Nos passos de Marguerite em Saigão

«Olho as mulheres nas ruas de Saigão, nos postos de mato. Há-as muito belas, muito brancas, têm um cuidado extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos de mato. Não fazem nada, guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os amantes, as férias em Itália, as longas licenças de seis meses, de três em três anos; quando poderão finalmente falar do que se passa aqui, desta existência colonial tão particular.» O Amante, Marguerite Duras

Assim, Marguerite Duras dissecava a vida das mulheres na Saigão colonial dos anos 1920. Nascida nos arredores da cidade, a escritora passou a sua infância e puberdade no delta do rio Mekong. A sua sensual novela autobiográfica, O Amante, alinhavou recordações de uma adolescência em que o amor e o sexo, presos entre as diferenças de classe e raça da sociedade colonial, e pintou um dos mais evocativos retratos do Vietname da época. Na sua novela e mais tarde no filme de Jean-Jacques Annaud, o legado francês na antiga Indochina e a relação entre colonizadores e colonizados são retratados com uma implacável veracidade. Pouco mais de um século depois do nascimento desta autora francesa, regressar ao Vietname em busca de pistas desse passado é uma tarefa complicada. Poucos são os rastos físicos que ainda existem em Saigão (inclusive, o seu nome mudou para Ho Chi Minh, em 1975) a que nos possamos agarrar para recriar o cenário em que Duras viveu uma das grandes histórias de amor da literatura. Choveu demasiado e são demasiadas as feridas sem cicatrizar num século de história num país vítima do colonialismo, primeiro, e de uma guerra selvagem, mais tarde.

Marguerite Duras nasceu a 4 de abril de 1914 em Saigão e morreu a 3 de março de 1996 em Paris. O Amante é uma obra autobiográfica de Duras publicada em 1984. Foi distinguida com o prémio Goncourt desse ano e adaptada ao cinema em 1992.

Os vietnamitas olham hoje para o futuro e apenas têm tempo para a nostalgia. Enquanto uma obra como O Amante em qualquer país seria considerada bem cultural nacional e usada como folheto turístico, em Saigão até encontrar o livro é uma tarefa árdua. Percorro livrarias e em várias delas desconhecem o título e a autora. Finalmente, num ponto de rua, entre propaganda comunista, CD piratas e um par de cópias desse outro grande imprescindível relato da história recente do Vietname, O Americano Tranquilo, de Graham Green, encontro um exemplar de O Amante. Uma fotocópia do livro (incluída a dedicatória na primeira página para o destinatário original) que já perdeu a cor, que compro por 80 mil dongs (três euros). As suas páginas de letra borrada serão a minha companhia nesta viagem.

A mansão do pai do amante de Marguerite, Huynh Thuy, foi declarada monumento de interesse cultural em 1986. Em cima, destaque para uma das edições em inglês do livro de Marguerite Duras, «O Amante».

Após a inicial deceção e a vertigem que produz a voragem e o caos de uma urbe de sete milhões e meio de almas empenhada em conquistar a modernidade, surgem pormenores que nos falam de um tempo desvanescido, retalhos daquela que um dia foi a «Paris do Oriente». O exemplo mais evidente é a Batedral de Notre-Dame, nem tão antiga nem tão bela como a francesa. As torres de 58 metros deste templo de ladrilhos e mosaico vermelho erguem-se desafiantes na Praça Cong Xa Paris, no coração de Saigão. Com mais pedigree e com a mão de Gustave Eiffel por trás da sua construção, a Central de Correios construída nessa mesma praça é um dos edifícios mais belos de Saigão. O imenso relógio que adorna a sua fachada neoclássica e o seu interior abobado fazem lembrar uma estação de fim de século com comboios a partir para o resto das colónias. Espaço para a nostalgia à esquerda e à direita com antigos mapas do Vietname e cabinas de madeira com relógios que marcam a hora nas grandes capitais do mundo, num tempo em que Saigão estava entre elas. Mas a nostalgia dura pouco.

Dos 90 milhões de habitantes, mais de 60 por cento têm entre 15 e 50 anos. Um país que recupera o vigor populacional.

Ao fundo, presidindo a galeria, com o seu olhar paternal, um gigantesco retrato do pai do Vietname moderno, Ho Chi Minh, domina o edifício. Não longe dali, a rua Dong Khoi, outros lugares, fazem-nos viajar no tempo. Entre eles, o cinematográfico Continental Hotel, lugar de encontro e intrigas de jornalistas e espiões durante a ocupação francesa e favorito de Graham Green. No interior, demasiadas renovações desafortunadas e o Estado vietnamita como gestor estragaram qualquer vestígio de encanto. Em frente ao hotel, a Ópera de Saigão é o centro cultural da cidade. O AO Show, um espetáculo a meio caminho entre o circo, a dança e o teatro, domina o cartaz e oferece uma janela para a vida rural do Mekong, através dos seus delicados cenários em bambu. Saigão foi um dia famosa pelos seus restaurantes de topo e os seus cafés com esplanadas. Hoje, a cultura do café permanece em modernos estabelecimentos com wi-fi, sumos naturais e toda a variedade de cafés que se possa imaginar. L’Usine não estaria fora de lugar no Soho de Londres ou no Village de Nova Iorque. Tetos altíssimos neste antigo armazém, onde se pode comer, beber e comprar numa loja super cool de artigos importados de moda e de decoração. Os preços também são importados, o que faz que comprar aqui esteja ao alcance de muito poucos vietnamitas. Nas mesas do café, no entanto, jovens locais e estrangeiros partilham mesa enquanto desfrutam de cremosos capuccini e devoram as sanduíches mais deliciosas de toda a Saigão.

