As Minas de São Domingos e a cascata do Pulo do Lobo colocaram Mértola no mapa, mas esta terra alentejana tem muito mais para visitar, sendo palco de uma mais ricas heranças históricas do Alentejo. Entre vestígios romanos e árabes vivem-se outros tempos. E dorme-se a olhar as estrelas.

Texto de André Rosa
Fotografias de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Até há mais de 40 anos, todo o museu que hoje se percorre num passadiço ao ar livre no circuito de visitas da Alcáçova do castelo de Mértola era um imenso arrabalde abandonado onde as crianças brincavam entre figueiras. Sem saber, corriam por cima de preciosos cacos de peças islâmicas e romanas e foi a observá-los, enquanto entravam e saíam de uns túneis no chão, que Cláudio Torres, fundador do Museu de Mértola, descobriu aquele que viria a ser o epicentro do Campo Arqueológico de Mértola, conta o guia local Nuno Roxo.

Os trabalhos, iniciados em 1978, revelaram que os supostos túneis onde as crianças se aventuravam davam acesso, afinal, a uma cisterna islâmica aproveitada de uma construção romana, enterrada pelo tempo. Removendo sepultura atrás de sepultura, descobriram-se também através das escavações uma densa necrópole da Baixa Idade Média, casas islâmicas dos séculos XII e XIII e um batistério do século vi (dos mais importantes encontrados no Mediterrânio), rodeado de mosaicos com figuras de animais e cenas de caça.

Este circuito pelos vestígios do Bairro Islâmico é só uma amostra do que a famosa «vila-museu» alentejana tem para oferecer a quem a visita, e deve-se ao seu grande impulsionador Cláudio Torres, arqueólogo e investigador, hoje com 80 anos. Muitos dos vestígios arqueológicos ali encontrados durante mais de três décadas de escavações seguiram para os vários núcleos do museu municipal, dispersos pelo casco antigo da vila. Quem os quiser ver e compreender à luz da herança islâmica do território tem, por isso, de palmilhar várias ruas, sendo o núcleo da arte islâmica um dos mais interessantes a visitar, pois tem a maior colecção de cerâmica de luxo islâmica existente no país.

A meio caminho para o castelo encontra-se a igreja matriz, «a única mesquita em Portugal a funcionar como igreja» católica. «Foi sempre um espaço de culto religioso, independentemente de quem o praticou», diz o guia Nuno Roxo. Datada do século XII, surge como testemunha da permanência dos muçulmanos, que tornaram Mértola capital de um pequeno emirado islâmico independente. A conquista de Mértola para o reino português deu-se no reinado de D. Sancho II, graças aos cavaleiros da Ordem de Santiago, e a porta islâmica foi substituída por outra manuelina, assim como a torre de chamamento para a reza transformada numa torre de sinos.

O castelo, erguido pelos almóadas a partir de estruturas muito antigas, dificultou a conquista do território. Após inúmeras campanhas de requalificação, chegou aos nossos dias com o estatuto de sede nacional da Ordem de Santiago até 1316 e de monumento nacional. Visitando-o, dá para aceder à praça de armas e à imponente torre de menagem, com 30 metros de altura, onde funciona também um núcleo museológico com vestígios da época pré-islâmica que atestam a presença de outros povos, como os visigodos, no território.

Comer e dormir com vista para o rio

Caminhando pelas estreitas e acidentadas ruas da vila facilmente se chega ao posto de turismo de Mértola, morada também da Casa de Mértola, um pequeno museu que replica as casas alentejanas de inícios do seculo XX que chegaram até aos dias de hoje. Ao contrário do que acontecia nas casas de maiores áreas do bairro islâmico da Alcáçova, aqui as habitações tinham por norma apenas cozinha e quarto, apesar de nelas viverem famílias numerosas, ligadas à pesca e à agricultura.

De características bem diferentes é a casa onde Nadia Anghel, de 38 anos, e a mãe abriram o restaurante Terra Utópica, há quatro anos. O edifício primeiro assemelha-se a uma casa tipicamente alentejana, de paredes grossas e com muitas divisões, mas depois percebe-se que foi decorado com elementos de inspiração marroquina e de outros países.


Uma mercearia souk e joalharia de autor

Cervejas artesanais e vinhos da região, compotas, licores, queijos, enchidos, frutos secos, flor de sal, conservas, marmelada, folar de massa pão e especiarias. Encontra-se um pouco de tudo na Mercearia Souk, uma pequena loja no centro da vila. Jenny Duarte e o marido abriram este espaço no final de abril, apaixonados que são pelo artesanato marroquino e pelos produtos do norte de África, por isso também vendem cerâmicas, tagines e azulejos decorativos. Já na Oficina de Ourivesaria da professora e joalheira Nádia Torres, filha do reconhecido arqueólogo, fazem-se e vendem-se peças de autor, sobretudo de prata e bronze. Certos brincos, por exemplo, são inspirados naqueles que as mulheres de Mértola usavam no século XII, atribuindo-lhes significados sociais e poderes contra o mau olhado.


Na ementa, Nadia apostou em pratos mediterrânicos (feitos pela mãe), como peito de frango com arroz de legumes e posta de novilho alentejano, e nos vinhos Herdade da Bombeira, feitos na região. A sobremesa pode ser saboreada numa varanda com vista privilegiada para as margens do Guadiana e para a ponte moderna que une as margens entre Mértola e a aldeia de Além-Rio.

