Os moçambicanos dizem que o arquipélago de Bazaruto tem as melhores praias do mundo.

Debaixo de água as garoupas afiguravam-se como soldados organizados, marchando ordenadamente pelas águas, mudando de rumo na mesma fração de segundo e segundo o mesmo azimute. Felizmente tinha máscara de mergulho e barbatanas – pude seguir-lhes o rasto. Elas acusaram o toque. Aproximei-me tanto que todas elas se esconderam no mesmo coral. Fiquei a brincar com o cardume durante um espaço de tempo que me pareceu de horas. Contei a história ao velho Alpano, moçambicano de peles secas e rugas de maresia. «Ah», anotou ele, «isso foi Adjonge, a sereia, querendo dançar. Estava tentando seduzir você.» Constatou que os dedos das mãos e dos pés não lhe chegavam para fazer a soma do número de filhos e demorara uma eternidade a contar-me quantas mulheres tinha (quinze, duas mãos mais o pé direito). Agora estava sério, firme, o peito inchado com a conversa. Afinal tinha 81 anos, quase todos de pesca, conhecia intimamente cada corrente do canal de Moçambique. Mais do que sangue, nas veias deste homem corria mar. O seu discurso fascinava-me, sabiame a mitologia com travo de Índico. Nunca o interrompi. Mais tarde, comprovei que tinha sido fundamental escutar Alpano com ouvido atento. Se há coisa que aprendi em Bazaruto foi a nunca subestimar o poder da superstição.

Tínhamos chegado ao arquipélago três dias antes, a bordo de um bimotor que descolara do aeroporto de Vilanculos, na província de Inhambane, no Sudeste de Moçambique. Nos quinze minutos da viagem não consegui nem por um segundo desviar os olhos da janela. A dois mil metros de altitude, a visão do mar era tão transparente que permitia ver a sombra das nuvens projetada no fundo da areia.

Diz a lenda que, ao fim do dia, quando a noite cai, Adjonge, o peixe-mulher, sai do seu esconderijo nas profundezas do mar.

Em 1971 o arquipélago de Bazaruto foi declarado Reserva Marítima Nacional graças à impressionante biodiversidade do mar das ilhas. Corais de todas as espécies criam uma barreira que serve de abrigo a animais como o tubarão-baleia, a tartaruga marinha, o manatim, o peixe crocodilo. A estrela da companhia, no entanto, é o dugongo, o cetáceo que conquistou o título de maior herbívoro dos oceanos. À primeira vista parece uma baleia pequena. O segundo olhar regista as diferenças: cauda bifurcada, bossas abdominais, focinho espalmado. Está praticamente extinto no mundo mas encontra aqui um derradeiro refúgio.


Um arquipélago histórico
Benguerra, Bangue, Margaruque e Santa Carolina são as restantes ilhas deste arquipélago tão especial. Bazaruto é a maior das cinco (sete quilómetros de largo por 37 de comprido) e todas elas já estiveram ligadas ao continente africano. Separaram-se pela força das marés e do vento.


Com dunas e palmeiras, a costa da ilha parecia um pedaço do Éden diante dos meus olhos. Reparei num pequeno acampamento de pescadores, as cabanas da cor da areia, a carcaça de um dhow – casca de noz movida a vela e vara – que um dia deve ter transportado peixe. Dos 3.500 habitantes do arquipélago, 70 por cento vivem da pesca. André Julai, 54 anos, orgulha-se de ter construído mais de metade da frota de dhows do Bazaruto, umas 80 embarcações. «Só perdi duas, foram ao fundo. Mas não foi problema de construção não. Foi Adjonge que as levou para baixo.» O estaleiro de André ficava numa pequena enseada de água verde. Na areia, as carcaças de uns quantos barcos, uma cabana para dormir e outra para secar pescado – um torno, umas caixas de pregos, meia dúzia de martelos. Trabalhava de pernas cruzadas, costas voltadas para o mar. Só se levantou e virou os olhos para o canal quando decidiu contar-me como a marinhagem reconhece a sereia: em dias de mar calmo, sem sinais nem previsões de tormenta, levanta-se por vezes uma ventania muito forte em torno de uma pessoa. É quase um furacão, capaz de envolver um homem num túnel de ar de onde é impossível ele evadir-se. Depois, as nuvens levantam-se das águas e fazem uchurutzua – engolem o homem! Ele desaparece na bruma e regressa nas ondas. Morto e desgraçado ou vivo e santo. André nunca tinha visto Adjonge. Mas garantiu-me que um régulo sábio que vivia mais a sul e se assumia como paternidade de uma inumerável descendência conhecia bem a sereia. Chamava-se Alpano.