Em cima, L’Usine, ponto de encontro – antigo armazém onde se servem refeições e artigos importados.

Procuro os restos dessa cidade descrita por Duras como «a melhor cidade do mundo para ter um affaire» entrando por ruelas aparentemente sem saída, mas que muitas vezes escondem todo um mundo de lojas, obscuros cafés, fumegantes postos de comida e casas de massagens. Na rua, paro um a moto-táxi e indico no mapa o bairro chinês de Cholón. Montada numa moto em Saigão, é possível experienciar a harmonia do universo: se neste caos de manadas motorizadas é possível circular sem chocar com nenhum dos outros milhares de motos que te rodeiam, é porque existe uma ordem superior à do código da estrada. Sigo o percurso que Duras com os seus tenros 15 anos tantas vezes fez para encontrar-se com o seu endinheirado e experiente amante chinês num apartamento onde a luz filtrada pelas persianas de madeira acendeu o despertar sexual da escritora. Do apartamento do amante não há rasto algum. O bairro, frenético, ocupado a cada metro quadrado por vendedores ambulantes e envolvido por um aroma a especiarias chinesas, fritos e à mais «cheirosa» das frutas – o durian –, convida hoje a tudo menos ao romance.

Um affaire no rio

Para encontrar o brilho de um idílio, há que sair da cidade e aproximarmo-nos do rio. No delta do Mekong, o minicruzeiro L’Amant percorre as passagens autobiográficas da novela. Ancorada no embarcadouro de Chau Doc, esta embarcação com ar de fim de século transporta-nos pelas águas do delta. Só aqui, nos camarotes de madeiras nobres, debruçado na varanda de estilo anos 1930 a observar a vegetação à deriva na superfície do rio, é possível recuperar o espírito que evocou Duras. Quando cai a noite, após um opíparo jantar, partilhado com um punhado de comensais (o barco tem apenas 12 camarotes), sentamo-nos no convés para ver a projeção a céu aberto do filme O Amante (1992). Mais tarde, os passageiros, na sua maioria casais, retiram-se para os camarotes com o erotismo da história ainda fresco nas retinas, para, sem dúvida, invocar a sua própria versão do relato entre os lençóis.

O cruzeiro percorre o delta do rio Mekong e há programas com duração de dois a sete dias.

Ao amanhecer, depois da visita a um modesto mercado flutuante, chegamos à cidade de Sa Dec onde Duras passou a infância. O colégio onde a sua mãe lecionava continua de pé e mantém-se uma movimentada escola. Mas o verdadeiro lugar de peregrinação é a impressionante mansão do pai do amante chinês Huynh Thuy Le. O luxuoso altar de mogno e folha de ouro em honra dos seus antepassados preside à entrada desta casa-palácio. Declarado monumento de interesse cultural em 1986, recebe hoje centenas de visitantes por dia, na sua maioria franceses, que chegam, como eu, seguindo o rasto de um relato de amor. Nas paredes, as fotos reais a preto e branco de Huynh Thuy e Marguerite Duras misturam-se com fotogramas do filme com os atores que os encarnaram no ecrã. Os que aqui estão procuram nos ladrilhos antigos os pés descalços do casal e escutam a música que sai de velhos gramofones do tempo em que a paixão enchia cada recanto desta requintada casa. Mas o seu frenesim nunca aconteceu entre estas paredes. O pai do amante chinês não aceitou a relação e nunca permitiu que Margarite entrasse nesta casa. O amor proibido viveu em Saigão e nas páginas de um relato mais poderoso do que o passar do tempo.

 

O Six Senses Con Dao é considerado o melhor hotel do país. Percebe-se porquê.

Con Dao
As ilhas que nos agarram

Recostado na espreguiçadeira do meu quarto, contemplando a praia de areia branca a fundir-se com o verde das águas transparentes rodeadas de montanhas e frondosa vegetação, é difícil reconciliar esta visão do paraíso com a experiência do inferno que sofreram os presos políticos trazidos para esta ilha-prisão durante a época colonial francesa e, mais tarde, durante a Guerra do Vietname. Situada a 230 quilómetros de Ho Chi Minh, Con Son, a maior das ilhas do arquipélago de Con Dao, converteu-se na Alcatraz do Vietname. A partir do oásis perfeito que é o hotel de luxo Six Senses Con Dao, localizado no Parque Nacional de Con Dao e possivelmente o melhor hotel de todo o país, a sensação de paz é tão grande e a beleza natural da ilha tão esmagadora, que repelem essa recordação como se fossem os mesmos polos de um íman. Ainda que Con Dao não queira esquecer o seu passado (é possível fazer uma visita aos três presídios abandonados), a natureza, com essa mesma força que criou rachas nos muros do terror, hoje cobertos de vegetação e perfurados pelas raízes, é hoje o cartão-de-visita de uma ilha ecológica alheia ao turismo de massas.

