Primeiro, uma confissão: entrar em Kotor foi obra do acaso. E, como tantas vezes acontece, o não planeado acaba por sair tão bem ou melhor do que os trajetos desenhados a régua e esquadro. O elemento surpresa terá certamente influenciado a nota final que atribuímos à cidade, uns 9 pontos em 10, mas ela merece cada ponto e cada vírgula. Depois de largas centenas de quilómetros por estradas de Montenegro, que faz fronteira com a Sérvia, Kosovo, Albânia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, Kotor foi uma lufada de ar fresco. Estávamos no final da viagem pelo país e o pensamento ia já em modo TGV com destino a casa. Então, o que tem Kotor que nos fez abrandar e ficar? O cenário. Quer se saiba ou não da existência de uma Kotor no mundo, quem por ela passa pode sentir várias coisas: indiferença não será uma delas. Segunda confissão: tínhamos acabado de ser multados, por falta de cinto de segurança. Isto, quilómetros antes de entrar na cidade. O ânimo não estava, portanto, elevado. Valeu-nos a generosidade de Kotor, que absolveu todos os nossos «pecados».

Apesar de começar a aparecer nos roteiros turísticos, Montenegro, de uma forma geral, não compete com a vizinha Croácia. Por enquanto, a afluência de visitantes é quanto baste para que a autenticidade se mantenha. Mas talvez não o seja por muito mais tempo. Um dos pontos que nos atraiu, assim que avistámos Kotor, foi o porto. Não propriamente o porto, mas os barcos que lá estavam atracados. Como é que numa terra tão pequena, perdida na costa do Adriático, reluzem tantos «diamantes»? Kotor quer que o seu porto recupere a importância que teve a partir da Idade Média. Os últimos séculos assistiram ao desenvolvimento do comércio e dos assuntos marítimos. Aqui eram negociados os bens que chegavam de outras partes do mundo e consta que é a única cidade, desta região, que mantém a tradição marítima: a marinha está ativa há mais de doze séculos e continuam a ser usadas a indumentária e as cerimónias originais.

Cidade reerguida. Com o terramoto de 1979 muitos dos antigos monumentos e muralhas foram danificados.

De há uns anos para cá, além do investimento nas infraestruturas, o imposto sobre serviços marítimos foi diminuído para atrair capital estrangeiro. É mais em conta ter aqui um barco de recreio atracado do que na Croácia ou Itália. Pelo menos, é o que diz quem os tem. Porto Montenegro, por exemplo, tem na Baía de Kotor uma marina com vários serviços associados, para além de apartamentos e hotel. Outros grandes grupos estão a investir na região com o objetivo de a transformar num pequeno paraíso destinado a orçamentos substanciais. No verão veem-se cruzeiros de Veneza e da Grécia e muitos turistas de um dia vindos de Dubrovnik, já que a cidade fica a apenas duas horas da fronteira com a Croácia.

Kotor

Considerada uma das cidades medievais mais bem preservadas, Kotor tem cerca de 2000 anos. É pequena, labiríntica, rica e quente (no verdadeiro sentido do termo, sobretudo em agosto). Antes de avançar pela zona antiga, abraçada por muralhas, há que parar no mercado que se desenvolve junto à entrada; é uma antevisão do que a gastronomia local tem para oferecer. Entre frutas, legumes, vegetais coloridos e aromáticos, presunto e mel destacam-se as «joias da coroa». Para quem gosta de queijo, há os com pinhões, nozes, presunto, paprica, pesto, de cabra, ovelha e vaca. A variedade de cogumelos selvagens é ainda maior, já que cerca de metade do território montenegrino é floresta. Há peixe, como em todos os mercados, porém aqui encontra-se um que nos é especialmente familiar: vendem-se sardinhas, mas preservadas em sal durante três meses. Estas iguarias tradicionais são acompanhadas por vinho branco misturado com meio copo de água – é assim que o bebem por cá. Os produtos são locais e quem os vende tem orgulho em dizer que tudo o que ali está exposto é daquela terra dos Balcãs.
A cidade antiga é seguramente a parte mais bonita. Desenvolve-se dentro de muralhas com cerca de 20 metros de altura, levantadas no século xv como proteção aos ataques do Império Otomano. Kotor sofreu três grandes terramotos: nos séculos xvi e xvii, ficaram danificados muitos edifícios emblemáticos, cujos resquícios foram mais tarde incorporados em novas estruturas de estilo barroco. Mais recentemente, em 1979, a terra voltou a tremer e mais uma vez vários marcos arquitetónicos foram afetados.

