Na cidade do sol e das praias, dos corpos perfeitos, dos bronzeados perfeitos; na cidade em que o mar tem a cor e a temperatura das piscinas; na cidade dos iates, das limusinas e dos charutos fumados longamente, a pensar num tempo que passou. Na cidade americana, cubana e caribenha.


Texto de José Luís Peixoto.

Fotografias de Adelino Meireles, Global Imagens

Talvez tenha sido capaz de pensar em absolutamente nada enquanto boiava na piscina do hotel Mondrian, em South Beach. Nessa suspensão, paralelo ao céu, a temperatura da água conseguia apaziguar-me todos os sentidos. Depois, dei duas ou três braçadas, mas sem obrigação. Logo a seguir, para descansar disso, estendi-me nos degraus que desciam pelo interior da piscina. Sei que sorria, toda a gente sorria e os sorrisos, já se sabe, transmitem-se por contágio. O empregado de camisa branca, calças brancas, sapatos brancos, que se baixou a perguntar se podia trazer-me uma bebida, também sorria. Sim, é claro que podia trazer-me uma bebida. Tão fácil fazê-lo feliz. No outro lado da piscina, um grupo de rapazes e raparigas, corpos trabalhados ao detalhe, tiravam garrafas de baldes de gelo e enchiam cálices. Às vezes, dançavam. Toda a gente dançava às vezes. Até eu dentro de água. A música fazia parte daquele momento.

Mas a razão para a beleza de todas as pessoas que estavam à vista talvez fosse justificada pela harmonia entre o azul e o branco que nos rodeava completamente. Toda uma distância de azul suave e branco. À nossa frente, imensa, a baía Biscayne, cruzada por iates; lá ao fundo, os arranha-céus da baixa de Miami; atrás de nós, a quantidade enorme de andares do hotel, varandas certas, simétricas, feitas de branco e de vidro. A cobrir-nos, o céu, escancarado sobre nós, a assistir à nossa festa.

As imagens estereotipadas de Miami, aquelas que toda a gente recorda a partir de séries de televisão, referem-se a Miami Beach. Apesar de os nomes serem quase o mesmo, administrativa e formalmente, trata-se de duas cidades distintas. Miami é constituída sobretudo por um meio urbano convencional. Por sua vez, Miami Beach é formada por um grupo de ilhas, com uma a destacar-se em tamanho e importância, dedicadas quase totalmente ao turismo e unidas ao território continental por cinco pontes. Em Miami, as pessoas têm pressa de chegar ao emprego e stress; em Miami Beach, o ambiente de férias dura todo o ano. Mas, mesmo aí, especificando mais, as imagens que normalmente são identificadas com Miami são as de South Beach, uma zona a que os locais chamam apenas SoBe. E, mesmo aí, aumentando ainda mais a graduação da lente, chega-se à inevitável Ocean Drive. Esse sim é o centro do estereótipo de toda a região da Grande Miami.

Quase de certeza que os detetives da série Miami Vice (1) atravessaram a Ocean Drive de descapotável muitas vezes. Se o fizeram, confundiram-se com todos os outros descapotáveis que passam numa e noutra direção, devagar, em ritmo de passeio. Com praia de um lado e esplanadas do outro, há pessoas bronzeadas, com óculos de sol, em tronco nu, que passam a pé, de patins, de skate ou de bicicleta. Antes da praia, num relvado, entre as palmeiras, há quem aproveite para se esticar numa sessão de ioga ou para treinar malabarismos. A poucos metros, passeadores de cães seguram muitas trelas ao mesmo tempo. Os polícias, de calções, dão os bons dias a quem passa. Já sobre a areia, nos aparelhos para elevações e abdominais, estão homens musculados, músculos a sério. Do outro lado da rua, sucedem-se esplanadas.

