Pelos Caminhos de D. Teresa – Roteiro Turístico de Guimarães a Toledo é um dos livro de Isabel Stilwell. A escritora e jornalista leva-nos numa viagem pelos seus hábitos e descobertas até à antiga capital de Espanha.
Texto publicado na revista Volta ao Mundo nr. 254

Passo o dedo no ecrã do telemóvel para abrir a aplicação da meteorologia e lá está Toledo, o sol a brilhar, e a previsão de uma noite de céu limpo e, acrescento eu, cheio de estrelas até ao infinito. Registei a cidade há quase dois anos, quando a visitei, e de vez em quando vou lá espreitar, num desejo infantil, ao estilo daquelas séries de ficção científica em que nos podemos desmaterializar e aparecer do outro lado, nas ruas estreitas e inclinadas, as portas de gigante, todas tão diferentes e magníficas, no silêncio da sinagoga com as suas colunas a lembrar árvores de uma floresta, numa esplanada, com vista sobre as casas que descem para o rio, para o «nosso» rio Tejo, que circunda esta quase ilha por três lados.

Desde que comecei a escrever romances históricos, já há quase dez anos, que as visitas aos lugares passaram a ter outro sentido: procuro nos sítios as marcas da personagem que persigo e, num primeiro momento, quase que fecho os olhos a tudo aquilo que não é da época que investigo, para não deixar que umas histórias contaminem outras.

Desde que comecei a escrever romances históricos as visitas aos lugares passaram a ter outro sentido.

Por isso era Toledo medieval que me interessava, era D. Teresa e o seu pai que procurava, o grande Afonso VI de Leão e Castela, que se tornou imperador de todas as Espanhas quando, em 1085, tomou a poderosa cidade moura, abrindo a porta à reconquista da Península ocupada pelo «infiel».

E sim, queria sentir os lugares onde D. Urraca soube que seria rainha, vencendo a irmã na corrida ao trono, conhecer o lugar onde o conde D. Henrique foi longe de mais… Vá lá, não desista, prometo que não o vou afogar em nomes e árvores genealógicas, só queria contar-lhe o que buscava quando ali chegámos, vinda de carro de Lisboa. Poderíamos ter escolhido tomar um avião até Madrid, e depois um comboio para fazer os cerca de 70 quilómetros de distância entre a nova e a antiga capital de Espanha (até ao século xvi), mas queríamos visitar, de caminho, Córdova, de onde veio Zaida, a princesa moura que se tornou amante (e depois mulher) do imperador e lhe deu o seu único filho varão, Sancho.

Quando nos aproximamos, a vista de Toledo é espantosa, camaleónica, funde-se com a paisagem, tão verde nas margens do Tejo, um oásis depois da travessia do deserto, cidade Património da Humanidade desde 1986, com todo o mérito. É possível entrar de carro na parte antiga da cidade, presa entre muralhas, desde que tenha planeado de antemão onde o vai deixar.

Os hotéis nesta zona raramente têm estacionamento, mas há alguns parques onde pode parar. E estacionar é o que mais apetece, tal a vontade de largar tudo e avançar a pé para as ruas, um chapéu na cabeça, é quente a sério, e uma mochila às costas. É o que fazemos depois de deixar a mala no Hotel Fonte Cruz, por fora um edifício renascentista recuperado, com um toque de arquiteto moderno, e por dentro clássico, demasiado clássico, mas com uma banheira de imersão (e sim, também há duche), de que preciso em todas estas viagens, para fechar os olhos e deixar que tudo o que vi e vivi durante o dia fique registado nos meus frágeis neurónios. Mas íamos na rua, desculpem, que já para lá voltamos.

Na «cidade das três culturas», hoje o slogan turístico de Toledo, reza a história que muçulmanos, judeus e cristãos, que constituíam então a maioria da população, viviam, à chegada de Afonso VI, em fraterna convivência mas, como descobrirá num rápido relance ao mapa, cada um no seu lugar.

É verdade que o pai de D. Teresa não teve dificuldade em aceitar que os sinos e os muezim de Toledo continuassem a chamar os fiéis, ou não fosse já regra interromperem-se as batalhas à sexta por respeito aos muçulmanos, aos sábados por consideração aos judeus e aos domingos por ser dia santo para os cristãos. Dito isto, nem o jugo do islão sobre Toledo tinha sido fácil para os de religião diferente nem o novo imperador os trataria a todos por igual.