A banhos. Perto da cidade não há praias de areia branca, só um espelho de água irresistível. A toalha estende-se nas pedras.

Mesmo depois de tantos abanões, a cidade tem praças encantadoras e vários modelos de arquitetura medieval preservada ou restaurada. Conta uma história preenchida com ocupações de vários povos, o que se reflete na arte e contribui para a sua beleza. Tem múltiplas influências, já se chamou Katareo, Dekatera, Katarum; já pertenceu a gregos e a romanos, a russos e a franceses. Esteve sob o controlo veneziano durante cerca de quatro séculos e esta herança está por toda a parte, incluindo nas pequenas praças e nas igrejas. Cada século, principalmente entre os xvi e xix, tem pelo menos um edifício emblemático que o representa, um carimbo identitário na cidade. Cada novo governante trazia na bagagem a sua própria cultura e misturava-a com a preexistente.

É notório o orgulho do povo na sua história, sobretudo na parte em que o Império Otomano, apesar do seu poder nos Balcãs, nunca ter conseguido efetivamente tomar conta daquele território. Em 1878 é reconhecida a independência, a Montenegro, mas a partir de 1918 a sua história escreveu–se sob domínio do que mais tarde seria reconhecido como Jugoslávia. Passou depois a Sérvia e Montenegro até 2006, ano em que o povo foi chamado às urnas para decidir se manteria ou não a união. O povo decidiu que não e Montenegro declarou a sua independência. E isto é um resumo do resumo da história recente daquele país, saltando a parte em que a NATO, em 1999, embarga a Sérvia e Montenegro em resposta à ofensiva de Milosevic contra Dubrovnik. A história ajuda a contextualizar, a perceber um presente que, felizmente, está já longe de ocupações e cedências de identidades. Hoje, Montenegro e a sua Kotor vivem em paz.

Quadro perfeito. Cidade pequena, porto pequeno, montanhas gigantes a desafiar as alturas. A diversidade de Kotor conquista, a cada ano, turistas de todo o mundo.

Um primeiro périplo para tomar o pulso à cidade começa na entrada principal, construída em 1555, quando Kotor estava sob o domínio veneziano (1420-1797), como comprova o leão alado de São Marcos, símbolo de Veneza. Uma vez dentro das muralhas, é caminhar no sentido dos ponteiros do relógio. Apesar de pequena, a cidade velha pode ser bastante labiríntica e facilmente o sentido de orientação fica desgovernado. Mesmo os habitantes por vezes têm de recorrer à alta Cathedral St. Tryphon para voltar a sintonizar a «bússola». Aliás, este edifício merece aqui um parêntesis: é o mais impressionante de Kotor e um bom exemplo da intervenção feita depois do terramoto de 1667; reconstruíram-se as fachadas e acrescentaram–se campanários barrocos. Pelos interiores de telhados abobadados, o altar, o crucifixo de madeira de 1288… vale a pena visitar.

