O que nós andámos para aqui chegar. Passou quase um dia desde que, deslumbrados, acenámos à velha montanha «até um dia destes» enquanto à jovem prometemos voltar para a conhecer. O regresso de comboio, com espetáculo e passagem de modelos a bordo, fez-se desta vez até Ollantaytambo, em Vale Sagrado, onde jantámos e dormimos, pouco. O despertador tocou de madrugada. Autocarro até Cusco, com as margens do rio Urubamba a conduzirem-nos. E a seduzirem-nos. Não podemos ficar aqui um dia? Só um? Não. O avião que liga Cusco a Puerto Maldonado, porta de entrada na selva amazónica peruana, não espera. E eis que aterramos. O ar aqui não é pesado. É quente.
E húmido. Welcome to the jungle.

Ainda sob o efeito Machu Picchu, o atraso das bagagens, que perderam o avião, não chateia. Bebe-se mais um chá de coca, há tempo para nos encharcamos em repelente e arrumar expetativas sobre o que ainda temos para conhecer. Sem stress.

Na selva, entrar no espírito é tão importante como a respiração em Cusco. Telefone e luz são raros. A natureza domina.

Enfim, as malas e o caminho de terra batida até ao barco, daqueles que cruzam rios como este Tambopata, irmão do que dá nome à pousada para onde nos dirigimos: Posada Amazonas. Durante o percurso, o guia esclarece, ao microfone, em inglês, que a agricultura e a colheita de castanha-do-pará são por aqui as principais atividades económicas. A febre do ouro, que debilitou o ecossistema, rios, lagos, terras, fauna e flora, foi debelada e uma das tentativas de a curar passa precisamente pelo ecoturismo que aqui nos trouxe. «É uma nova atividade, que está a crescer lentamente, mas que começa a dar frutos», diz o guia. E começa. O conceito é inspirador. Uma empresa privada, a Rainforest Expeditions, juntou-se à Comunidade Nativa de Infierno, para erguer e explorar eco-resorts rio acima, em plena Reserva Nacional de Tambopata. A filosofia (e a prática) é toda virada para a sustentabilidade ecológica e o turismo de natureza. E os lucros são dividos justamente: 30 por cento para a Rainforest, 70 por cento para a comunidade, que daqui a uns anos tomará em mãos a gestão total das unidades hoteleiras. Não sem antes preparar quem fique ao leme. Para não repetir experiências desastrosas do passado.

Uma viagem de barco rio Tambopata acima é o primeiro «embate» com a selva amazónica. E causa boa impressão.

A Posada Amazonas é um eco-resort gerido em parceria pela Rainforest Expeditions e pela Comunidade Nativa
de Infierno.

A tarde é de sol, o calor e a humidade apertam, e por isso os salpicos que a navegação provoca são bem-vindos. Uma família que toma banho, meio vestida, junto à margem do rio, parece troçar deste bando de turistas branquelos e vestidos, quase camuflados, dos pés à cabeça. Podem troçar. Os mosquitos não nos vencerão.
Do cais à pousada são 10, 15, 20 minutos a pé. Não é selva cerrada, passa por aqui gente, mas a nós parece que uma planta carnívora estará à espreita, por entre toda aquela vegetação. «Cuidado com as formigas, não pisem as formigas», avisa Marlene, a nossa guia, paciente, sorriso distante e passo rápido, difícil de acompanhar. São muitas, mas a missão não é impossível. Há que entrar no espírito.

Entrar no espírito aqui é tão importante como a respiração em Cusco. Não há rede telefónica, a eletricidade só está ligada até às dez da noite, o wifi é limitadíssimo e a água, que deve ser usada com parcimónia, nem sempre está disponível na versão quente.
E para quê, com o calor que faz? Os quartos são de madeira e abertos ao ar livre, numa espécie de alpendre onde fica a rede de descanso. As camas estão protegidas por uma rede mosquiteira tão forte que forma quase um casulo. Cinco estrelas. Mas «selvagens».
À chegada, a receção com um sumo natural fresco sabe melhor do que champanhe francês e, ainda mal recuperadas as forças, partimos para uma caminhada de cinco quilómetros até ao lago Três Chimbadas, onde nos espera uma jangada conduzida pelo senhor Luís, que tem como copiloto o neto de 5 ou 6 anos, escondido no interior da primitiva embarcação.

No lago Três Chimbadas, pesca-se piranhas ou curte-se simplesmente a natureza e o silêncio.

A observação de pássaros é um dos maiores chamarizes turísticos por estas bandas, mas outros animais estão à espreita, ou nós deles. E ainda há que experimentar a pesca de piranhas. Inglória. Ao cair da tarde, o luxo é feito de silêncio e céu, vegetação e água. Depois de Machu Picchu quem diria que poderíamos voltar a ser arrebatados?

A observação de aves é grande chamariz turístico da selva peruana. O turismo de natureza é uma das apostas da região no sentido da sustentabilidade.

É noite quando voltamos e os cinco quilómetros de caminhada de regresso parecem dez, feitos numa mistura de emoção e sobressalto, dispensando a caminhada noturna que estava no programa e que é uma das atividades incluídas na oferta da Posada Amazonas. Em vez desta, banho, jantar e cama, às 10h00, hora de recolher, que as luzes vão apagar e a manhã começará às 04h00 para ver o nascer do Sol do alto da torre Canopy, de 37 metros. Nova caminhada, noite ainda, outros tantos quilómetros. A experiência teria sido inesquecível se as nuvens tivessem permitido que o Sol se mostrasse a nascer. Mas anunciam uma carga de água que há de fazer-nos perder o avião que nos levaria a Lima a tempo de voarmos para Lisboa. Isso ainda não sabemos, quando do alto da instável torre, imprópria para quem tem vertigens, nos esforçamos por apreciar a paisagem. Um esplendor. Embalados pelos guinchos das araras e dos macacos e atentos à explicação de Marlene sobre as diferentes espécies de vegetação e animais, regressamos à pousada. Ainda não tivemos tempo para nos ambientar e já é hora de despedida. Não fizemos uma natural tatoo nem experimentámos o spa ou conhecemos a comunidade nativa. Pior, não dançámos. Dançamos no aeroporto. A pedir que a chuva pare. E que um dia possamos voltar. Com mais tempo.

Texto de Catarina Pires - Fotografias de Leonardo Negrão/Global Imagens
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