Bay Canh é um santuário da natureza onde estão em destaque as tartarugas verdes. A desova decorre de julho a agosto.

A apenas 15 minutos de barco desde o hotel Six Senses encontra-se a ilha de Bay Canh, santuário natural das tartarugas-verdes. Durante a época de desova (entre julho e agosto) é possível presenciar o majestoso momento em que as fêmeas, à luz da Lua, enterram os ovos na praia. Aqui também se encena essa corrida de vida ou morte das tartarugas recém-nascidas e a sua frenética fuga para o mar segundos depois de terem saído da casca. Na povoação, as embarcações típicas do Vietname – em forma de cestas gigantes feitas de bambu ou plástico – regressam com o espólio do mar que acabará nos postos de venda ou numa simples caixa no mercado local. Enguias, lagostins e chocos numa calçada e cabeças de porco, frangos vivos e língua de vaca na outra. Vegetais, especiarias e frutas exóticas dão o toque de cor e de aroma ao postal que é este mercado genuíno.

Regresso ao hotel, percorrendo as encostas com a minha moto alugada e começando a sentir as gotas de uma tormenta que se avizinha. Chove com força sobre a ilha, mas, apesar da fina cortina de chuva, o mar convida a mergulhar nas suas águas. Neste paraíso não é necessário o sol apanhar-nos. As tempestades, geralmente curtas, não são uma perturbação, mas sim parte do espetáculo.
As tartarugas que nasceram só voltarão passados pelo menos 30 anos, quando estiverem preparadas para desovar. Se eu fosse uma delas, regressaria muito mais cedo.

Con Son foi o inferno para milhares de presos políticos durante o domínio francês e a presença americana. O arquipélago é composto por 15 ilhas e 80 por cento deste território faz parte do Parque Nacional de Con Dao.

Hoi An iluminada

Na cidade da luz, os sonhos custam 25 cêntimos. Por esse valor é possível comprar uma vela dentro de uma pequena caixa de cartão a alguma das crianças que esperam a chegada dos turistas nas margens do rio Thu Bon. Uma vez acesa a vela e formulado o desejo, a criança, com ajuda de uma vara comprida, deposita a caixinha na água para que esta flutue à deriva até que a humidade do cartão a faça afundar. Cada fim de tarde, quando, quase sem avisar, o pôr do Sol abre a porta de forma repentina à obscuridade, o rio enche-se de centenas de desejos que flutuam sem rumo.

Hoi An é possivelmente uma das cidades mais encantadoras do Vietname. Com pouco mais de 90 mil habitantes, este enclave costeiro do mar da China Meridional conserva o encanto cosmopolita daquele que foi o porto mais importante do Sul da Ásia. Desses tempos sobrevivem as luxuosas mansões dos mercadores japoneses, os elaborados templos chineses e os antigos armazéns de chá. Alguns destes edifícios são hoje restaurantes, lojas de souvenirs, alfaiatarias e pequenos hotéis, mas, apesar disso e dos milhares de turistas que aqui chegam, Hoi An preparou-se para não ser engolida pela maquinaria turística. Afortunadamente para Hoi An, dois dos seus atuais interesses turísticos, o fabrico de lanternas de papel e as alfaiatarias, são parte da sua herança ancestral. Hoje, as traseiras das casas são muitas vezes pequenas fábricas artesanais onde exércitos de mulheres trabalham contrarrelógio para cumprir as encomendas dos turistas sempre com pressa. Como não podia deixar de ser numa cidade de porto fluvial, o rio é a artéria mais importante. Nas suas margens surgem improvisados pontos de comida com pequenos churrascos onde se cozinham espetadas de frango temperado e lulas, panelas de barro fumegantes com sopa e grandes tigelas em que se cozem os ingredientes dos hot pots. Os pontos de comida estão muitas vezes decorados com um cordão de lanternas de cores laranja, azul e amarela. Bouquets de luz pendurados das árvores como se fossem frutas maduras, numa cidade onde nunca é de noite.

Fábricas de lanternas de papel e alfaiatarias são os motores económicos de Hoi An. A parte velha da cidade foi distinguida como Património da Humanidade pela UNESCO.

Guia

Moeda: Dong (1€ = 24500 VND)
Fuso Horário: + 6 horas
Idioma: Vietnamita
Quando ir: de setembro a dezembro e de março a abril. De maio a setembro é o período das monções ao sul. De outubro a abril, no nordeste do país, as temperaturas são estáveis ao longo de todo o ano.

Texto e Fotografia de Rafael Estefania
Reportagem na edição de julho 2015 - n.º 249
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