Ioga na Ocean Drive

Nas vitrinas, a palavra «Open» está sempre iluminada. Também nesse lado da rua, as fachadas de estilo déco. As linhas horizontais alargam e as verticais esticam, há uma espécie de consolo na geometria. Ocean Drive é o centro do chamado Art Déco District. Só nesta zona, há mais de oitocentos edifícios a seguirem essa estética. As caraterísticas específicas deste ponto da Florida misturam-se com as caraterísticas gerais do estilo arquitetónico. Assim, nasceu a art déco tropical, presente nestes edifícios através de motivos que se repetem: iconografia náutica e tropical, néons, tons pastel comparáveis a cores de gelados. Os exemplos são muitos, desde o quartel da polícia de praia até uma enorme lista de hotéis: Beacon Hotel, Cardozo Hotel, Breakwater Hotel, entre outros.

Também na Ocean Drive, a sul, seguindo o estilo de uma villa europeia, fica aquela que foi a única moradia privada de toda a rua: a mansão de Gianni Versace. Diariamente, os guias turísticos fazem ali uma paragem para contar a maneira como, em 1997, Versace foi assassinado quando regressava da sua caminhada matinal ao News Café, o mais famoso de toda a SoBe. Esse é um lugar de fotografia obrigatória. Os turistas fazem poses à sua frente. Quando passei por lá, houve um hóspede que veio à varanda em roupão. Atualmente, a mansão de Versace é um hotel. Já não existem moradias privadas na Ocean Drive. O hóspede não se demorou na varanda. Voltou logo a entrar, fotografado dezenas de vezes.

Os preços das diárias nos hotéis vão descendo à medida que se afastam da linha de água. Depois da Ocean Drive, o preço vai diminuindo quarteirão a quarteirão. Isto, claro, com os devidos acertos ao luxo de cada lugar. No Mondrian, onde fiquei, paga-se e recebe-se alguns bens preciosos: a vista deslumbrante, o quarto maior do que muitos apartamentos onde vivem famílias, o chuveiro em que a água cai do interior de um lustre e outros detalhes. Em Miami Beach, há um preço para tudo. No hotel, por exemplo, logo à entrada, ao lado da receção, há uma máquina que ocupa uma parede inteira, onde se pode comprar uma quantidade imensa de conveniências, de livros a calções de banho, de escovas a algemas. Todos os dias chegam milhares de turistas a Miami para viver essa experiência do luxo. Sinto algum pudor em descrever os pormenores de um jantar no Hotel Delano, à beira de uma piscina com dezenas de metros, a espelhar a noite, rodeada de palmeiras. Sinto o mesmo pudor no momento de descrever um almoço de lagosta no Nikki Beach, depois de um banho na praia, a poucos metros. Assim que regressei, quis descrever lugares a alguns amigos. Ainda não tinha contado metade e, por trejeitos nos rostos, já me parecia que talvez fosse melhor parar e não estimular a inveja alheia. Com a justa exceção da minha mãe. Foi a única pessoa que senti que estava realmente contente por eu ter tido essas experiências. Mãe é mãe. Muitas vezes, Miami Beach é esse exagero.

É sair à noite de limusina e, lá dentro, iluminado apenas por luzes roxas, encontrar um par de sapatos de salto alto. Seria muito difícil encontrar a dona daqueles sapatos. Quase todas as mulheres que saem à noite para um dos muitos clubes, bares ou festas, usam sapatos de salto alto e vestido curto, têm poucas diferenças. Quando em grupo, fazem bastante barulho. De dia, como o próprio nome indica, Miami Beach também é a praia. São muitas e extraordinárias. Não há falta de sol ou de postos de vigia dos nadadores-salvadores, muito americanos, como nos filmes. Areia fina, limpa, impecável; água de temperatura e cor perfeitas, como a cor dos olhos de pessoas muito bonitas. A natureza decidiu organizar-se para fazer aquela obra.

