Bariloche a El Calafate

Um roteiro de mais de três mil quilómetros, em autocarro, entre a Patagónia e a Terra do Fogo, para chegar ao fim do mundo.

Parte 1: Zapala a Bariloche

Pelo caminho mais direto, seguindo a famosa Ruta 40, que atravessa a Patagónia de norte a sul, seriam 1400 quilómetros de distância até El Calafate. Mas não é isso que acontece quando se opta por transportes públicos. De Bariloche, o autocarro atravessou o país de oeste para leste até Comodoro Rivadavia, à beira do oceano Atlântico, para depois seguir em direção ao destino final. Foram mais quatrocentos quilómetros do que seria esperado, para um total de 27 horas de autocarro. Houve tempo para tudo. Filmes pirateados dobrados e/ou legendados em castelhano foram mais de seis.

Sanduíches e copos de café, uma igual meia dúzia. Inspeções policiais ao autocarro, duas, ambas rápidas e com um civismo exemplar. Paragens para atestar o depósito, talvez quatro. Horas de sono dormidas, entre o cochilar e o apagão profundo, cerca de oito, o ideal para um ser humano adulto. Queixas, nenhumas. É que quando alguma crítica se preparava para toldar o raciocínio, bastava abrir as cortinas da janela do confortável autocarro de dois pisos e olhar para fora. E pensar que se estava a atravessar um dos territórios mais impressionantes do planeta.

À semelhança de Alcobaça – que não se passa sem lá voltar –, El Calafate garante um bilhete de regresso aos seus visitantes. Para isso basta, diz a lenda, que se comam as bagas silvestres com o nome desta cidade de 22 mil habitantes. Não foi imediatamente por aí que começámos quando tirámos as mochilas do autocarro, mas quase. Um tradicional «submarino» foi o primeiro pedido à mesa do café – copo de leite quente onde é inserida uma barra de chocolate. Não foi polémica a contrapartida financeira, mas o suficiente para repor o nível de açúcar no sangue, procurar poiso para as noites seguintes e traçar o plano para conhecer a região.

Em El Calafate, há boa oferta noturna, tempo para compras e para a descontração. Sem esquecer a memória de Evita no pequeno museu local.

À semelhança do que se tinha passado em San Martín de los Andes, a opção foi alugar um automóvel por um dia para visitar os principais pontos de interesse, sendo senhores do nosso próprio destino e fugindo a excursões organizadas. E foi assim que nos pusemos a caminho de Perito Moreno, o mais famoso glaciar do mundo, em pleno Parque Nacional Los Glaciares. Oitenta quilómetros de emoções fortes separam a cidade do gigantesco glaciar que atrai milhões de visitantes por ano a este recanto inóspito da Argentina.

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Na Estancia Rio Mitre, ser dadas de melhor forma. as boas-vindas não poderiam

Quinze quilómetros de extensão, cinco de largura, sessenta metros de altura e o crepitar constante do gelo são mais que suficientes para deixar em silêncio quem aqui chega. Não é comparável com mais nada, é o Perito Moreno e ponto final. Os visitantes percorrem as passadeiras elevadas para o ver, filmar e fotografar de diferentes ângulos, há gritos de exclamação de cada vez que uma parte do gelo se desprende e cai na água com estrondo. Até pode parecer um lugar-comum, mas há magia por ali. E há o misticismo da Patagónia, o mesmo dos costumes antigos de não se dever fazer marcha-atrás no caminho ou da existência de seres enigmáticos como duendes ou bruxas.

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O Zaina Bar, em El Calafate, um antigo armazém agrícola, quer homenagear a vida na imensidão das estâncias do Sul da Argentina.

Percorrendo o ripio a velocidade controlada, há cavalos que surgem do nada, há elevações no terreno que desaparecem atrás das nuvens e há estancias – fazendas de dimensões impensáveis – onde somos recebidos de braços abertos, mesmo se só lá paramos para pedir informações. Foi o que aconteceu na Estancia Rio Mitre. «Tu sueño es posible de concretarse» é o slogan deste pequeno parador a meio caminho entre El Calafate e o parque dos glaciares. Quando lá chegámos, as ovelhas e os carneiros foram os primeiros a receber-nos. Depois, vieram os cavalos. E a seguir os humanos, entretidos que estavam à beira do assador a sacrificar um cordeiro, a cantar canções de amor e a beber licor de calafate.

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Havia também bolo de chocolate, café quente, uma neblina misteriosa, um grupo de turistas franceses e anfitriões argentinos com vontade de conversar. «Esperem mais um pouco, que o tempo poderá abrir. Aí sim, valerá a pena ver o Perito Moreno. Mas cuidado com a estrada, é perigosa.» Esperámos, tempo era tudo o que tínhamos naquele momento. E valeu a pena. Ao fim do dia, no regresso a El Calafate, foi tempo de celebração. Primeiro no Glacio Bar, um bar de gelo do glaciar – vinte minutos no subsolo com dez graus abaixo de zero – e depois com uma parrillada argentina como mandam as regras. O sono chegou rápido, sem tempo para pensar na próxima etapa, mas com o objetivo Ushuaia cada vez mais perto.

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Seja na estância do Rio Mitre, junto ao Perito Moreno, ou no Glaciarium, a Patagónia tem um encanto difícil de explicar em palavras.

A viagem continua, rumo ao fim do mundo. Acompanhe em
www.voltaaomundo.pt

Texto e Fotografias de Ricardo Santos
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