As grutas chamam turistas de todo o mundo à região centro, mas estas encostas têm muito mais para oferecer: tradição da gastronomia regional e os ofícios artesanais entretanto recuperados.

Texto de Nuno Cardoso
Fotografia de Leonardo Negrão/Global Imagens


Reportagem publicada na edição de abril de 2019 da revista Volta ao Mundo (número 294).

Caminha em passo firme, em ritmo constante. Rui Anastácio conhece estes trilhos melhor do que a palma da mão. «Olha, o tomilho já está a crescer», observa o proprietário do Cooking and Nature – Emotional Hotel, sossegado e apaixonante turismo de natureza de Alvados que tem ajudado a virar atenções para a serra de Aire nos últimos sete anos.

É pelas encostas deste parque natural que se fazem os percursos pedestres, de bicicleta ou equestres organizados pelo hotel de quatro estrelas. Estão sinalizados e podem ser feitos de forma independente ou com guia. Qualquer que seja a direção ou a distância percorrida – até aos 70 quilómetros, passando por Nazaré e Alcobaça –, a moldura é um regalo para o olhar. A fazer companhia ao maçiço calcário estão campos de alecrim e quase 30 espécies de orquídeas, para além de oliveiras, carvalhos, medronheiros e loureiros. Árvores e plantas que servem não só para vestir a serra, mas que são também aproveitadas na cozinha do Cooking and Nature. Agora e no futuro. «Quero produzir o meu próprio azeite, mas tem de ser algo diferenciador», conta Rui, adiantando que, em tempos, já se produziu 200 mil litros de azeite por ano na aldeia de Alvados.

E se lá fora se caminha ao ar livre e se enche os pulmões de ar puro, nos 12 quartos, com capacidade para duas e quatro pessoas, o verbo imperativo é descansar. Alguns têm vista para a piscina exterior, rodeada de oliveiras, para a zona de redes de descanso ou para a área de fogueira que ali se acende de noite. Alguns têm duche na varanda, ideal para dias de calor. Mas de todos os quartos se vê a serra de Aire.

Cada quarto está ligado a uma emoção e a um filme, e isso reflete-se na decoração. No Saudade, por exemplo, há versos de Amália nas paredes e um papel de parede com cartas e postais. Já no Luxúria impera o ambiente boémio do Moulin Rouge. Nas salas de estar comuns, onde se acendem as lareiras e há sofás com motivos florais, convida-se a retroceder a tempos que já foram mais calmos. Como se vê com a máquina de escrever junto ao bar self-service e «aberto» 24 horas por dia, onde se pode redigir mensagens e colocá-las numa árvore. Ali ao lado funciona o restaurante, com curadoria do chef Nuno Barros, que aposta totalmente nos produtos portugueses. Pode escolher-se à carta ou optar pela lição de cozinha, atividade para miúdos e adultos – com calma e com ajuda de um profissional. Vá por nós: a refeição sabe melhor e ficará na memória. Parte boa: lavar a loiça é por conta da casa.

À mesa de dois clássicos da serra

Trata quem vai entrando no restaurante pelo nome. Dá apertos de mão, pergunta como está a família. O espaço está cheio, a um dia normal de semana, na pequena localidade de Alcaria. José Ribeiro nasceu ali, foi para o Canadá em criança com a família para fugir a Salazar e voltou em adulto. Desde então, soube fidelizar o público com o seu bem-receber e os sabores regionais à mesa. É assim há quase 20 anos no Cova da Velha.

Antes disso, foi um entreposto para se trocarem mulas que traziam peixe da Nazaré e depois transformou-se num bar. O crescimento do turismo levou o dono a modernizar o espaço e potenciar o seu lado de restaurante. Hoje, come-se aqui num ambiente acolhedor, onde há zonas de lareira e janelas com vista para a serra. Os assados no forno têm uma forte presença na carta e aposta-se em proteínas como o borrego, a vitela, o porco preto e o javali, acompanhados com batatinha, grelos e couves. O cabrito no forno já é um clássico do restaurante. «São as ervas frescas da nossa serra, como o tojo e o alecrim, que fazem a diferença», conta o dono. Mafalda, sua mulher, é responsável pelas sobremesas, das quais se destaca o pudim de pão com gelado de caramelo, feito com pão caseiro de Alcaria. Pelas paredes estão imagens da serra de Aire, em especial da Fórnea, formação geológica que se assemelha a um anfiteatro natural, imagem-postal desta região. Fica muito próximo da Cova da Velha e o caminho até lá faz-se, maioritariamente, a pé, durante cerca de 20 minutos. Em algumas alturas do ano, a cascata conquista os visitantes e é local obrigatório para tirar fotografias.

