«Bem-vindos à Lombardia», digo aos meus companheiros de viagem, na chegada ao aeroporto de Milão. Depois, acrescento: «Esqueçam a Itália, nos próximos dias. E esqueçam também a Lombardia — daqui a um par de horas chegamos por fim à Ligúria.» Dito assim, parece propaganda às forças políticas que defendem a desagregação da República Italiana e a criação de um novo país reduzido a meia dúzia de regiões do norte da península. Claro que não. Já explico melhor.
Mas, antes, um pequeno aparte sobre uma questão que costumam colocar-me em quase todas as entrevistas: «Gonçalo, qual o lugar que gostaste mais de visitar?»

E eu, com o meu melhor sorriso de impotência e imensidão, aviso que precisamos de dividir o mundo em duas metades: numa, colocamos Itália; e, na outra, tudo o resto. Em termos culturais, pelo menos, esta distinção é de tal maneira óbvia que chega a ser irrelevante a lista do Património da Humanidade da UNESCO aplicada à Itália. Tudo é Património da Humanidade, aqui, desde os conceitos mais nobres de Arte, Cidade e Paisagem; até ativos mais exportáveis como a pizza, o expresso, a máfia e a blasfémia.

«A Ligúria excedeu o conceito. Aqui, podemos bem dizê-lo, a realidade superou a ficção. A minha realidade, claro.» Gonçalo Cadilhe é apaixonado por esta região italiana e escolheu-a como casa durante dez anos.

Assim, temos duas respostas para duas metades do mundo. Da metade de Itália, a resposta é «Gostei mais de visitar a Ligúria». Gostei tanto, que acabei por ficar aqui a viver uma década.
Voltemos à minha provocação: «Esqueçam a Itália, bem-vindos à Ligúria.» A geografia explica-a melhor do que a história. Aqui, a geografia é uma cordilheira a pique sobre o mar. São os Apeninos, e separam o Norte da Itália do Mediterrâneo. Entre o mar e as montanhas, longe do resto da Itália, entregue ao Mediterrâneo, está a Ligúria.

Quase que podíamos dizer «entre o mar e as montanhas, não está a Ligúria», pois realmente não parece sobrar espaço para estar o que quer que seja. Nessa ausência de espaço, nessa separação inclemente de tudo o resto que é italiano, nessa luta contra as adversidades naturais por um lugar onde assentar os pés, surgiram uma identidade, uma cultura, um idioma, uma gastronomia regional das mais genuínas do mundo, aldeias perfeitas como Portofino ou Vernazza, cidades-modelo como Chiavari ou Génova, uma pequena nação que ao longo de mil anos influenciou os rumos da Europa.

Orlando Almeida/Global Imagens

Não é pouco, sobretudo se pensarmos em termos proporcionais.
A superfície da Ligúria é mais ou menos equivalente à do Algarve. Dessa pátria em vertical saíram os marinheiros que ensinaram os portugueses a navegar e os capitalistas que financiaram o Império Espanhol. Do porto de Génova levantaram âncora as várias Cruzadas que para sempre iriam definir as relações da Europa com o Médio Oriente; e a partir dos cambistas que trocavam dinheiro nas suas bancas na Piazza dei Banchi (Praça das Bancas), à saída desse porto, inventou-se o sistema bancário e encontrou-se o nome para o grupo de instituições que mexem com dinheiro — «a banca» e os «bancos», precisamente.

Mais recentemente, ao longo do século XIX, foi desse mesmo porto de Génova que partiram centenas de milhares de emigrantes em busca de tudo o que nunca poderiam encontrar no Velho Continente, ou seja, um Novo Mundo, essa América que um dos filhos de Génova, Cristóvão Colombo, tinha descoberto séculos antes. Em termos proporcionais, é muito. Tanta história em tão pouca geografia.

Tal era a quantidade de golfinhos nestas águas que o primeiro nome de Portofino foi Portus Delphinus.

O conceito «Viagens com os Autores» é revolucionário, pois vem baralhar as cartas de tudo o que se assume ser uma viagem organizada, jogando com a sua antítese. Assim, um modo de viajar que por definição é associado à serialidade e à réplica — o catálogo de um tour operator — acaba por oferecer sobre um destino uma perspetiva original, precisamente a perspetiva «de autor». E, por isso, uma viagem de grupo passa a ser uma experiência personalizada; uma proposta homologada num catálogo revela-se uma partilha irrepetível; e o relacionamento entre um guia e um cliente torna-se afinal um alinhamento de sensibilidades.

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A Ligúria excedeu o conceito. Aqui, podemos bem dizê-lo, a realidade superou a ficção. A minha realidade, claro. Nesta proposta, o que conta não é tanto o que eu escrevi sobre a Ligúria, mas sim o que eu vivi na Ligúria.

Portofino: a pequena vila de pescadores fundada pelos romanos tornou-se um destino turístico exclusivo.