A catedral é disso um bom exemplo: Afonso VI começou por «reconverter» a grande mesquita num templo cristão, nada de novo, porque a mesquita ocupara o lugar de um templo visigótico, e nomeou arcebispo primaz um monge da Ordem de Cluny. Afinal, a partir de então, Toledo teria de ser o posto avançado da reconquista.

Hoje é um edifício posterior, mais recente do que o paço episcopal à sua frente, mas vale a pena a visita. E a Mesquita Cristo de la Luz, então, deixa logo entender no nome as duas culturas que encerra, e a lenda faz o resto. Uma pedra branca na calçada indica o lugar exato onde o cavalo de D. Afonso VI subitamente se ajoelhou. Perplexo, o rei desmontou e, entrando na mesquita, viu um cintilar de luz por entre os tijolos da parede e, porque os reis podem, mandou abrir um buraco, encontrando um crucifixo, iluminado por uma lamparina, que pode ver no museu.

Vá lá, acredite na história, faz parte da magia destes lugares acreditar, e goze a beleza daquele lugar reabilitado em 2006. Está a ver como é irresistível escrever sobre estes lugares? Não sei bem explicar como é que tudo o que vejo, o que oiço e me ensinam, mas também a cor do céu, e os ramos das árvores, as águias que sobrevoam este monte, os cheiros e os horizontes entram nos meus livros, mas o que sei é que se tecem nas palavras e lá ficam.

Quando subo ao miradouro frente ao Alcazar, o enorme edifício que se vê de todos os lados porque se ergue no lugar mais privilegiado da cidade, esqueço que é o museu do exército, e só recordo que foi aqui que uma das grandes intrigas aconteceu. Recuo a 1908. Contra a vontade dos nobres da corte, contra a vontade do Papa, e contra a vontade dos condes portucalenses,o imperador tomara uma decisão: Sancho, o meio-irmão de Teresa, o filho mouro, seria o herdeiro. Mas Sancho morre aos 14 anos, aqui próximo, provando em batalha contra os sarracenos que o património genético não o impede de ser tão cristão como os seus correligionários. Tão digno de vir a ser um rei empenhado em continuar o esforço do seu pai. E é ali que escrevo: «Teresa estendeu os braços e deixou que as criadas a vestissem.

A ponte de Alcantara, em Toledo, é incontornável em qualquer visita à cidade

A túnica era de um azul-escuro, como o do céu numa noite de lua nova, que os tintureiros de Toledo faziam, as estrelas bordadas a ouro, um pedido expresso às mulheres que numa das salas do Alcazar bordavam sem parar os vestidos das damas da grande corte de Castelo e Leão. Todos negros, todos escuros, porque a ninguém era permitido esquecer a morte do infante Sancho.»

Mas o conde D. Henrique precipita-se. Sem o conselho de Teresa, ou a conselho de Teresa, nunca o saberemos, sugere ao sogro que o indigite, afinal se não tem filho, pelo menos tem genro, soldado como nenhum outro, mas deve ter escolhido mal as palavras porque o imperador expulsou-o, disse-lhe que nunca mais o queria ver, juram os cronistas. E nunca mais o voltou a ver, de facto. O desgosto de Afonso VI consumiu-o e a 1 de julho de 1109 morre, e o lamento do povo ouve-se, ensurdecedor, por toda a cidade e sobe aos céus! D. Teresa está grávida de oito meses quando a notícia lhe chega. E com ela uma outra igualmente terrível: Urraca, a odiada Urraca, é agora rainha de Leão e Castela.

Nem os médicos judeus o tinham conseguido salvar. Na cidade das três culturas, e em todas as outras, os médicos dos reis eram judeus, porque era sobretudo deles o conhecimento científico. Decididamente, é tempo de uma visita às sinagogas Del Transito e Santa María la Blanca, tão bonita, e, claro, ao Museu Sefardí — os livros, as roupas, as joias e os utensílios incendeiam a imaginação. A minha, pelo menos.

Depois, passeie, desça à ponte de Alcântara e atravesse-a, procure a Porta de Afonso VI, pare para admirar um batente de uma porta, os baixos-relevos numa parede, a varanda de uma casa e, ao pôr do Sol, descanse num muro, feche os olhos e recorde porque aqui estamos: «Teresa quase às cegas procurou um dos bancos da igreja, sentando-se nele, os braços em redor da barriga agora de quase nove meses. Se fosse varão, seria Afonso. Afonso, com a força e a determinação do avô. Do seu querido pai.» Foi o que eu fiz.

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