E, no entanto, atravessando uma das pontes, caminhando pela baixa de Miami, está-se mentalmente muito longe dessa descontração. Como muitas outras cidades norte-americanas, a baixa não corresponde ao ponto de maior animação social e comercial da cidade. Em vez disso, trata-se sobretudo de uma área financeira, com edifícios de dezenas de andares, todos ocupados por escritórios; com passeios que, à hora de almoço, se enchem de homens de fato e mulheres de tailleur.

Também nesse lado, há uma zona muito diferente. Também muito representativa da realidade de Miami, mas de outra forma. Desde os anos 1960, o fluxo constante de cubanos foi criando e alargando a área conhecida como Pequena Havana. Hoje, em grande medida, Miami é uma cidade bilingue. Para além do inglês, o espanhol é falado muito frequentemente por uma imensa comunidade originária da América Latina, com destaque para mais de um milhão e meio de cubanos, mais de dez por cento da população total do país. Em Pequena Havana, Little Havana, existe uma recriação da vida em Cuba, com restaurantes, barbearias, cafés, fábricas e lojas de charutos, mas nos Estados Unidos. Apesar da música cubana por toda a parte, apesar das ruas cheias de cubanos, há sempre marcas muito evidentes que nos mostram onde estamos de facto.

O castelhano é a primeira língua, mas mistura-se com o inglês. Little Havana é uma zona muito cubana, mas também muito americana. Por todo o lado existem marcos de ferro com jornais grátis que, entre muitas outras coisas, anunciam advogados especializados em imigração, divórcios, violência doméstica; clínicas de cirurgia estética ou de abortos; envio de bolos para Cuba; venda de terrenos em cemitérios ou reuniões dos neuróticos anónimos. Entrei num café, cheirava a café cubano, era servido com algazarra em pequenos copos de papel que se seguravam entre o indicador e o polegar. À entrada, na porta, havia um letreiro onde estava escrito: «Se aceptan food stamps».

O grande centro de toda essa zona da cidade é a oitava rua, conhecida como Calle Ocho. Para além dos diversos tipos de comércio cubano, a rua tem curiosidades como um passeio da fama ao jeito de Hollywood, mas apenas com estrelas cubanas, como Gloria Estefan ou Celia Cruz.
A alguns quarteirões de distância, existe também o Memorial da Brigada 2506, que lembra com uma chama permanente os 114 exilados cubanos, treinados pela CIA, que morreram na baía dos Porcos, em 1961, ao tentarem derrubar o regime de Fidel Castro. Esse é, aliás, o nome mais odiado nesta parte da cidade, esse sentimento está presente em tudo, implícita e explicitamente. Nas montras, há cartazes com fotografias e com o título: «Asesinado por Castro». No interior das lojas, há recordações como a lista telefónica de Cuba em 1958, imediatamente anterior à revolução cubana. Falando com os jogadores do parque de dominós, esse é o seu tema preferido. Todos têm vontade de contar a sua história e as suas razões. E, para além das vozes, há o som das peças de dominó a baterem nas mesas, enquanto são jogadas, ou a baterem umas nas outras, enquanto são baralhadas. Há dezenas de homens sentados à volta dessas mesas ou de pé, a assistirem. Um cartaz define as regras: é proibido estar sem camisa, gritar, cuspir no chão, dizer palavras obscenas, utilizar armas brancas ou de fogo. Quem não respeite estes pontos pode ser impedido de jogar dominó entre duas e quatro semanas.

Ainda no avião, antes de aterrar, nota-se a forma como a paisagem é salpicada por manchas de água. De um modo geral, os terrenos no Sul da Florida são alagados, mesmo nas áreas mais urbanas da Grande Miami. Ainda assim, para chegar a um ecossistema único, é necessário fazer alguns quilómetros até ao Parque Nacional dos Everglades. Esta reserva natural é uma das maiores dos Estados Unidos, apesar de manter apenas 25 por cento do seu tamanho original, e é constituída por uma imensa área pantanosa, que serve de abrigo a centenas de espécies, das quais 36 se encontram ameaçadas de extinção.

