Vera e Tânia partiram a pé para Compostela. Não foi por devoção cristã que escolheram o Caminho Português de Santiago. Foram motivadas pelo desafio físico, pela beleza natural e pelo tempo que tiveram para si. O que ficou da experiência, as dificuldades e as dicas, é o que agora partilham consigo.

Texto de Vera Valadas Ferreira

Nunca duvidámos de que seríamos capazes de percorrer o Caminho. E essa foi a nossa fórmula teimosa para o sucesso. Não obstante o metro e meio de gente e a passada curta em ténis de Cinderela, nunca nos passou pela cabeça desistir. Nem antes nem durante. Uma boa forma de não ficarmos com medos de última hora foi anunciar ao maior número de amigos ao que íamos e quando iríamos. Assim, uma desistência por motivos que não fossem de força maior passaria a ser uma vergonha que não quereríamos ver no nosso currículo.

Passo número 2: adquirir a Credencial de Peregrino, no nosso caso em troca de dois euros na Sé de Lisboa, mas facilmente solicitada online. É neste documento, em forma de leque, que se carimbam os locais por onde passamos. Podem ser igrejas, albergues, bares, restaurantes ou lojas de souvenirs, mas sempre no mínimo dois selos por dia, como prova da viagem. Só assim, já chegados, se terá direito à Compostela, um documento outorgado pelas autoridades eclesiásticas que certifica ter-se completado pelo menos cem quilómetros a pé (200, se em bicicleta) do Caminho de Santiago. Mas atenção que é preciso tirar senhas, a fila é imensa e o documento pode demorar mais de 24 horas a ser emitido. Em todo o caso, é só um papel, incapaz de materializar toda a riqueza espiritual desta experiência. Se a motivação for lúdico-desportiva obtém-se o Certificado do Peregrino. Foi tendo em conta toda esta aritmética, e também por sermos inexperientes, que decidimos partir de Valença do Minho, a 120 quilómetros do nosso destino e com a espanhola Tui ali mesmo à beira. Dividimos o trajeto em seis dias de caminhada, somando-lhes um dia de viagem de Lisboa ao ponto de partida e um outro de regresso a casa. Uma semana no total, portanto.

Despacito. Porriño, Ponte Sampaio, Pontevedra, Caldas de Reis, Padrón e Santiago de Compostela foram as nossas etapas, com percursos entre os 18 e os 25 quilómetros diários. Há quem troque Ponte Sampaio por Redondela ou Arcade. De Ponte Sampaio a Pontevedra foram «apenas» 13 quilómetros (para verem como o conceito de distância se altera com esta experiência), mas isto porque, a nosso ver, o centro histórico desta cidade merecia várias horas de deleite. Então, sensivelmente a meio da viagem, soube-nos bem bater perna sem horários enquanto turista e, paradoxalmente, fingirmos que éramos habitantes locais. Foi como se o tempo parasse e uma ótima recompensa pela dureza da etapa do dia anterior, um dos troços mais belos, embora mais exigentes fisicamente, dadas as sucessivas e acentuadas subidas (até 200 metros) e íngremes descidas (com inclinações superiores a 35 graus).

Com dormidas já agendadas em cada localidade (sem quaisquer pré-encargos), não sofremos o dilema de ter de procurar alojamento num momento de fadiga. Os critérios de seleção foram sempre a proximidade do centro e do próprio Caminho de Santiago, o preço e as condições de higiene. Em todos os alojamentos há quartos single, duplos, de dois até dez beliches. Optámos por albergues privados e não pelos oficiais de peregrinos, para não termos de ter pressa. É que nestes últimos, chegar depois da hora do almoço pode implicar já não termos cama, assim como sermos «expulsos» pelas sete da manhã. Como nos albergues privados há roupa de cama – e, muitas vezes, toalhas e gel de banho –, esse detalhe também nos libertou da bagagem o volume do saco-cama.

Valença do Minho foi o ponto de partida para esta caminhada de uma semana. Os Caminhos de Santiago são cada vez mais procurados por portugueses de todas as idades. Com motivações religiosas ou não.