Junto à piscina do Hotel Anantara, à beira da praia, as tardes são de música. É difícil resistir ao ritmo quente de África.

A oferta hoteleira de Bazaruto é constituída por dois resorts luxuosos – o português Pestana Lodge e o sul-africano Anantara Bazaruto Island Resort & Spa. Ficámos no segundo, com dunas de um lado, lagos do outro, praia a perder de vista. As habitações (um conjunto de cabanas espaçosas, construídas em madeira) albergam uma clientela internacional. Dentro do hotel, a língua oficial é o inglês. Conhecemos dois alemães, um russo com a namorada, um jornalista mexicano e um grupo de reformados suíços que compraram um avião e decidiram passar o resto da vida a viajar pelo mundo. Conversávamos sempre em inglês, excepto com os empregados. Isso criava uma cumplicidade, que os outros hóspedes comentavam com uma ponta de inveja. É que lusofonia, bem vistas as coisas, também é descontracção.

A manhã prometia calor quando entrámos na lancha de Luís Azevedo, guest-relations do hotel, moçambicano de pele branca e educação portuguesa. Disse-nos que vivia na ilha há mais de três décadas e revelou ter um interesse sincero por História. Ao longo dos anos, recolheu todas as informações que pôde sobre Bazaruto, o que, inevitavelmente, o torna numa autoridade na matéria. «No Sul, perto da aldeia de Pangaia, foram encontrados vestígios que julgo serem árabes, penso que com três mil anos», disse-nos enquanto zarpávamos da baía de Zenguelemo, frente ao Indigo Bay. À medida que nos afastávamos da costa, olhávamos as mulheres debruçadas sobre a água, na apanha da ostra. «A rainha de Sabá vinha aqui buscar as suas pérolas», comentou ele a propósito. «E o próprio Lourenço Marques trazia para esta ilha a sua amante, às escondidas de toda a gente.» Silêncio. Dei por mim a pensar como tudo em Bazaruto parecia girar em torno das mulheres.

Mar adentro, rumo à ilha de Santa Carolina. Pelo caminho, mergulhar e fazer snorkelling, brincar nos corais e encontrar o tal cardume de garoupas. Eu acho que eram garoupas. Por fim atracar em Paradise Island, como lhe chamam os sul-africanos. Apneia, mergulho de botija, pesca, surf, bodyboard, visitas culturais, passeios a cavalo nas dunas e observação de golfinhos são algumas das atividades que os hotéis de Bazaruto organizam. Mas nós escolhemos fazer uma manobra de evasão em direcção à insularidade mais próxima. Na proa, Luís Azevedo. Ao leme, dois homens simpáticos, antigos pescadores. A pesca ainda é o motor da economia, mas também existem os resorts que trouxeram a Bazaruto empregos, poder de compra, escola, polícia e centro de saúde.

A reserva foi financiada por portugueses e hoje tem apoios da união europeia e do World Wildlife Fund.

