitos «remédios santos».

Está visto que o céu também é feito de maravilhas terrenas e por isso é obrigatório dirigirmo-nos para o centro do centro histórico para circular entre os bairros Duomo e Santa Croce. O desafio é tentar escapar às cotoveladas dos turistas seniores que enchem todas as ruas, todas as praças, todas as esplanadas e todos os museus. Por isso, só vale a pena fazer esta «corrida de obstáculos» com um gelato na mão. Duas hipóteses: nas imediações da belíssima catedral, o Duomo, fica a geladaria Grom (Via del Campanile), que não destoa das restantes atrações do bairro: tem, normalmente, fila à porta. Vale a pena esperar um bocadinho e pedir um cone com crema di grom, feito de bolacha e chocolate…

Não é preciso caminhar muito para sair do Duomo e entrar em Santa Croce, nome do bairro e da basílica gótica que guarda o túmulo de Michelangelo esculpido por Giorgio Vasari. Todas as peregrinações neste bairro devem começar ou acabar na Gelateria di Neri (via dei Neri 20/22r), com muitas, muitas, muitas bolas de gelado de ricotta com figo!

Cruzes credo

Em Florença, e especialmente em Santa Croce, a gula não pode ser pecado. E se for, há muitas igrejas onde se confessar. É que esta área, além de rica em monumentos e museus, é considerada o epicentro gourmet da cidade. A isso não é alheio o facto de ser aqui que Fabio Picchi decidiu instalar o seu emporio gastronómico-cultural. Picchi é uma personagem de Florença. Em 2004, a prestigiada revista Wine Spectator apelidou-o de «mestre mundial dos ingredientes humildes», e Patricia Wells, uma crítica quase lendária, considerou o restaurante um dos seus dez preferidos em todo o mundo. Picchi abriu o Cibrèo em 1979 (via del Verrocchio, 8r), mas entretanto, à volta da pequena praça Sant’Ambrogio, já inaugurou a trattoria Cibrèino, para refeições mais económicas, o Caffè Cibrèo para almoços e cappuccini e o Teatro del Sale para jantares com espetáculos.

Para que conste, no Cibrèo, e apesar do espírito criativo do seu mentor, a tradição gastronómica florentina é elevada ao seu expoente máximo: receitas antigas, ingredientes «humildes» (e filas à porta). Salsicce di maiale con fagioli e cavolo nero é um dos pratos emblemáticos. Leva o quê? Feijão e couves, pois claro. O cheesecake do Caffè Cibrèo é delicioso, mas é importante guardar espaço para o chocolate. Umas ruas abaixo está a Bottega del Cioccolato (via Vincenzo Gioberti, 61), do mestre chocolateiro florentino Andrea Bianchini. E depois, para um meio de tarde delicioso ainda no mesmo bairro, é fundamental visitar aquela que é considerada a melhor pastelaria da cidade. Na Dolci&Dolcezze (piazza Cesare Beccaria, 8r) é difícil escolher, mas há pelo menos que provar o bolo de chocolate que dizem ser o melhor do mundo. Não tem o nome mas é bem capaz de ter o proveito…

Florença é uma cidade para esquecer preconceitos e assumir clichés. O final do dia sobre o rio Arno é, de facto, um cartão postal inesquecível. Deixar um cadeado na Ponte Vecchio para selar um amor eterno é obrigatório (ou não?).

O rio é uma passagem…

A rive gauche de Florença é Oltrarno. Oltrarno significa «além-Arno». Na margem esquerda do rio fica aquele que corre o risco de ser o bairro mais interessante da cidade. Uma mistura entre Paris e o Bairro Alto, uma zona alternativa e chique, descontraída e realmente florentina. Na Via Santo Spirito 4 fica o Olio & Convivium, um restaurante gastronómico, um bar de vinhos, uma olioteca, uma mercearia com mais de uma década. Gerida por uns sexagenários charmosos (à boa maneira italiana), vende desde paste, queijos e os prosciutti mais espetaculares a sardinhas em lata made in Portugal – «as melhores do mundo», segundo os proprietários.

