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É professor de filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor de vários livros sobre a história do pensamento contemporâneo. Especialista em Kant, fala com tanta facilidade sobre Maquiavel ou Jefferson como é capaz de dissertar sobre a construção europeia ou direitos humanos. Escreveu para a Visão, é cronista do Jornal de Letras há mais de trinta anos e assina todas as semanas artigos de opinião no Diário de Notícias. Grande Oficial da Ordem do Infante, Viriato Soromenho-Marques é também um nome maior da história do ambientalismo em Portugal. Foi presidente da Quercus e anda há anos a alertar para a crise global do ambiente, os desafios do desenvolvimento sustentável e a necessidade de repensarmos a forma como devemos construir uma economia ecológica e como consumimos. E, já agora, como viajamos

Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha

Temos mesmo de mudar a forma como viajamos?
Temos. Temos mesmo. Nos últimos anos temos assistido a um crescendo extraordinário das viagens aéreas e, sobretudo, a uma tendência que vai no sentido contrário ao que seria o adequado: a utilização crescente do avião para viagens de curta distância, com o aparecimento de companhias low-cost. Sabemos hoje que o transporte aéreo de passageiros tem uma parte importante no cômputo global das emissões de dióxido de carbono. É um dos factores que contribui para o aumento do efeito de estufa, que é o motor das alterações climáticas. Isto não significa que as pessoas não possam ou não devam viajar. O que está em causa não é as pessoas viajarem ou deixarem de viajar. Viajar faz parte da nossa tradição, da nossa cultura, da nossa condição de cidadãos do mundo. Mas eu julgo que as viagens mais longas, através de comboio ou barco, por exemplo, ou as viagens mais curtas, utilizando outros meios – nomeadamente a bicicleta – e a própria viagem a pé podem, com vantagem, permitir menos impacto ambiental e experiências muito mais interessantes.

Além desses que acabou de referir, que pequenos passos podemos dar no nosso dia-a-dia para reduzirmos a nossa pegada ecológica nas viagens? Falou das viagens, a pé, por exemplo. Mas para distâncias grandes e viagens profissionais, fica complicado…
Acho que há um bom princípio de prudência que consiste na utilização da ferrovia, por exemplo. No caso português, não faz sentido o uso do avião nas viagens Lisboa-Porto. É um desperdício de recursos. Qualquer pessoa que tenha feito a experiência de viajar de avião e viajar no [comboio] Alfa, da CP, percebe que o resultado, em termos de tempo, acaba por ser muito semelhante. Por outro lado, a ferrovia também se aconselha para algumas viagens internacionais. Mas falando do lado profissional, e porque a sua pergunta tem várias nuances, posso dar o meu exemplo: nos últimos anos tenho evitado viagens pesadas. Sejam intercontinentais (ao Brasil, por exemplo) ou mais perto. Ainda este fim-de-semana vou evitar uma viagem à Alemanha para uma conferência. Vou substituir a presença física pela comunicação à distância. A tecnologia permite fazer intervenções com grande qualidade de som e imagem. A pessoa está confortavelmente no seu sítio, os ouvintes também, poupamos tempo e recursos e não fazemos tantas emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera.

Numa altura em que pensamos cada vez mais alto, mais rápido, mais depressa, tudo mais imediato… acha que as pessoas estão preparadas para voltar atrás e ganhar novas experiências, graças a essa “lentidão”?
Independentemente de sermos mais ou menos viajados, se fizermos todos uma autoanálise, aquilo que recolhemos nas viagens não são os quilómetros percorridos. São as emoções, os encontros, as ideias, as experiências pessoais. Milhões de europeus terão feito o Inter-rail, por exemplo, e sabemos que é uma viagem marcante pelas experiências que proporciona. A maior parte das pessoas que já fez voos intercontinentais tende a considerar que é cansativo e que o custo-benefício é desproporcionado – a favor do custo!

Falava há pouco das viagens de barco. Sabemos que há uma viagem de barco em particular que foi importante na sua vida: a viagem a bordo do paquete Niassa a caminho de Angola, em 1973… O que recorda dessa viagem? E porque foi tão importante?
Foi uma viagem iniciática. Eu fiz essa viagem no âmbito de um prémio escolar que ganhei quando tinha 15 anos e era aluno do liceu. Candidatei-me a um curso numa instituição que se chamava Círculo de Estudos Ultramarinos. Fui selecionado e fui fazer a viagem mais longa, a Moçambique – que começava com uma etapa de 15 dias até Luanda. Depois íamos de avião até Lourenço Marques, hoje Maputo, para mais um mês de viagem, uma coisa absolutamente extraordinária. Foi uma daquelas viagens de abertura ao mundo: um jovem que vivia em Setúbal, que poucas vezes tinha ido a Lisboa, de repente passa por esta experiência de mudança de continente, a começar por 15 dias num barco… Eu estava perto da casa das máquinas, numa cabine de seis ocupantes, que tinha sido ocupada por militares, no transporte de tropas para a guerra. Lembro-me de, antes de adormecer, ler os números de identificação militar gravados pelos soldados que tinham estado naquele beliche em anos anteriores. Só isso já faz voar a imaginação – e a viagem é boa por isso mesmo. Mas foi sobretudo uma viagem histórica para mim.