Até pelo menos meados dos anos 1960, o transporte de viaturas, mercadorias e pessoas entre as margens fazia-se através de uma ponte-barca, nada mais do que uma barcaça de aspeto rudimentar, que mais tarde se afundou. Ficaram os vestígios dos locais de amarração e um pedaço de estrada usado, hoje, para acesso de canoas e pequenos barcos ao rio. Quem o conta é Nelson Margarida, dono de vários negócios em Mértola, um deles o Bed & Breakfast Casa da Tia Amália, aberto há seis anos na margem esquerda, em Além-Rio.


A tradição da tecelagem recuperada

A tradicional ocupação das mulheres tecerem peças de lã utilizando máquinas artesanais de tear começou a ser recuperada em 1987, com a formação da Cooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola, visando o desenvolvimento local, hoje é um dos motivos de visita à vila. No espaço, que funciona como oficina, museu e loja, explica-se o ciclo da lã desde que é retirada das ovelhas campaniças (a espécie mais comum no território) até entrar na máquina de tear, e pode assistir-se ao trabalho de tecedeiras ao vivo. Sabe-se que na origem dos motivos decorativos das mantas alentejanas estão antigas tradições berberes. Além de mantas, com a lã faziam-se também coadeiros, tapetes, alforges, meias, gorros, xailes e écharpes. O linho era mais utilizado para fazer toalhas, napperons e vários tipos de panos.


A casa, na verdade, era uma antiga estalagem e foi inteiramente recuperada com seis quartos distribuídos por dois pisos e uma decoração de traços alentejanos e mouriscos, a cargo da sua mulher, Marta Cruz. Nos quartos da segunda casa – o Espaço Casa Amarela –, em cima do rio, o estilo de alojamento é o mesmo, mas a vista é completamente diferente, perfilada que surge, na muralha, toda a vila de Mértola. Já à noite, sob o céu estrelado que só se vê no Alentejo, vale a pena jantar no restaurante de cozinha regional e mediterrânica. Por baixo, nos meses de verão, funciona um bar de tapas e fazem-se sessões de música ao vivo.

Nelson sabe bem como casar o tradicional e o contemporâneo, ou não fosse ele responsável, também, pelo histórico Café Guadiana, encaixado há mais de cem anos numa muralha, no principal largo da vila. «Foi o primeiro café a ter um televisor» naquelas bandas, conta, e que depois de alguns anos sem rumo voltou a recuperar movimento, agora com uma oferta mais virada para os turistas, à base de petiscos portugueses, e fazendo-se valer de uma agradável esplanada. Dali, parte-se à descoberta desta vila sem igual, lugar de uma das mais complexas heranças históricas e culturais do Alentejo.


Guia

Ficar
Casa da Tia Amália
Estrada dos Celeiros, 16, Além-Rio
Tel.: 918918777
Web:facebook.com/CasadaTiaAmalia
Quarto duplo desde 43 euros por noite (sem pequeno-almoço).

Comer
Terra Utópica
Rua Dom Sancho II, 41, Mértola
Tel.: 962813980
Das 12h00 às 14h30 e das 19h00 às 21h30.
Preço médio. 15 euros.

Espaço Casa Amarela
Estrada dos Celeiros, 25, Além-Rio
Tel.: 918918777
Web: facebook.com/EspacoCasaAmarelaMertola
De quarta a sexta, das 18h30 às 23h. Sábado e domingo, das 12h às 16h e das 18h39 às 22h.
Preço médio: 18 euros.

Café Guadiana
Largo Vasco da Gama, 5, Mértola
Tel.: 286094294
Das 08h às 24h. Encerra à segunda.
Petiscos a partir de 3 euros.

Visitar
Alcáçova do Castelo de Mértola
Caminho do cemitério
De terça a domingo, das 9h15 às 12h30 e das 14h às 17h15.
Entrada gratuita.

Núcleo do Museu Islâmico
Rua Dr. António José de Almeida
Tel.: 286610100
De terça a domingo, das 9h15 às 12h30 e das 14h às 17h15.
Preço: 2 euros; 1 euro (maiores de 65 anos e estudantes); gratuito até 12 anos.

Igreja Matriz
Largo da Igreja
De terça a domingo, das 9h15 às 12h30 e das 14h às 17h15.
Entrada gratuita.

Castelo de Mértola
Castelo
Tel.: 286610100
De terça a domingo, das 9h15 às 12h30 e das 14h às 17h15.
Gratuito. Torre de menagem: 2 euros (geral), 1 euro (maiores de 65 anos e estudantes); gratuito até 12 anos.

Casa de Mértola
Rua da Igreja, 31
Tel: 286610109
Web: visitmertola.pt
Todos os dias, das 9h às 12h30 e das 14h às 17h30.
Gratuito.

Cooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola
Rua da Igreja, 35
Tel.: 286612036/962600979
Todos os dias, das 09h às 12h30 e das 14h às 17h.
Gratuito.

Comprar
Mercearia Souk
Rua Dr. Manuel Francisco Gomes, 53 A
Tel.: 927241093
Web: facebook.com/jenny72merceariasouk
Das 09h às 18h. Encerra à segunda.

Oficina de Ourivesaria (Nádia Torres)
Rua Dr. António José de Almeida, 6
Tel.: 966085546
Visita mediante marcação.
Web: oficinanadiatorres.wordpress.com

A revista Evasões integra a edição de sexta-feira do Jornal de Notícias, sendo vendida separadamente a partir de sábado.


Reportagem publicada originalmente na edição de dezembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 302.

 

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