Tão obrigatório como foi e continua a ser o Dom Abade, a 15 minutos de carro dali. Fica em Santeira, junto ao IC2, e serve, há quase 40 anos, quem por ali passa. Em tempos, chegaram a receber, por dia, «sessenta autocarros cheios de turistas», o que os obrigava a fechar apenas duas horas durante a madrugada. A chegada da A1, nos anos 1990, levou o restaurante a expandir-se, em espaço e em oferta.

É aqui que se serve a morcela de arroz, um dos produtos mais caraterísticos desta região. É produzida localmente, em Leiria. «A versão normal é servida com migas, mas aqui fazemos de forma diferente», conta Célia Volante, mulher do proprietário, Mário. Aqui, vem com abacaxi grelhado, um casamento bem equilibrado no prato. A tradição serve-se à mesa com um polvo à lagareiro, mas também se come em risoto e confitado, ou com um bacalhau na grelha, com migas ou com batata. Nas carnes, destaque para os assados no forno, com o cabrito do monte e a chanfana. Para a despedida, leite-creme com maçã de Alcobaça confitada.

Viajar numa máquina do tempo

O tempo não volta para trás. O mais aproximado a uma máquina do tempo está em São Jorge, no antigo museu militar que, há uma década, foi transformado em Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota (CIBA). Foi neste descampado, onde está hoje um jardim onde se pode e deve passear, que os reinos de Portugal e Castela se defrontaram, em agosto de 1385. O confronto durou menos de uma hora mas manteve a independência portuguesa.

No museu do CIBA, refresca-se a memória de várias formas. Com painéis informativos sobre a batalha e seus protagonistas, com réplicas de armas usadas na altura e ossadas encontradas em escavações naquela zona, nos anos 1950. Mas também com a projeção de um filme com atores portugueses, que conta como tudo se passou, num anfiteatro interativo onde elementos cénicos do palco se mexem.

A homenagem à era medieval faz-se em alguns pratos da zona de bar e restaurante, nos serviços de animação que dinamizam o espaço ou mesmo com a arquitetura paisagística em redor do CIBA. De urtigas a urzes, carvalhos e amieiros, recriou-se a moldura de flora que existia em 1385.

O regresso das mantas de Minde

«Olho para ele todos os dias e não me canso», explica Maria Alzira, diretora do Museu de Aguarela Roque Gameiro, em Minde. Trata-se de um retrato da mãe do artista e é considerado uma das obras de referência da aguarela portuguesa. Os seus olhos acompanham-nos pela sala, por onde quer que andemos. É uma das centenas de obras expostas no museu, o único dedicado a esta técnica de pintura, criado há uma década. É também um dos nove polos do Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro, ligado a áreas como dança, restauro de móveis, música e tecelagem, tendo sido os responsáveis pelo ressurgimento do fabrico das mantas de Minde. «Desde os anos 1970 que estavam em desuso», conta a responsável. Na sala que é ateliê e loja das mantas,há teares manuais onde se pode assistir ao fabrico como se fazia antigamente, com uso de lã pura nacional. «Isto não é difícil, é só uma questão de sintonia e força», conta Mafalda, tecelã. Largou a costura e dedica-se a esta arte há três anos. Coloridas ou neutras, lisas ou com padrões, mais ou menos trabalhadas, aqui fazem-se e vendem-se mantas para todos os gostos. O tempo de produção varia, pode levar um mês a completar-se. A concentração e o empenho que exigem são prova de uma serra de Aire que se mantém viva, sempre ligada à tradição.


Guia serra de Aire

Ficar
Cooking and Nature Emotional Hotel
Rua Asseguia das Lages, 181, Alvados (Porto de Mós)
Tel.: 244447000
cookinghotel.com
Quarto duplo desde 135 euros por noite (inclui pequeno-almoço).
Jantar (com lição de cozinha): 32 euros (sem bebidas)

Comer
Cova da Velha
Rua António dos Santos Major, 1, Alcaria (Porto de Mós)
Tel.: 244482052
facebook.com/restaurante.covadavelha
Das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 22h00. Encerra à segunda.
Preço médio: 15 euros

Dom Abade
IC2, km 106, Santeira (Porto de Mós)
GPS: 39.6098, -8.8575
Tel.: 244470147
dom-abade.com
Das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 23h00. Encerra à quarta.
Preço médio: 17 euros.

Fazer
Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota
Avenida Dom Nuno Álvares Pereira, 120, São Jorge (Porto de Mós)
Tel.: 244480060
fundacao-aljubarrota.pt
Das 10h00 às 17h30. Encerra à segunda.
Entrada: 7 euros.

Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro
Largo Justino Guedes, 2, Minde
Web: caorg.pt
Das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 18h00. Encerra à segunda.
Entrada: 3/5 euros (museu/museu + ateliê de tecelagem).

Fórnea
Chão das Pias, Alcaria (Porto de Mós)
GPS: 39.5577, -8.8063

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