Desembarcámos numa enseada despovoada, como aliás é toda esta ilha fantasma de Santa Carolina. Nos anos 1930 e 40 albergava uma prisão e, segundo Luís, nos escombros da cadeia ainda se encontram ossadas, agrilhoadas pelos pulsos ou pelos tornozelos. Os locais consideram esta terra amaldiçoada. É território de espíritos amargurados. Foi aqui, numa avenida desolada, que o português Joaquim Alves inaugurou em 1948 um luxuoso hotel, construído a braços pelos prisioneiros e abandonado há muitos anos No Norte de Bazaruto, jaz a mais antiga construção da ilha: um farol, edificado em 1910. O arquipélago é rico em histórias de naufrágios, e a luz foi bênção para os marinheiros em noites de tempestade. Hoje, os sistemas de GPS tornam a estrutura inútil. Em 1880, Carlos Augusto Pinheiro teria agradecido qualquer uma dessas tecnologias. O imediato do vapor D. Carlos morreu na noite de 18 de janeiro, quando a embarcação embateu nas rochas. O facto está registado numa lápide colocada num túmulo da aldeia de Sitónio. Ao lado, outra sepultura. Pertence a um marinheiro inglês, que também naufragou nestas águas. É difícil imaginar o mar de Bazaruto revolto, mas por aqui toda a gente tem viva na memória o ciclone Flávio, que em fevereiro de 2007 varreu o arquipélago e levou uma vintena de vidas.


Espécies bem protegidas
Na Reserva pode encontrar espécies como tubarão-baleia, tartaruga marinha, manatim ou dugongo. Encontram o seu porto de abrigo graças aos corais de várias espécies no fundo do mar.


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Luís Azevedo, o moçambicano que vive em Bazaruto há mais de 35 anos.

A tarde avançava quente quando finalmente avistei o velho Alpano. A sua teoria para os naufrágios coincidia com a de André, o construtor naval. Só podia ser Adjonge a castigar os corações de pedra. A noite caiu num instante, sem Lua mas com um céu escandalosamente povoado de estrelas. Era a nossa última noite em Bazaruto. Devorámos uma lagosta no hotel e depois decidi ir dar uma volta pela praia. A noite estava limpa e temperada, convidava às deambulações. Não sei durante quanto tempo somei passos, pensava nas garoupas, na sereia e nas histórias de Alpano. Virei-me para trás, já não via as luzes do hotel. E, subitamente, começou a levantar-se uma tremenda ventania à minha volta, rodopio de areia e conchas e eu no meio. As nuvens avançavam na minha direcção. Apagaram-se as estrelas e deixei de ver algo que não fosse bruma, nevoeiro espesso e envolvente, que os locais chamam uchurutzua. Percebi tudo. Adjonge tinha vindo buscar-me.


Ir:
A TAP (flytap.com) voa para Maputo a partir de €1185. Da capital moçambicana pode voar para Vilanculo com as Linhas Aéreas de Moçambique (lam.co.mz) a partir de €62. O voo ou viagem de barco para o arquipélago é assegurado pelo hotel.

Dicas:
Bazaruto tem um clima tipicamente subtropical, com uma temperatura média de 31ºC durante a estação das chuvas e 27ºC na estação seca. Não vale a pena viajar para o arquipélago entre os meses de novembro e março, é a época de ciclones e furacões. A partir de abril as nuvens desaparecem do horizonte e as águas acalmam, sendo os meses de julho e agosto os melhores para observar a vida selvagem que povoa o fundo dos mares. A moeda moçambicana é o metical (€1 = 42 meticais), mas o euro, o dólar e o rand sul-africano são largamente aceites. Não há caixas multibanco na ilha. Como os únicos estabelecimentos comerciais que existem são os dois resorts, as refeições, as bebidas, as actividades de lazer e as compras são pagas no fim da estada. Os hotéis aceitam Visa e Mastercard. A oferta hoteleira da ilha assegura a organização de passeios a pé e de jipe. As viagens de barco são outra opção a levar em linha de conta. Estas atividades estão normalmente incluídas no preço de cada hotel.

Texto de Ricardo J. Rodrigues - Fotografias de Constantino Leite
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