As cidades onde entrei na idade adulta, os restaurantes e marinas onde trabalhei como moço e marujo, os amigos que fiz, as lições que aprendi, as colinas que galguei vezes sem conta pelo simples prazer do corpo cansado e da vista sobre a linha do horizonte.
Vivi durante a década de 1990 na Ligúria, com o mar Tirreno à distância de uma janela aberta, trabalhei no verão em Portofino, velejei no inverno no golfo do Tigullio, caminhei na Via dell’Amore enamorado do próprio caminho e sempre achei que pisava solo abençoado por uma luz e uma paisagem irrepetíveis. E hoje que viajei tanto e vi tanto, sei que na altura não me enganava: este é um dos lugares mais bonitos do mundo.

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O eterno conflito entre homem e território resolveu-se da melhor forma na Ligúria. Sei o que estou a dizer porque ando há mais de duas décadas a passear pelo mundo. E da meia dúzia de coisas que me chamam particularmente a atenção nesses passeios intercontinentais – música, religião, sentido de humor, gastronomia, por exemplo – aquela que me emociona mais é a relação dos habitantes com o pedaço de terra que habitam. A paisagem humanizada, a ação cultural no habitat. A marca da identidade, a herança.

Os socalcos plantados com oliveira e vinha, as aldeias ternamente conseguidas às falésias, as cores que melhor combinam as fachadas com aquele céu que nunca está cristalino e luminoso mas sim velado por uma sugestão de humidade, as calhetas que se escondem atrás dos escolhos como se a ameaça sarracena ainda pudesse regressar, a animação que as vielas dos centros históricos oferecem à cidade como se o futuro do urbanismo fosse uma descoberta do passado, estas são as marcas da identidade – a herança que fica para os filhos desta terra. A Ligúria é o testemunho que os estafetas da eternidade passam de geração em geração pelos séculos fora.

Génova, a capital da Ligúria, é a sexta maior cidade de Itália. Gonçalo Cadilhe é o anfitrião por estas paragens.

É uma lista extensa e imaculada: dezenas de lugares que compõem o imaginário universal do Mediterrâneo. Quando pensamos neste mar e nas suas imagens mais emblemáticas, talvez mesmo sem repararmos nisso, estamos com muita probabilidade a pensar num pedacinho de Ligúria.

Pensamos certamente na enseada natural de Portofino, com a sua curva orgânica de fachadas policromáticas que parece ter sido desenhada num moderno e artificial atelier de arquitetura mas que na realidade é tão antiga quanto a própria presença humana à beira-mar – ou pelo menos tão antiga quanto a geografia da Antiguidade, pois o historiador romano Plínio menciona já a localidade, relacionando a origem do nome com a presença regular de golfinhos ao largo. E daí o nome Portus Delphinus, que os séculos se encarregariam de abreviar.

Pensamos talvez no golfo dos Poetas, aconchegado entre Portovenere e Lerici, que enfeitiçou Byron e o círculo restrito de amigos que o acompanharam no Grand Tour italiano – um deles, o poeta Shelley, atordoado com tanta beleza, decidiu fixar-se com mulher e amantes nesta pequena aldeia. Aqui foi feliz até à morte – que aconteceu por naufrágio, neste mar de ondas improváveis e repentinas, um final digno da estética romântica que o grande poeta inglês tão bem soube personificar.

Do porto de Génova partiram expedições para o Médio Oriente que modificaram as regras do comércio internacional.

Pensamos cada vez mais nas cinco aldeias incrustadas na falésia das Cinque Terre, a mais recente «descoberta» entre as várias pérolas por descobrir da costa lígure, aldeias que saltaram subitamente da Idade Média onde tinham ficado petrificadas para o estrelato mundial do turismo com o reconhecimento da UNESCO como lugar fundamental do Património da Humanidade. E pensamos nessa fábula tornada conto de fábulas pelo autor que melhor as soube escrever, Hans Christian Andersen – precisamente, a Baía das Fábulas, que existe em Sestri Levante, a cidade onde o dinamarquês se sentiu enfeitiçado durante o seu passeio em Itália. Mas com uma pequena ironia urbana: em Sestri Levante, existe outra baía ainda mais bonita e «fabulosa»: a baía do Silêncio.

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Pensamos na marginal belle époque de Rapallo, a primeira estância da Ligúria a receber a nova moda oitocentista de passar férias junto ao mar e que daria origem às estâncias balneares, de uma forma mais concreta; e, num sentido mais lato, algumas décadas depois, ao próprio fenómeno do turismo de massa. Pensamos, por fim, na cidade que melhor representa um desígnio urbano dedicado ao Mediterrâneo, à navegação e ao comércio marítimo, essa eterna rival de Veneza, cuja rivalidade ainda está longe de se concluir ou sequer de se apaziguar: Génova.

A lista podia continuar, pois tem de facto dezenas de lugares, aldeias, promontórios, enseadas: Paraggi, Levanto, Boccadasse, San Fruttuoso, Camogli, Punta Mesco, etc. Reparo no entanto que estive a construir um elenco de topónimos que pertencem apenas à metade oriental da Ligúria, aquela que se estende desde Génova à Toscana. Não é por acaso, pois falo do que melhor conheço: a Riviera di Levante.

O Parque Nacional de Cinque Terre foi criado em 1999. Dois anos antes, a Unesco colocou a região na sua lista.

