Ao adormecer, sei que tenho o céu da noite sobre mim, todas as suas estrelas são um cardume a flutuar e, ao mesmo tempo, a pesar-me ligeiramente no peito. Inspiro ar grosso e tropical que, a esta hora, refrescou um pouco e, mesmo assim, chega para me aquecer por dentro. Por baixo de mim, sinto a terra, fertilidade de que se alimenta toda a paisagem. Recordo-a a partir do dia que agora termina e que ainda trago nos olhos. Misturo-me a mim próprio com o mundo que me rodeia, pertencem-lhe todas as palavras em que consigo pensar.

O Parque Nacional de Khaosok tem perto de 800 quilómetros quadrados de extensão, é contíguo a duas outras reservas, formando um enorme santuário natural no sul da Tailândia, à distância de três horas de carro a partir das províncias de Krabi ou Phuket. Ao longo das décadas de 1970 e 80, quando muitas das florestas tailandesas foram devastadas pelo comércio da madeira, um grupo de insurgentes comunistas fixou-se neste espaço e montou aqui um pequeno exército de guerrilha. Embora os seus objetivos políticos não tenham sido alcançados, essa presença manteve madeireiros, mineiros e caçadores afastados da região. O fim do conflito coincidiu com uma mudança de cultura em relação ao património natural e, pouco depois, todo este terreno foi transformado em área protegida.

A tela da tenda é a pele fina que me separa de milhares de vozes, cada uma delas pertence a um ser específico e individual.

Ao entrar e ao sair, corro o fecho da tenda como se abrisse um breve rasgão nos ruídos ininterruptos da selva. Agora, no entanto, ao adormecer, essa é uma memória tão distante como qualquer outra imagem do dia: os remos da canoa a tocarem as águas do rio Kok, elefantes a lavarem-se nessas águas castanhas, muitas imagens misturadas. Agora, nesta imobilidade, volto a aperceber-me de todos os ruídos que me envolvem. A tela da tenda é a pele fina que me separa de milhares de vozes, cada uma delas pertence a um ser específico e individual. São ritmos de uma imensa variedade, mais rápidos ou mais lentos, mais agudos ou mais graves, assobios, roncos, sons insólitos às vezes. Adormeço no meio de uma multidão, aves, répteis e insetos que existem nesta extensão de floresta, em troncos, em mais de 1500 espécies diferentes de bambu, nos ramos enredados que cobrem esta floresta, montes de escarpas abruptas, em buracos da terra, sobre rochas, nas margens do rio ou do lago. Nos meus olhos, nesta escuridão, ainda a luz do dia, ainda a lembrança de cobras enroladas sobre si próprias, aninhadas em ramos, e pequenos macacos a comerem fruta, onde estarão neste momento?

Adormeço no meio de uma multidão e, no entanto, todos estes sons são uma espécie de silêncio porque são uma espécie de música. Nascemos para viver de acordo com uma multidão como esta, fazemos parte dela até quando a ignoramos. Como nos equivocámos ao construir tantas coisas que não nos faziam falta. Agora, no Parque Nacional de Khaosok, esta é uma constatação que me parece absolutamente evidente. Espero não esquecê-la quando sair daqui. Espero não voltar ao tempo em que desconhecia o que sinto agora.

Imagem de destaque: Direitos Reservados

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Crónica publicada originalmente na edição de fevereiro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 304.

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