País, cidade, praça, música

Uma crónica de José Luís Peixoto

Centenas ou milhares: um número impossível de contar, como as estrelas. São um sonho surreal, um engano de espelhos, uma história exagerada. Avançamos pela praça da mesma maneira que atravessaríamos um rio, submersos. Para onde olhamos apenas vemos mariacheros. Há novos e há velhos, há altos e baixos, gordos e magros. Mesmo quando usam roupas da mesma cor, brancas ou pretas, é fácil perceber a que formação pertencem, mas são tantos que precisam de distinguir-se uns dos outros. Por isso, há grupos vestidos de todas as cores, a apelar para públicos alternativos: vermelho, amarelo, prateado. Tocam os instrumentos habituais da música mariachi, mas, também pela mesma necessidade de afirmação, há grupos com harpa ou flauta, por exemplo, a combinar com guitarras de todos os tamanhos e com a estridência impositiva dos trompetes.

A noite é quente como tequila. O ar queima na pele como a tequila arde ao passar pela garganta e, depois, na barriga e na cabeça. O ar queima como um bafo sem voz, a recompor-se do álcool. Avançamos por este mar de mariacheros, repetição ou variação, não há duas ondas exatamente iguais, não há grupo de mariachi que não tenha o seu estilo próprio, a sua distinção. Se estão a cantar para um casal ou para uma família, as suas vozes formam uma única voz, onde se pode escutar o caminho e o tempo de cada um. Os seus rostos possuem essa consciência de, ao mesmo tempo, serem indivíduos e coletivo. Aqueles que estão desocupados, à espera, com o violino numa mão e o arco na outra, com as guitarras redondas sobre a barriga redonda, cativam-nos para lhes comprarmos uma música. Também o seu castelhano mexicano é uma melodia, merece ser apreciado.

Pode comprar-se uma música? Sim, pode. Essa troca é feita em pesos, mas também envolve sorrisos, de parte a parte, antes, durante e depois.

Nesta enorme praça da cidade do México, com o trânsito lá ao fundo, carros que avançam muito devagar, talvez haja ainda algo dos estados de Jalisco, Colima e Nayarit, onde nasceu a música mariachi. Talvez haja ainda um pouco da calma desses campos, horas longas, descanso por fim. Lá, os músicos usavam uma manta de algodão e um sombrero de palha. Esta vestimenta coberta de enfeites é já daqui, depois da longa viagem entre o campo e a cidade, entre esse e este tempo. É inspirada no visual dos charros, os cavaleiros que praticam a charrería, um conjunto de habilidades equestres, um desporto nacional.

Aqui, na Praça Garibaldi, a música mariachi alimenta a cidade do México. Há quem chegue e, na hora, contrate o grupo e o leve para qualquer outro bairro, para uma festa privada, para um baile. Eles arrumam os instrumentos e vão. Quando terminarem, é para aqui que regressarão, entre centenas ou milhares de outros mariacheros. Quem poderá saber o número certo? Tentam ser únicos, mas sabem que pertencem à mesma natureza. São música. Equilibram o mundo. Dão-nos a trégua de que precisamos para respirar.

 

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