Mas onde fica a Riviera di Levante? Em termos geográficos é fácil de localizar: a Ligúria aparece no mapa como uma meia-lua, dividida em duas metades pela cidade de Génova. A orientação segue os pontos cardeais: a metade a ocidente de Génova chama-se a Riviera di Ponente, aquela onde o Sol se põe; a metade a oriente chama-se Riviera di Levante, aquela onde o Sol nasce. A delimitar este arco, do lado oeste, está a fronteira com a França; a leste, está a fronteira com a Toscana.

Se mencionar a fronteira com a França é um dado adquirido, talvez cause alguma estranheza hoje em dia considerar como outra fronteira óbvia da Ligúria a região da Toscana. Mas em termos do longo prazo nada disto é assim tão evidente. A Toscana era outra coisa, sempre foi. Um outro país, do lado de lá de uma fronteira que ficou estabelecida com a independência de Génova, desvinculada de qualquer outro poder temporal europeu a partir de 1096. Uma independência que se constituiu sob a forma de república, e que foi uma realidade até 1815. Ou seja, durante quase oito séculos, os mesmos que Portugal leva como nação, os lígures viveram num país independente. Mais corretamente, tiveram uma pátria.

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O que significa ter uma pátria? Significa falar uma língua própria, o genovese, que fora dos seus limites precisa de tradutor; significa olhar para uma capital, Génova, que serve como referência e alma de um povo; significa possuir uma gastronomia exclusiva baseada nas caraterísticas do território, com receitas irrepetíveis noutros territórios como o pesto alla genovese, com os abundantes ingredientes locais de manjericão, pinhões e azeite; como a focaccia, pão assado no forno com azeite; como os ravioli, cuja paternidade lígure é comprovada historicamente mas contestada por todas as outras cozinhas regionais italianas; a farinatta feita com a farinha de grão-de-bico; e ainda nomes vagamente familiares aos portugueses como o bacalhau, aqui servido num guisado de pinhões e azeitonas in umido, ou a tripa accomodata à moda de Génova.

«A Ligúria é o testemunho que os estafetas da eternidade passam de geração em geração pelos séculos fora»

Ter uma pátria significa também, entre tantos outros sinais vitais, possuir um sentido de humor e um anedotário baseados na caraterística mais proeminente de qualquer genovês: a sovinice financeira, ou seja, a avareza. E quem é o melhor contador de todas estas anedotas? O próprio genovês, que ao contá-las, no fundo, está apenas a avisar o resto do mundo que em Génova se sabe fazer bem as contas e regatear ainda melhor os preços.

No entanto, o caráter dos genoveses é mais complexo e denso do que uma simples anedota poderia explicar. Voltamos à geografia, que explica melhor. A escassez da terra, a dificuldade em prosperar e o sentido para o negócio apurado com o comércio marítimo desenvolveram na psique genovesa uma sobriedade e um recato que hoje são acarinhados e protegidos como o panda na China ou o cante no Alentejo. A sovinice é um bem nacional nessa república antiga e latente.

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Talvez esse pudor do genovês em demonstrar o património pessoal explique a pouca promoção e notoriedade turística da Riviera di Levante, pelo menos quando comparada com outras regiões e sítios e monumentos italianos. Talvez porque quem conhece e gosta e lá vive não divulga, guarda para si. É a única razão que encontro para explicar como é possível que as fachadas de Portofino, as cinco aldeias das Cinque Terre, o centro histórico de Génova ou a baía do Silêncio de Sestri Levante não tenham a mesma notoriedade que a ponte do Rialto, a galeria dos Uffizzi, a ilha de Capri ou a Praça Navona.

Assim, como quem faz uma vénia e como quem ri de uma anedota que afinal é um recado e como quem pede desculpa por revelar um segredo, contornei o pudor do lígure em expor a sua Ligúria e pus-me a estruturar um itinerário que durante uma meia dúzia de dias permitisse tocar pela rama o melhor que a Riviera di Levante tem para oferecer. Esse itinerário entrou no catálogo da agência Pinto Lopes Viagens com o título «O Mediterrâneo em vertical» e creio que é a melhor combinação de etapas e percursos possível dentro desse curto espaço de tempo.

A gastronomia genovesa não pode ser descurada. Azeite, manjericão ou pinhões são alguns dos ingredientes.

É com orgulho assumido que uso a expressão «tocar pela rama». O melhor agradecimento que posso receber de um cliente que participa neste desafio, ao fim desta meia dúzia de dias, não é «fiquei a conhecer, estou satisfeito, está visto». Pelo contrário, o que eu espero dos meus companheiros de viagem, quando chega o momento da despedida, é que me digam: «Foi pouco, não estou satisfeito, agora quero voltar várias vezes para ir conhecendo cada vez melhor.» Por falar em partilha irrepetível e alinhamento de sensibilidades do conceito «Viagens com os Autores», é exatamente isso que eu sinto, e já ando por aqui desde a década de 1990, há mais de vinte anos. Insatisfeito, aí está.

 

Texto de Gonçalo Cadilhe
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