Nepal — conta-me como foi
A memória daquilo que já foi o Vale de Katmandu. Um portfólio de Diana Quintela antes do terramoto de abril.
Duas cidades inesquecíveis
Bhaktapur e Kathmandu são visitas essenciais no Nepal, principalmente para quem está a caminho dos campos-base que dão acesso ao Annapurna ou Evereste. A capital é a grande porta de entrada dos turistas no país e, até ao terramoto do mês passado, os números de visitantes não paravam de aumentar. No início da década de 1960, pouco mais de seis mil pessoas visitavam anualmente o Nepal. Quarenta anos depois, esse número já rondava meio milhão. Em 2013, o site TripAdvisor incluiu o país no top 10 dos destinos a visitar, sendo o número um na Ásia. Entre os motivos, está a riqueza histórica das cidades, por exemplo. Kathmandu tem quase dois mil anos e, até há bem pouco tempo, passear pela praça Durbar e apreciar o templo de Kasthamandap (abrigo de madeira, em sânscrito), no meio de centenas de motorizadas e milhares de pessoas, era quase obrigatório. Thamel é o bairro mais ocidentalizado da capital nepalesa, com restaurantes, hostels, bares e néons em cada esquina. É um mundo diferente dentro de uma cidade de tradições que começou a ser falada com a chegada dos hippies nos anos 1960 e 1970. Sim, os Beatles andaram por aqui, mas não só. Cat Stevens escolheu o nome de Kathmandu para uma das suas canções. E Janis Joplin e John Lennon também a referiram em algumas das suas letras. É normal, Kathmandu entranha-se. Tal como Bhaktapur, a 13 quilómetros de distância, antiga capital do território no século xv. Foi uma das mais afetadas pelo terramoto, mas será sempre impossível esquecer a sensação de percorrer estas ruas retratadas pela Diana Quintela. Impecavelmente preservada, foi cartão-de-visita da história nepalesa, reconhecida como Património da Humanidade pela UNESCO. Arte e arquitetura conjugadas de forma perfeita, tal como os sorrisos de quem lá mora – morava. Durante séculos foi ponto de passagem na rota entre o Tibete e a Índia. Ficou próspera graças à sua localização. Quase desapareceu do mapa pela posição geográfica, numa das áreas sísmicas mais sensíveis do planeta. A Porta dos Leões, o Palácio das 50 Janelas, os templos de Batsala, Pashupati, Nyatapola… a lista é interminável. Na maior parte dos casos irrecuperável.
Encaixado entre a Índia e a China, o Nepal tem uma população de 27 milhões de habitantes. No seu território encontramos oito das dez mais altas montanhas do mundo. Entre elas, o Evereste.
Como ajudar o Nepal?
Além das campanhas mediáticas há outra forma de contribuir para a recuperação do Nepal. E sem se deslocar ao outro lado do mundo. Por cá, a comunidade nepalesa está bem organizada. Kanchha Sherpa, cozinheiro de profissão, é o presidente da Nepal Federation of Indegenous Nationalities em Portugal, grupo de cidadãos nepaleses que meteu mãos à obra. O ponto de partida foi esta mensagem: «O Nepal e os povos do Nepal estão atualmente em situação dolorosa devido ao forte terramoto. O terramoto criou milhares de mortos, feridos e inúmeros danos materiais. Os edifícios antigos, vários templos no vale de Kathmandu e algumas das pontes estão em colapso: estradas, eletricidade, abastecimento de água e linhas telefónicas estão interrompidas. Nossos compatriotas estão sofrendo de dor, de fome e a situação é grave. Humildemente apelamos para as comunidades internacionais fornecerem ajuda enviando equipas médicas nacionais para o Nepal.» Mais informações através do e-mail [email protected] ou do telefone de Kanchha Sherpa (920113865). Para donativos, aqui fica o NIB: 0010 0000 5262 6390 0017 6.
Bhaktapur, museu ao ar livre. Assim era conhecida a cidade a 13 quilómetros da capital nepalesa. Hoje, os sorrisos já não são os mesmos
Cerca de 80% da população é hindu. Shiva é vista como a deusa protetora do Nepal. Os 10% de budistas também não ficam mal servidos, porque é no país que se localiza Lumbini, o local onde Buda terá nascido.
Deusa viva
Patan é uma cidade na região centro-sul do Vale de Kathmandu. É conhecida pela sua riqueza cultural e pelas tradições seculares do seu povo, nomeadamente o artesanato. Foi outro dos pontos mais afetados pelo terramoto de abril deste ano, deixando desalojada grande parte dos seus 220 mil habitantes. Foi em Patan que, em 2013, a fotógrafa portuguesa Diana Quintela teve um encontro imediato com Summit Bayrasharya, uma Kumari Devi, deusa viva, quando deambulava pelas ruelas desta cidade histórica.
No Nepal, há uma tradição milenar de se adorar raparigas pré-adolescentes como se estas fossem manifestações reais da energia divina feminina. A palavra deriva do sânscrito, significa virgem, e aplica-se a jovens solteiras veneradas pelos nepaleses hindus e budistas.
No Nepal, a devoção às Kumaris remonta ao século XVII, mas a tradição da adoração de virgens tem mais de 2300 anos de história.
O processo de seleção de uma Kumari é rigoroso e assemelha-se ao que se passa no vizinho Tibete com o Dalai Lama. As raparigas elegíveis são da casta Newar Shakya (o clã a que Buda terá pertencido), têm de ser saudáveis, não podem ser ainda menstruadas nem ter perdido qualquer dente. As que ultrapassam esta primeira fase terão de obedecer a outros requisitos, as «32 perfeições». Entre estas, «ter o pescoço como um búzio, o corpo como uma figueira de Bengala, as pestanas de vaca, coxas como as de um veado, peito de leão e a voz suave e clara como a do pato».
O maior teste, no entanto, é durante o festival hindu de Dashain. Numa das noites, 108 búfalos e cabras são sacrificados à deusa Kali. A jovem candidata é levada então para o templo Taleju e deixada num pátio cheio de cabeças de animais e iluminado por velas, rodeada por homens que dançam. Se tem as qualidades necessárias, a candidata não irá mostrar medo. Se mostrar, outra rapariga ocupará o seu lugar. O teste final é passar a noite rodeada pelas cabeças dos animais sacrificados. No dia seguinte, a rapariga terá de escolher, entre vários, os pertences da Kumari anterior. Só depois disso ela será uma Kumari, com direito a ser servida e adorada pelo povo.
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Diana Quintela – fotógrafa
Nasceu em Lisboa em 1985. Estudou na Etic e é licenciada em Fotografia e Cultura Visual pelo IADE. Estagiou no Diário de Notícias, passou por Público e A Capital e hoje é freelancer, colaborando com a Global Imagens. Esteve no Nepal em 2013 e foi apanhada pelo fascínio de Katmandu.