Foi neste bairro, muito menos povoado de turistas e onde finalmente nos cruzámos com alguns florentinos, que conseguimos sentir a cidade em toda a sua complexidade. Sentámo-nos numa praça, sem pressas. Fechámos os olhos. Ouvimos. Cheirámos. Tomámos um cappuccino na pequena esplanada do Caffè degli Artigiani na pequeníssima Piazza della Passera. E aconteceu. O cheiro do café acabado de tirar, o ribombar de um sino ao fundo, e ainda outro passados apenas uns minutos, um suspiro de tranquilidade. Ma que bella!

Esta é uma das praças mais bonitas de Florença, mas há que vivê-las todas. Levar uma fatia de piza e sentar-se nos degraus da Igreja de Santo Spirito e ver o giro que ali acontece sobretudo ao final do dia e início da noite. Passar de novo para a outra margem e observar os passantes na Piazza della Signoria, assistir a concertos ou a jogos mais ou menos espontâneos na Piazza di Santa Croce, aproveitar o Piazzale del Gusto, evento gastronómico a decorrer até outubro junto à Piazzale Michelangelo…

Mas agora são sete da tarde e está na hora dos aperitivi. Nesta cidade, todas as desculpas são boas para tomar um copo de vinho, para entrar numa enoteche e beber um Chianti Classico e petiscar um panino (sanduíche) ou um crostino (tosta), de preferência com enchidos e queijos italianos. E isto faz-se a qualquer hora do dia ou da noite em Florença, mas a hora dos aperitivos é uma das mais animadas (e económicas). Entre as seis e as nove, aproximadamente, é seguir até ao Circolo Aurora na Piazza Torquato Tasso (em Oltrarno) e pedir um ou mais copos desses Chianti famosos. Isso dará direito a comer o que estiver na mesa. E neste bar o que está na mesa é muito bom.

Quando Stendhal visitou Florença, em 1817, afirmou ter tido «sensações celestiais». Hoje é diagnosticada a «síndrome de Stendhal» a muitos visitantes desta cidade que foi dos Médicis e agora é de todos. Florença é pequena mas tão rica que pode provocar falta de ar. Quando a ansiedade se apodera de nós, há uma solução fácil: marchar até à Ponte Santa Trinita, admirar a silhueta da Ponte Vecchio, a mais antiga e encantadora de Florença (de 1345) e respirar. E pensar: não há de ser a última vez.

Conselho à navegação: esquecer os mapas. A torre do Palazzo Vecchio ou o campanário da Duomo indicarão o caminho. E aqui todos os caminhos não precisam ir dar a Roma…


 

Agradecimentos

TAP Air Portugal
flytap.com
ENIT Italia – Agenzia
Nacionale del Turismo
Tel.: 217935513
[email protected]
enit.it


O que ver

Catedral Duomo
Galleria degli Uffizi
Palazzo Pitti e Giardino di Boboli
Galleria dell’Accademia
San Miniato al Monte

Onde ficar

Plaza Hotel Lucchesi
A room with a view. É uma imagem romântica à partida. E então neste hotel, à beira do rio Arno, é uma realidade. A localização e as vistas de alguns quartos são o expoente máximo deste alojamento. Uns virados para o rio, outros sobre a Igreja de Santa Croce, a torre do Palazzo Vecchio e a cúpula do Duomo. Mais para quê?
Duplo a partir de € 120.
Lungarno della Zecca Vecchia, 38
Tel.: +3905526236
plazalucchesi.it

Una Hotel Vittoria
Cadeiras que são rabos bem feitos, portas de quartos que parecem pinturas renascentistas. Design e arquitetura, bicicletas à disposição e pequeno-almoço generoso são algumas das caraterísticas deste hotel de uma cadeia italiana que pode não ter a melhor localização (fica em San Frediano), mas compensa todas as distâncias com a proximidade de Oltrarno e do Parque delle Cascine – perfeito para os desportos e para cirandar nas tais bicicletas.
Quarto duplo a partir de € 80.
Via Pisana, 59
Tel.: +3905522771
unahotels.it

Porta-moedas

Utiliza-se o euro e pode fazer-se uma viagem low ou high cost em Florença. Difícil é o meio-termo. Os hotéis mais baratos rondam € 60/noite; os de quatro e cinco estrelas andam por € 300. Uma refeição ligeira numa trattoria custa cerca de € 10, mas num restaurante de alta-cozinha não sai por menos de € 50. Um gelado ronda € 4 e um café custa, em média, € 1,50.

Texto de Mónica Alves - Fotografias de Constantino Leite
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