Ponte de Lima, 05/04/2018 - Edição especial Ponte de Lima. Edição 100% dedicada ao concelho de Ponte de Lima. Passeio de bicicleta pelas ecovias de Ponte de Lima.Passadiços das Lagoas. (Rui Manuel Fonseca / Global Imagens)

Os comboios já não circulam, mas o corredor deixado livre pela linha do Dão foi transformado numa ecopista panorâmica de 49 quilómetros, ótima para um passeio de fim de semana. Com paragem em todas as estações, apeadeiros e curvas onde apeteça sentar a apreciar o silêncio, a paisagem, os cheiros da natureza.

Texto de João Mestre
Fotografia de Fernando Marques

A cancela há muito que foi retirada. A guardar a passagem de nível está apenas uma lomba, a lembrar aos automobilistas que a velha linha férrea continua a ter movimento, agora mais ligeiro e movido a pedais. Se bem que quem se lembra do comboio da Linha do Dão fala, não de velocidade, mas da sua lentidão, de como certos troços permitiam acompanhá-lo a passo. «Costumávamos descer com ele ainda em movimento e íamos roubar uvas», recorda António Miranda, chefe de sala e coproprietário do restaurante 3 Pipos, em Tonda.

A mesa farta do 3 Pipos deve ficar para o final da jornada, em jeito de recompensa, mas é ali, em Tonda – ou melhor, na antiga estação que servia a aldeia –, que esta viagem começa. Não porque tenha de ser, apenas por opção: é ali ao lado que fica a No’Clock, uma antiga casa de um trabalhador ferroviário transformada em dois apartamentos acolhedores com quarto, sala, kitchenette e salamandra para o tempo frio. Para estes dias, o que apetece mesmo é ficar no quintal em redor, onde há oliveiras (e, pendurado de uma delas, um baloiço debruçado sobre a velha linha), sombra e uma mesa a pedir piqueniques, uma casinha de madeira que fará as delícias dos mais novos. Apetece ficar. Porém, há o apelo de uma aventura a pedal, e bicicletas à disposição para satisfazê-lo.

A linha do Dão, inaugurada em 1890, ligava Viseu à linha da Beira Alta, em Santa Comba Dão, ao longo de 49,1 quilómetros de carril de bitola estreita. Até que, em 1988, o comboio deixou de circular. Entregue a 23 anos de abandono ficou um trilho panorâmico que em 2011 foi convertido em ecopista.

No’Clock [Imagem: Fernando Marques]
À partida de Tonda, e da No’Clock, duas opções: seguir para a direita, na direção de Viseu, cerca de 35 quilómetros. É para aí que ficam as paisagens, com o Dão por companhia. Mas é na direção oposta que está a viagem. Campos de centeio, vinhas, tojos em flor amarelo vivaz. Há espaços, o cheiro a terra, e o som de uma enxada a cavá-la, são muitas as hortas junto às bermas. E há sombra, muita sombra: túneis de bosque de carvalho, de azinheiras centenárias, que a espaços dão lugar a eucaliptos e mimosas, numa paisagem que vai pintando de cores diferentes.

Corridos cinco quilómetros, o rio Dinha, que vai acompanhando a ecopista à distância, cruza-se com ela, por debaixo da ponte da Tinhela.

Passa-se a estação de Tondela (agora sede de um clube de caça e da Casa do Povo) depois os apeadeiros de Naia e Casal do Rei e, quinhentos metros adiante, a igreja velha de Canas de Santa Maria, um tesouro românico erguido no século XII. Da original, resta a fachada, listada como monumento nacional.

Chega-se a Parada de Gonta com 15 quilómetros nas pernas. Sem pressas, com o devido tempo para saborear o caminho e admirar as paisagens, dando bom uso aos bancos de granito que vão surgindo pela berma, leva-se um par de horas. Em perspetiva: quem começou a pedalar de manhã, já aqui passa a pensar em almoço. Se houver farnel na mochila, há à disposição mesas de piquenique. Se não, no Tempêros Nómadas, na antiga casa da estação, há petiscos como petingas de escabeche, redenho, bolos de bacalhau e uma reconfortante sopa de couve e cenoura ao lume. Além do prato do dia, sempre qualquer coisa de tacho ou tabuleiro, para quem encomendar de véspera Vítor Costa faz pratos especiais – cabrito assado no forno, arroz de cabidela. De volta à estrada, pedala-se com outra coragem.

Dali por quilómetro e meio, um dos troços mais emblemáticos: um túnel de 183 metros de comprimento, iluminado a energia solar. Quando se alcança a luz lá ao fundo, já o chão muda de cor – de verde passa a vermelho, indicação de entrada no município de Viseu.