O peso da mochila é um dos mais importantes aspetos a ter em conta na viagem: não deve ser superior a dez por cento do nosso peso corporal, o que, para duas «pequenas» como nós, representava por si só um desafio. Roupa interior (com mais meias do que etapas), três blusas de lavagem e secagem fáceis, duas leggings, carregador de telemóvel (há fichas individuais nos beliches), minifarmácia e nécessaire (ah, as maravilhas das amostras de produtos!), garrafa de água de meio litro (dá para reabastecer no caminho), barritas energéticas (para dar pica nas subidas, mas ninguém leva a mal se surripiar um figo ou outro pelo caminho) e frutos secos (em setembro, o terreno estava coberto de bolotas e castanhas, por isso foi só escolher). A mochila deve ser resistente, ter múltiplos compartimentos (assim não andamos à procura das coisas), bem como fivelas na anca e no peito (para melhor suporte). Deve ser uma extensão de nós e não um fardo. Decidimos não levar bastões porque seria mais uma coisa para carregar/perder e tínhamos fé nas nossas pernas.

Um segundo par de ténis salvou-nos a vida nas duas etapas em que apanhámos chuva persistente, durante horas e horas. A exemplo do modelo a uso, este par de suplentes era leve e arejado. E usado. Nada daquelas botas de montanha novas em folha, super fashion mas duras e pesadas, que só magoam os pés. Meias do avesso para evitar fricção com as costuras e pés obscenamente untados de vaselina são duas máximas a não esquecer. Se algo correr mal e ainda assim ganhar bolhas nos pés, decerto não vai arrepender-se de ter investido naquele penso especial que mais parece uma segunda pele. E em todos os minutos em que não estiver a caminhar use chinelos.

[Imagem: Direitos Reservados]
Parar para ajeitar a meia, tirar uma pedra do calçado ou arejar os pés também se impõe. Chama-se a isto pausas: momentos que também servem para beber água e fotografar as belas paisagens. Depois há as paragens para aliviar as costas da mochila, comer e ir ao WC, que nunca devem ser superiores a meia hora, com o perigo de os músculos ficarem frios ou frouxos. Ao longo do caminho, há vários cafés que servem de apeadeiros nesta viagem, mas pode dar-se o caso de distarem seis a oito quilómetros entre si, por isso é sempre de aproveitar para satisfazer as necessidades básicas.

Começávamos a caminhar pelas 08h30, só por duas ocasiões o fizemos durante mais de duas horas seguidas, registando uma média de quatro quilómetros/hora. Em cinco horas, ou seja, até ao almoço, o percurso estava concluído. Como os demais, hidratámos muitas vezes o ânimo com uma caña (imperial ou fino). E ainda não foi desta que deixei de fumar. Nesse mês de setembro, enfrentámos todo o tipo de condições meteorológicas: chuva, sol abrasador, humidade tropical, frio e nevoeiro. A roupa deve ser leve e transpirável, e mais vale investir num bom impermeável (para si e para a mochila) ou corta-vento. Um poncho de plástico serve perfeitamente. Pare as vezes que forem necessárias, não vá ao ritmo dos demais por muito que lhe sejam queridos. Dê passos firmes e nunca maiores do que a perna. Não é um sprint, é uma maratona e nem sequer há pódio.

De Valença do Minho a Santiago de Compostela são 118 quilómetros. Os meses ideais para fazer a caminhada são entre março e novembro. Comece já a preparar a viagem.

Sem medos. A grande maioria dos nossos familiares e amigos estava notoriamente receosa com o facto de sermos duas raparigas sozinhas na estrada. Nós não. E lá chegadas muito menos. Nos primeiros dois dias de viagem a proporção de homens/mulheres na estrada e nos alojamentos era de dois homens para oito mulheres. O rececionista do nosso albergue em Ponte Sampaio explicou-nos que talvez fosse só uma coincidência, ainda que o seu documento Excel de chegadas e partidas indicasse claramente que, no verão, há muitos mais eles do que elas. Talvez pela exigência física do trajeto nessa estação, especulámos.

Deu-se o caso de, a partir daí, a proporção de géneros ser muito mais equitativa. Homens e mulheres, dos 20 aos 70 anos, sozinhos, a pares ou em casais, em grupos de quatro ou até em excursões, encontrámos de tudo, de todas as nacionalidades e em várias condições físicas. E foi então que também vislumbrámos as primeiras bicicletas e percebemos o negócio de transfers de mochilas de localidade em localidade, permitindo aos peregrinos uma modalidade de locomoção bem mais leve. É como que uma «meia experiência», porém, em certas faixas etárias ou perante certas fragilidades de saúde, compreende-se.