Porquê?
Eu penso que tenho uma certa capacidade para perceber quando é que as coisas já não estão a funcionar, quando é que um sistema está a falir.

Sentiu naquele momento, naquele contexto, em 1973?
Eu tive a plena experiência do Império. Continuava a viver debaixo da bandeira portuguesa numa descontinuidade territorial fantástica. Quinze dias depois cheguei a Luanda. Três horas depois, nova realidade, em Moçambique. A mesma língua, os mesmos símbolos. Mas, ao mesmo tempo, via sinais claros de que o regime se tinha esgotado numa guerra que poderia estar contida militarmente mas estava vencida do ponto de vista psicológico. Falei com muita gente da população portuguesas que estava nas colónias, e com gente das forças armadas também (na Gorongosa tivemos escolta militar), e sentia que as pessoas estavam muito pouco motivadas para a continuação daquilo que parecia ser (e era!) contra a corrente da história. No fundo, as forças armadas portuguesas conseguiram, durante 13 anos, criar um intervalo de tempo bastante generoso para a iniciativa política – só que não havia iniciativa política. O regime estava congelado.

Outra das suas viagens de sonho foi a Nova Zelândia, onde esteve em 2002. Curiosamente, esta é viagem de sonho de muitos dos nossos viajantes entrevistados. Têm razão em sonhar?
Têm, têm razão em sonhar. Eu fui com a minha mulher e com os meus dois filhos, na altura bastante pequenos, e a viagem teve um factor de oportunidade para nós. O João Cabeçadas, navegador profissional, um dos nossos grandes velejadores, é meu cunhado. Ele estava envolvido na Taça América – numa equipa, aliás, que venceu a competição – e convidou-nos. Fizemos a viagem com as instalações pagas. Estávamos em Auckland, íamos acompanhando as provas, e visitámos a ilha do Norte. Não fomos à Ilha do Sul – uma coisa que a minha mulher nunca me vai perdoar.

Porque não foram?
Porque eu tinha um trabalho para terminar. A introdução de um livro. E entre fazer isso ou visitar a ilha mágica do sul da Nova Zelândia, acabei por escolher a primeira. Foi uma decisão provavelmente errada. Mas só a ilha do norte é um sonho, com aquelas paisagens, as florestas antiquíssimas, aquela praia mítica (Karekare), onde foi filmado parte de O Piano. A viagem de barco demora mais de cinquenta dias, mas vale a pena, para quem a quiser fazer com boa consciência ambiental (risos).

E quem for que veja as duas ilhas…
Sim, sim. Eu acho que foi um erro, devo confessar. Porque é uma viagem para se fazer uma vez na vida.

A sua mulher já sabe que acha que foi um erro ou vai ficar a saber agora, com esta entrevista?
Eu acho que vai ficar a saber agora (risos).

Estamos a falar da Nova Zelândia, há pouco falava do Parque da Gorongosa, em Moçambique. Gosta de viajar para grandes santuários ecológicos?
Gosto. Penso que uma das experiências mais fortes que tive foi precisamente na Amazónia. Eu já fui duas vezes à Amazónia, em 2014 e 2018. Vou em conferências mas aproveito sempre para tirar alguns dias. Em 2014 fiquei cinco dias com a minha mulher na selva, perto da Manaus, e foi uma experiência extraordinária. É que a Amazónia é o rio Amazonas. Na Amazónia não se fazem caminhadas. Ali viaja-se de barco. E, mesmo com a presença humana, a biodiversidade é exuberante. Sente-se uma força dos elementos, uma espécie de vibração telúrica. Só estando lá!

E qual é a viagem que ainda está por fazer? Aquele projeto adiado.
Eu gosto muito da Europa. Até porque estou numa fase da minha vida em que gosto de repetir. E tenho um projeto com um amigo de infância, uma espécie de irmão, o Eduardo. Queremos fazer uma longa viagem a pé, seguindo o caminho das peregrinações – porque é o que está mais estruturado do ponto de vista de alojamento – para visitar esta grande pátria europeia. Mas isso não se pode fazer da avião nem de carro ou comboio. Só se pode fazer a pé. Sentindo os odores da terra e os pés magoados pelo pisar do caminho. Mas sem tempo. Será coisa para uns cinco a seis meses. Meio ano que vamos tirar às nossas famílias. O que só poderá ocorrer numa altura em que eu me encontre no estado em que ele já está, que é o de aposentação. É a viagem que eu gostaria de fazer. A minha viagem de sonho.

Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF.


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