De novo nas ruas, é continuar a seguir os ponteiros do relógio e não há erro: o final do percurso será o ponto de partida. As ruas estreitas desembocam em praças mais ou menos movimentadas. A Trg od Oružja, Praça de Armas, a maior, está cercada por restaurantes, cafés e esplanadas onde é possível assumir o papel de turista, ou seja, sentar e ver gente passar. Nos intervalos desta árdua tarefa, deambula-se pelas ruas de pedra, fechadas ao trânsito, que apelam ao consumo, há que dizê-lo, porque é tudo tão cuidado que apetece ficar e ver mais um souvenir ou entrar numa oficina em que se fazem sapatos à mão. Vão-se encontrando praças com nomes divertidos, como Leite e Flor, mas isto tem uma explicação: era comum atribuírem às praças o mesmo nome do que se costumava transacionar nelas. Em qualquer parte de Kotor saberão explicar onde fica o Palácio Grgurin, construído no século xvii; os dois pequenos canhões, símbolo das muitas batalhas travadas por marinheiros e piratas, indicam a chegada ao destino. Hoje, o palácio alberga o Museu Marítimo, sem dúvida um dos lugares a visitar, não fosse tão afamada a marinha local. Retratos dos capitães famosos, modelos de barcos à vela, instrumentos de navegação, mapas geográficos, gravuras e aguarelas das cidades costeiras, uma coleção etnográfica que testemunha a idade de ouro da navegação de Kotor, do século xvi ao xviii, entre outros valiosos tesouros daquele mar são aqui exibidos. Diz-se que o capitão mais conhecido dá pelo nome de Ivo Vizin. Em 1852, partiu no seu veleiro de pequeno porte para fazer mais uma viagem para troca de mercadorias e acabou por concluir o maior projeto naval do século xix, navegando o mundo de porto em porto.

Labiríntica. A esquadria de Kotor contempla ruas pedonais habitadas por pequenas lojas e oficinas, por bares e restaurantes de sabores do mundo.

 

Fora das muralhas acede-se à Baía de Kotor, ótima para nadar. Exatamente neste ponto, junto à cidade, não se encontram praias de areia branca ou de outra cor qualquer. Aqui, há pedras e não convidam a estender o corpo, mas são suficientemente acolhedoras para o secar antes de voltar à vida da cidade. Nadar nas águas límpidas deste enorme «lago» de água salgada é obrigatório. A temperatura pode ser, porém, o único senão para quem espera encontrar um mini-Adriático. A temperatura do mar que banha Montenegro atinge belíssimas máximas de 27o C; aqui, na baía, é possível encontrar a água entre os 18ºC e os 20ºC.

Às compras. O mercado junto às muralhas é um belo cartão–de-visita da região. Aqui estão os principais produtos, vendidos por orgulhosos produtores locais.

Para se ter uma visão de conjunto e perceber a organização da pequena Kotor há que subir a cerca de 1200 metros de altitude, à fortaleza de St. Ivan. A pé. São mais de 1300 degraus. Estrategicamente surge, a meio da escalada, uma capela que mesmo os menos devotos vão querer visitar: chama-se Nossa Senhora da Saúde, foi construída pelos sobreviventes de uma praga que assolou a cidade em 1572. Muitos apelidam-na de Nossa Senhora do Descanso, justamente por oferecer repouso aos aventureiros dos degraus. Mesmo com paragem pelo meio, o truque é enfrentar cada degrau com a mesma convicção com que se enfrenta o último; acreditar que o exercício físico é uma coisa boa para a saúde; ir parando e apreciando a paisagem; levar água, e, claro, evitar as horas de maior calor. A merecida recompensa não falha quando se chega ao topo e se vê a Baía de Kotor rendida aos nossos pés. A povoação, as montanhas, o braço de água completam um quadro tão perfeito que é capaz de responder à pergunta que entretanto pode surgir a meio da escadaria (porque é que me meti nisto?). Dependendo da hora do dia, a luz incide sobre as montanhas de diferentes perspetivas emprestando-lhes diferentes tonalidades. Quando ficam à sombra, já no final do dia, ganham um tom mais escuro e com ele uma maior carga dramática.

Texto de Petra Alves, Fotografias de Constantino Leite
Leia a reportagem completa na edição de maio 2015 - n.º 247
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