Zapala a Bariloche

Um roteiro de mais de três mil quilómetros, em autocarro, entre a Patagónia e a Terra do Fogo, para chegar ao fim do mundo.

De Mendoza a Zapala são vinte horas de viagem. Em autocarro. Sai-se às quatro da tarde e chega-se às oito da manhã. Mas há sempre um ou outro atraso numa viagem de mais de 920 quilómetros por estrada nacional. Coisa pouca. Se a capital do vinho argentino tem o seu interesse, já a pequena Zapala nem por isso. É, acima de tudo, um bom local para fazer escala e partir para a Região dos Lagos, a antecâmara da Patagónia. Pequeno-almoço, casa de banho sem ser em movimento e o esticar de pernas antecedem mais 285 quilómetros – quatro horas – até San Martín de los Andes. Parece pior do que realmente é, os autocarros argentinos são surpreendentes. Além do café quente e da água a escaldar para o mate, há sanduíches, bolos e bancos reclináveis que permitem uma noite em «semicama» ao balanço das curvas, do alcatrão e das estradas de terra batida.

O esquema está bem organizado, as reservas prévias de lugar (via internet ou no balcão do terminal rodoviário) resultam e a segurança das bagagens raramente está em causa. À partida, o objetivo era claro: chegar a Ushuaia, à cidade mais a sul do planeta, em transportes públicos, atravessando a Patagónia argentina, cruzando o estreito de Magalhães e mergulhando na Terra do Fogo. Mas é grande este país, o oitavo maior do mundo em termos de área. São mais de quatro mil quilómetros de norte a sul, quase como ir de Lisboa a Moscovo. Só a Patagónia ocupa quase um quarto da área da Argentina – 670 mil quilómetros quadrados para um total de 2,7 milhões. Sente-se a vastidão a cada minuto do caminho. Basta olhar pela janela e ver ninguém, só a vastidão e a cordilheira dos Andes sempre a acompanhar-nos pela direita. San Martín de los Andes ainda não é Patagónia, mas é um bom começo.

Chegar a San Martín de Los Andes não foi fácil, mas o fim do dia à beira do lago que banha a pequena cidade valeu por cada quilómetro percorrido.

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Situada junto ao lago Lácar, é o que a demasiado turística Bariloche foi há vinte ou trinta anos. A geometria das suas ruas, a envolvente natural e a oferta variada tornaram-na um destino procurado ao longo de todo o ano. Os parques nacionais Lanín e Nahuel Huapi servem de chamariz para desportos de inverno, para a observação de fauna e flora na primavera e mergulhos refrescantes no verão. Não é difícil encontrar água para o fazer, não partisse daqui a Estrada dos Sete Lagos. Ao longo de 110 quilómetros (um dia em automóvel ou quatro em bicicleta), o segredo é deixarmo- -nos levar, seguir a estrada e abrir a boca de espanto a cada nova curva: montanhas cobertas de neve, imensos lagos tranquilos, vales deslumbrantes, cascatas, floresta, há de tudo.

Cinco quilómetros depois de San Martín, eis a praia de Catritre e o seu parque de merendas. Vão surgindo pequenas casas de madeira na paisagem e chega-se ao miradouro de Pil Pil, com vista do lago e para os picos Vizcacha, Sabana e Colorado. Um pouco mais à frente, a saída para o Centro Invernal Chapelco, a meca do esqui da região. Arroyo Partido é o miradouro que se segue. Lá em baixo, as águas do degelo tomam dois caminhos: para a esquerda, em direção ao rio Hermoso e ao oceano Atlântico; para a direita, o curso de água leva o nome Pil Pil, junta-se ao lago Lácar e desagua no oceano Pacífico. Continuamos sem pressas até uma encruzilhada. Há que escolher entre seguir para La Angostura ou Confluencia e Traful.

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Optamos pela segunda, através de uma estrada terciária de terra batida. Da floresta e dos vales que poderiam ser na Suíça, passamos para uma paisagem digna dos velhos westerns norte-americanos. São sessenta quilómetros de descobertas, de sol forte e de solidão. Traful é também o nome do lago que delimita esta aldeia de pouco mais de oitocentas pessoas. Seguem-se os lagos Escondido e Correntoso, sempre no Parque Nacional Nahuel Huapi. O piso continua a ser em gravilha, o famoso ripio patagónico, como é conhecido por estas paragens. Baías e pequenas praias – quase todas de acesso privativo – são opções de paragem até se voltar a seguir em direção a La Angostura, já por asfalto.

Chegar a San Martín de Los Andes não foi fácil, mas o fim do dia à beira do lago que banha a pequena cidade valeu por cada quilómetro percorrido.

O lago que dá nome ao parque nacional é o senhor que se segue, antes da paragem na localidade para um chocolate quente, compras e regressar antes do pôr do Sol a San Martín de los Andes. Alberga mais de trinta mil pessoas e este número triplica nas épocas altas de verão e inverno. No casario, o material predominante é a madeira e há comércio para todos os gostos. Bares e restaurantes também não faltam, com especialidades desta região de Neuquén e da cada vez mais próxima Patagónia. Três dias após a chegada, embarcamos para curta viagem (260 quilómetros, mais ou menos quatro horas) até à famosa Bariloche, uma das estâncias de inverno mais famosas da América do Sul. O português é um idioma em claro crescimento por aqui. A grande fatia do turismo é brasileira, como depressa se depreende pelas vozes que saem das lojas e pelos menus dos restaurantes.

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No período após a Segunda Guerra Mundial, San Carlos de Bariloche – o antigo nome da cidade – foi um dos poisos escolhidos pelos simpatizantes de Adolf Hitler para terminarem os seus dias em paz. Não significa isto que os descendentes de alemães que vivem hoje na região tenham esse peso histórico às costas, claro. As tradições germânicas de alimentação, organização e prosperidade foram, no entanto, asseguradas. Além do esqui, a cidade de mais de cem mil habitantes tem dois motivos de interesse suplementares: chocolates e gelados. Não os há como aqui, garantem-nos em cada loja, dizem-no os guias e os argentinos de outros pontos do país. E são excelentes, está confirmado. Não havendo neve, há que encontrar a vingança nos doces. E a tranquilidade na Catedral de Bariloche, mesmo à beira do lago Nahuel Huapi. Próxima paragem: El Calafate, no coração da Patagónia.

A viagem continua, rumo ao fim do mundo. Acompanhe em:

Parte 2: Bariloche a El Calafate

 

Texto e Fotografia de Ricardo Santos
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