Passageiro Frequente

Estamos na Isla Mágica, em Sevilha e, quando nos entusiasmamos, ele diz: isto não é nada, havias de ver a Disney de Orlando. Estamos em Piccadilly Circus, e, quando vamos para tirar uma fotografia, ele diz: isto não é nada, havias de ver Tóquio. Estamos no mercado do Rastro, em Madrid, e, quando nos impressionamos com a quantidade de gente, ele diz: isto não é nada, havias de ver o mercado do Chatuchak, em Banguecoque. Estamos num jardim qualquer com patos e, no auge da nossa alegria, ele diz: isto não é nada, havias de ver o Jardim Zoológico de San Diego, na Califórnia. Depois, lembra-se e diz: E o Pantanal? Logo a seguir, lembra–se também e diz: E o delta do Okavango, no Botswana?
Não faça isto. Mesmo que os seus amigos nunca lhe tenham dito, ou principalmente nesse caso, não faça isso. É muito irritante. É uma falta de respeito para o tempo presente, para o que se está a viver naquele momento.
Afinal, está em Sevilha, em Londres, em Madrid. Tem a obrigação de aproveitar essa sorte. Está num jardim com patos, que é um lugar tão agradável, com tantas possibilidades de se ser feliz.
Além disso, com essa atitude, demonstra que perdeu discernimento, perdeu uma certa pureza ou uma certa nitidez no olhar, que é o pior que um viajante pode perder. Depois de passar essa fronteira, de pouco lhe servirá apanhar aviões e barcos à volta do mundo, só com muita dificuldade as suas referências do passado irão perder na comparação com as experiências do presente.
Esta carne assada é boa, mas havias de provar aquela parrilla em Buenos Aires; estas gambas são boas, mas havias de provar as de Moçambique; esta piscina é agradável, mas havias de conhecer a piscina do hotel onde fiquei em Miami.

Se conhece tanto o mundo, deveria saber que, no mundo inteiro, mesmo entre as tribos nómadas da Mongólia, não existe um único ser humano que aprecie ter o seu entusiasmo castrado pelas lembranças exageradas de outro.

A sério, não faça isto. Se conhece tanto o mundo, deveria saber que, no mundo inteiro, mesmo entre as tribos nómadas da Mongólia, não existe um único ser humano que aprecie ter o seu entusiasmo castrado pelas lembranças exageradas de outro.
Sábios são aqueles que, tendo viajado entre continentes, ainda conseguem maravilhar-se com um passeio a pé no seu bairro. Ir à praça aos sábados de manhã e comparar alfaces, apreciar-lhes a cor, é uma ciência. O mar não é igual em toda a parte e, depois de conhecer as praias do Pacífico, há ainda muito sal para conhecer, basta que não se desaprenda de olhar.
Havia de ter visto os países do Leste antes da queda do Muro de Berlim? Havia de ter conhecido Nova Iorque com as Torres Gémeas? Havia de ter visitado a Tailândia antes de ser descoberta pelos turistas? Não me parece. Aqui é um ótimo lugar.
Antes de comprar a melhor máquina fotográfica, com a melhor objetiva, o viajante deve prestar atenção à afinação dos sentidos. Sem eles, não se viaja, pouco importa se o destino é a Nova Zelândia ou, apenas, até ali ao fundo.
O sinal de alerta é achar que já viu tudo. Preocupe-se quando lhe parecer que o mundo infinito e transcendente já não o espanta. Nesse caso, por muito que lhe custe, acredite: o problema não está no mundo, está nos seus olhos.

Texto de José Luís Peixoto
Crónica da edição de dezembro 2014 - n.º 242
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