«Aqui», como dizia uma alemã para uma canadiana já a oito quilómetros do destino, «estamos em igualdades de circunstâncias e pouco importa se somos médicos, jornalistas, mecânicos ou investidores.» Verdade. Temos um objetivo comum que é chegar sãos e salvos e isso une-nos. Há olhares cúmplices, sorrisos tímidos e outros mais descarados, palavras de incentivo, conversas de circunstância e até amizades que ficam para a vida. Tudo com respeito absoluto no trato social. São tantas as vezes que nos cruzamos nos trilhos – estradas nacionais e vias rápidas, veredas e vinhedos, terrenos de terra batida, troços de trail e escarpas rochosas –, nos cafés ou postos de apoio ao peregrino, uns ultrapassando outros para logo mais à frente (talvez mesmo noutra localidade) a ordem se inverter, que aquelas pessoas passam a fazer parte do nosso universo. Mesmo que nunca lhes cheguemos a saber o nome, mesmo que só as identifiquemos por alcunhas imaginativas (e nisso os portugueses, convenhamos, são geniais). «Olá, Bon Camino» é a banda sonora destes encontros. Já de regresso à rotina diária custa perder este nefasto hábito de darmos conversa a perfeitos estranhos.

Duas americanas, uma de Idaho e outra do Ohio, travam conhecimento na fila para as casas de banho. A primeira diz que nunca foi ao Ohio, a cerca de 3200 quilómetros de distância, apesar de estar na sua lista de desejos. Ao que a segunda responde: «E, no entanto, estás aqui…» Parece uma anedota, mas aconteceu. Assim como conhecemos um cinquentão dinamarquês residente em Bali que, acabado de fazer (em vinte dias) o Caminho Francês de Santiago – também conhecido por Caminho das Estrelas e que, com partida em Saint-Jean-Pied-de-Port se prolonga por 800 quilómetros (sim, leu bem) –, apanhou de imediato um autocarro até ao Porto para percorrer a pé os 240 quilómetros até Compostela. Há quem tenha feito 16 trilhos distintos ou quem já tenha ido 21 vezes à mais célebre cidade da Galiza. E não têm soberba quando falam com debutantes, como nós. «Sim, é a nossa primeira vez», dissemos vezes sem conta. Mas nunca afirmámos, nem nunca ninguém inferiu, que seria a única.

O número de peregrinos que anualmente percorrem os Caminhos de Santiago já ultrapassa os 300 mil. De Valença, em 2017, partiram quase sete mil pessoas.

Os sinais. Outra das angústias dos estreantes é: «Será que me vou perder?» Impossível. A sinalização – Vieiras (conchas) de Santiago e Setas Amarelas – está em toda a parte. No chão de cimento e nas calçadas, nas paredes, nos postes de iluminação, em azulejos, árvores, marcos de pedra indicando a distância para Compostela, tantos e tão visíveis, como se de «uma caça ao tesouro para totós» se tratasse. Ajuda-nos a distrair dos quilómetros que ainda faltam e dá-nos segurança.

Pode sempre seguir os mochileiros, perguntar aos transeuntes ou em cafés. Em todo o caminho não encontrámos um único sinal de enfado das gentes locais com esta invasão de forasteiros, talvez cientes da importância do turismo religioso no tecido socioeconómico da região. Houve até quem nos oferecesse uvas acabadas de podar. E um grupo de tropas do Exército escoltou-nos durante parte do trajeto. Este ponto é um exagero: eles só passaram por nós várias vezes no seu exercício armado. Medo!

A massa de peregrinos dispersa-se e volta a reunir-se nas três ocasiões em que há que escolher entre seguir pela via oficial (mais urbana) ou pelo troço «complementário» (mais rural). Na primeira etapa, fica o aviso, a reta final até Porriño é horrenda caso se opte pela primeira opção. A cidade também é «feia», ouviu-se comentar em várias línguas. Mas tivemos sorte, não no Euromilhões que lá registámos, mas sim na alegria à nossa espera – com direito a fanfarras, cabeçudos, carrosséis e bancas de guloseimas – no âmbito das Festas do Cristo da Agonia.

Por falar em dor, e apesar de não sermos biónicas, nestes seis dias não sofremos qualquer maleita física. Na segunda metade da nossa aventura os músculos estavam até como que educados e cada vez nos sentíamos mais aptas para que o viesse. Exceto para o café espanhol. A confiança foi um dos grandes recuerdos que trouxemos na bagagem. Aquela sensação de realização, de nos termos transcendido, de vitória.

Desde o momento em que entrámos no autocarro para Valença do Minho ao som de I Want to Break Free, dos Queen, até à arcada de Compostela que abrigava um violinista tocando Hallelujah, de Leonard Cohen, foi como se um círculo se tivesse fechado. Penetrar civilização adentro, pelas ruelas estranguladas e barulhentas, qual Alfama em noite de Santos, até chegar à Praça do Obradoiro e à catedral onde jaz o sepulcro do apóstolo Santiago Maior, é uma vertigem única que, no nosso caso, só sossegou com um abraço silencioso. Perdermo-nos até Compostela está fora de questão, já vos disse. No caminho para lá corremos foi o sério risco de nos encontrarmos.