Num instante se chega a Farminhão, um par de quilómetros adiante, onde a estação foi transformada em bar. No Station Alive, há mesas e bancos feitos de paletes no cais de passageiros, e no cais de mercadorias está Jorge Simão, de berbequim em punho, a finalizar uma segunda esplanada. Para de trabalhar para contar os seus projetos: além do restaurante e do bar, pensa instalar bungalows no terreno em frente, criar um espaço de manutenção e lavagem de bicicletas e criar um miniparque de aventuras.

Próxima paragem: Torredeita. Aqui há ainda um comboio, o único da linha, mantido para a posteridade: uma magnífica locomotiva a vapor comprada em 1890 à alemã Maschinenfabrik, uma carruagem de mercadorias, outra de passageiros e um vagão de carga.

Ao faltar oito quilómetros para Viseu será quase sempre a subir, mas a inclinação é suave e a paisagem continua a surpreender, com a ocasional mancha de bosque, o castiço apeadeiro de Travassós de Orgens e a estação de Tondelinha, agora feita tela para um mural em padrão de zebra, a esplanada panorâmica da Vicicleta, empresa de aluguer de bicicletas, e o perfil da cidade, coroado pelas torres da Sé, que a espaços vai espreitando. A linha de meta, ao cabo de 35 quilómetros, é a Avenida da Europa. É tempo de regressar ao início. À hora combinada, já Prazeres Rebelo, proprietária da No’Clock, está a postos para o transporte de volta ao ponto de partida. Regressa-se, portanto, ao início. A Tonda. E à mesa do 3 Pipos. Corpo cansado, pernas doridas, fome de leão: não se podia ter escolhido melhor.

O 3 Pipos ganhou estatuto de instituição. A fama não é imerecida. Mal se toma lugar numa das quatro salas, logo aterra na mesa uma travessa com pratinhos de petiscos: minipataniscas, favas com chouriço, salada de polvo, moelas. A carta é variada: bacalhau com broa, rojões, arroz de costelas em vinha d’alho, um prato de migas com arroz de feijão para reconfortar também os vegetarianos.

Regressa-se à casa de barriga e alma cheias. Junto à estação de Tonda e à No’Clock, ao cruzar a passagem de nível, está, se se olhar com atenção, um velho letreiro em cimento: «Atenção aos comboios. Pare, escute, olhe. Proibido o trânsito pela linha.» Hoje é o inverso: circular pela linha não só é permitido como altamente recomendável. O slogan de prevenção de acidentes mantém-se e ganhou novo sentido: Parar, escutar, olhar. Sem pressas. Afinal, ninguém terá um comboio para apanhar.

A terra do barro preto
Falar de barro preto é falar na olaria de Bisalhães, classificada Património Imaterial da Humanidade. A de Molelos ainda não chegou à lista da UNESCO, mas para lá há de caminhar. O trabalho do barro preto continua a ser ofício comum nesta aldeia a 5 minutos de carro de Tondela E ainda há quem o faça de modo artesanal. António Marques, na Olaria Moderna, dá seguimento ao ofício que herdou do bisavô, do avô e do tio. É ele quem prepara o barro, quem o molda, quem o coze em forno a lenha.

[Imagem: Fernando Marques]
A cor preta vem da cozedura, quando, no fim do processo, António junta madeira resinosa ao fogo, fecha o ar e deixa o fumo preto fazer o seu trabalho. Após moldagem, as peças são brunidas, polidas com um seixo, de forma a tapar todos os poros. Através deste processo, que pode levar uma hora ou mais por peça, as louças ficam impermeabilizadas e prontas para uso culinário, resistentes a altas temperaturas. Além de serem bonitas de levar à mesa.


Reportagem publicada na edição de julho de 2017 da revista Volta ao Mundo (número 273).


Guia

Ficar
NO’CLOCK
Rua da Estação, 1238, Couço, Tonda (Tondela)
Tel.: 964591215
Web: noclock.pt
Casa T1 a partir de 40 euros por noite (inclui pequeno-almoço)

Comer
TEMPÊROS NÓMADAS
Rua da Estação, Póvoa da Catarina, Parada de Gonta (Tondela)
Tel.: 917532603
Das 09h00 às 20h00 (até às 02h00, «se houver gente»). Encerra à segunda.
Preço médio: 10 euros

STATION ALIVE
Rua da Estação, Farminhão (Viseu)
Tel.: 962246827
Não encerra.
Preço médio: 10 euros

3 PIPOS
Rua de Santo Amaro, 966, Tonda (Tondela)
Tel.: 232816851
Web: 3pipos.pt
Das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 22h00. Encerra domingo ao jantar e à segunda.
Preço médio: 22 euros

Visitar
OLARIA MODERNA
Raposeiras, Molelos (Tondela).
Tel.: 967061360.
Loja encerra ao domingo, mas abre a pedido.

Fazer
VICICLETA RENT A BIKE
Ecopista, km 0,4, Viseu

Saber Mais
Ecopista do Dão
Tel.: 232812156
ecopistadodao.pt

Serra d’Aire: natureza, gastronomia e tradição


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