O animal que se transformou no símbolo da região é o jacaré, uma das principais atrações das quintas privadas que oferecem passeios pelos Everglades. Os jacarés tanto podem ser vistos no seu habitat, de olhos semiabertos, como se fossem feitos de pedra, e a lançarem-se de repente à água, como em espetáculos de domadores que enfiam a cabeça dentro das suas bocas. Também é possível fazer um passeio pelos Everglades de airboat, ou seja, naqueles barcos que têm uma enorme ventoinha e que parecem deslizar sobre a água.

A viagem começa devagar, o piloto vai numa cadeira bastante alta e tem óculos de aviador. Ao lado de outros turistas, ouço as suas explicações enciclopédicas sobre o clima, os incêndios causados por raios, e ouço os seus ditos espirituosos, avisa-nos que não há vários graus de «molhado», molhado é sempre molhado. Pede-nos, então, para pormos as proteções para os ouvidos. Mesmo com os ouvidos cobertos, percebe-se o ruído imenso dos motores e da ventoinha, muito parecido com o de um avião. E a velocidade aumenta bastante. Avançamos sobre a água e sobre algumas ervas. À nossa volta, há vegetação mais alta. Bandos de pássaros levantam voo à nossa frente. O barco desliza como se não tocasse a água. Sente-se alguma falta de precisão na forma como as curvas são arredondadas, a direção não responde imediatamente, como num carro. Na água enlameada, veem-se animais, tartarugas às vezes. Chegados a uma clareira, o piloto aproveita para fazer algumas manobras mais acrobáticas. Antes, já tinha dado para perceber por que motivo não há vários graus de molhado mas, depois dessas emoções, deu para compreender ainda melhor. Na roupa, a água enlameada era preta; depois de seca, tornava-se cinzenta.

À saída, num balcão com frascos de ketchup e mostarda, estava uma ementa em que, entre outras comidas, havia um petisco de jacaré, a especialidade da casa. Por cinco dólares, decidi experimentar. Depois de poucos minutos, chegou um prato de plástico com cubinhos brancos e palitos. Provei-os numa mesa, ao lado de uma parede com uma pele de jacaré, esticada e pendurada. A carne tinha sido marinada e frita. Pareceu-me uma mistura de frango e de peixe. Pessoalmente, achei demasiado gorduroso, mas ainda bem que provei. Assim, não preciso de provar outra vez.

A área metropolitana de Miami oferece possibilidades inesgotáveis a quem a visita: o deslumbramento de Key West, a tranquilidade de Coral Gables ou de Coconut Grove, as mansões de Star Island, uma ilha artificial coberta por mansões, ou o Museu Vizcaya e os seus jardins. Como se não fosse suficiente, há ainda tudo a que se tem acesso a partir de lá: Miami é um dos principais portos de cruzeiros do mundo, com saídas diárias para as Caraíbas, com as Bahamas bastante perto; Orlando e os seus parques temáticos também ficam a pouca distância; assim como o cabo Canaveral e o Centro Espacial Kennedy, da NASA.

Em Miami, mesmo junto às discotecas mais movimentadas, há grilos à noite. No topo de um edifício novo, com dezenas de andares, ouve-se o mar lá em baixo. E, sem dúvida, trata-se do mesmo mar de há séculos. Muitas vezes, a beleza de Miami intoxica. Tanto pela artificialidade como pela natureza. O magnetismo desse paradoxo é doce. Quando estamos lá, sentimos que o merecemos.


Nota de rodapé

1 Série de televisão entre 1984 e 1990 com Don Johnson e Philip Michael Thomas nos papéis principais.


Crónica de José Luís Peixoto, em Miami


Reportagem publicada na edição de março de 2012 da revista Volta ao Mundo (número 209).

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