Guia de viagem

Ir

Documentos: cartão de cidadão/credencial de peregrino
Moeda: euro
Fuso horário: GMT +1 hora
Idioma: galego e castelhana

Dormir

Valença do Minho

Hostel Bulwark
A classificação de «excecional» no site de reservas Booking não é um exagero. Bem no centro da fortaleza, esta «casa» prima pelo design ecológico. Tem a garantia de um pequeno-almoço suculento e de descanso em ambiente familiar antes da grande prova. Travessa do Cantinho, 7-11 Valença
Tel.: 251 837 022

Ponte Sampaio

Hostel Albergue
O Mesón Tem a opção de beliche ou apartamento, numa estrutura moderna e limpa, onde não faltam duas áreas de lavandaria. Na porta ao lado fica um minimercado e mais à frente o bar-cafetaria, onde um «café americano» e dois croissants com manteiga ou marmelada custam 2,5 euros. O funcionário também é um doce.
O Mesón, 12, Pontevedra
Tel.: +34 687 462398

Pontevedra

Slow City Hostel Pontevedra
No coração da zona histórica, esta casa mimosa apresenta dez camas. A pernoita dá direito a pequeno-almoço, sem contar com café e chá à discrição. O wi-fi é gratuito, mas isso é normal, assim como o são os cacifos individuais. Os mais vaidosos têm direito a secador de cabelo. O gerente mora ao lado e pode ser que se encontrem no terraço comum para fumadores.
1 Esq., Rua Amargura Pontevedra
Tel.: +34 631062896

Caldas de Reis

Albergue O Cruceiro
Foge à tradição dos hotéis e pensões termais típicos desta localidade mas é uma boa opção, já que tem todas as condições de um hotel, em quartos de apenas 2, 4 ou 6 camas com WC privativo. Em baixo há um café/bar/esplanada e em frente um supermercado.
Rua Xoan Fuentes Echevarria Caldas de Reis
Tel.: +34 986540165

Comer

Porriño

Restaurante Paso a Nível
A uma passadeira de distância da linha de comboio, eis um misto de bar de jogos americano (dentro) e botequim brasileiro de esquina (esplanada coberta). Entre pratos de garfo e faca, junk food caseira, empanadas e bocadillos, o menu é guloso. Atenção às doses que, em Espanha, são sempre grandes.
Rua Progreso, 1, Porriño
Tel.: +34 986 333471

Arcade (Soutomaior)

Restaurante ¡Quedamos!
Na outra margem de Ponte Sampaio, fica esta localidade reconhecida pelas suas ostras. Por estarmos na costa, quisemos ficar no tema «mar» mas optámos por lagostins e pulpo a feira – polvo à galega com sal, azeite e pimentão. E vinho verde Alvarinho da casa que, por estes bandas, é selo suficiente de qualidade.
Rua Rosalia de Castro, 26 Soutomaior
Tel.: +34 986 701322

Pontevedra

Tapería Os Carballos
A oferta de restauração é tanta que andámos num «rali das taperías». Na Galiza não se bebe sem que nos ofereçam acompanhamento: batatas fritas, azeitonas, amendoins ou tortilhas. Nesta esplanada debruçámo-nos sobre uma tábua de embutidos
(enchidos) e queijos, regada a sidra, outro ex-líbris da região. Mas cuidado com os pombos atrevidos!
Praza de Verdura, 9 Pontevedra
Tel.: +34 986 852078

Padrón

Restaurante Grilo
Impossível ir a Padrón e não comer os célebres pimentos salteados em azeite! Se quiserem conhecer a origem da tradição, falem com Alil, o excêntrico e cultíssimo dono de uma garagem a três quilómetros, transformada num bar decorado com ferrovelho e bibelots kitsch. Alil disse-nos: «De Lisboa não vem coisa boa.» Ouviu como troco «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». E lá ficámos amigos. Foi ele quem sugeriu este Grilo, garantindo que era «muito bom». Não se armou em Pinóquio, este nosso amigo falante.
Av. Camilo José Cela, Padrón
Tel.: +34 981 810607

Consultar

>> caminodesantiago.ga
>> caminhoportosantiago.com


Reportagem publicada originalmente na edição de janeiro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 303.

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