El Calafate a Ushuaia

Um roteiro de mais de três mil quilómetros, em autocarro, entre a Patagónia e a Terra do Fogo, para chegar ao fim do mundo.

Parte 1: Zapala a Bariloche
Parte 2: Bariloche a El Calafate

Para chegar ao fim do mundo, há que sair da Argentina, entrar no Chile e regressar à Argentina. Parece complicado, mas não é. A Patagónia está dividida entre estes países, mas a Terra do Fogo também. E é aí que se localiza a cidade mais austral do planeta. Mais um autocarro, mais quatrocentos e muitos quilómetros até ao estreito que leva o nome de um dos mais importantes – e controversos – navegadores portugueses: Magalhães. Ou Magallanes. Ou Magellan. Há muitos lugares no mundo onde o vento, quando sopra, impressiona, mas poucos serão como o estreito de Magalhães.

O ferryboat que transporta o autocarro tem uma pequena divisão para albergar os passageiros na viagem de meia hora entre as duas margens, mas, no princípio, é cá fora que se quer estar. O mar é bravo, a ventania constante, os olhos estão constantemente a lacrimejar, o equilíbrio é difícil. Não há como não pensar no que terá sofrido o velho Fernão, em 1520, quando na sua casca de noz navegou por estas águas. A coragem portuguesa, hoje quase adormecida, afinal parece que vem de longe.

Quando o ferry atraca – com dificuldade – e o autocarro volta à estrada, a nossa etapa diária vai a meio. Faltam mais quatrocentos quilómetros. A chilena cidade de Porvenir é premonitória. O futuro está mesmo ali, depois de Rio Grande, novamente na Argentina e bem perto do lago Fagnano. Passou mais um dia, é fim de tarde e os picos nevados são mais frequentes. As nuvens ganham formas gigantescas, ora são brancas ora cinzentas, movem-se rápido, há arco-íris e relâmpagos ao fundo. A vegetação é cada vez mais rasa, as poucas árvores estão  inclinadas pelo vento dos muitos anos e as curvas, subidas e descidas na montanha acentuam-se. E, finalmente, a indicação de menos de dez quilómetros até Ushuaia.

Para chegar ao fim do mundo, é preciso atravessar as tormentas do Estreito de Magalhães. E só assim se tem a noção de estar muito longe de casa.

O cansaço fica para trás, as conversas tornam-se menos frequentes e a cara vai-se colando cada vez mais ao vidro. Mas não é uma chegada de sonho, como nos livros ou nos filmes. É um murro no estômago quando entramos pela zona portuária de Ushuaia e só se avistam contentores, postes de iluminação, cabos elétricos, estradas esburacadas e lamacentas, casas prefabricadas e estaleiros a céu aberto. Poderíamos ter entrado em depressão, mas não. Há ali qualquer coisa que é especial, como descobrimos nos dias seguintes, nesta cidade portuária onde os Andes se juntam aos dois oceanos.

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Imperdíveis são a visita ao Museu do Presídio e o passeio pelo canal Beagle e suas ilhas encantadas. No fim do dia, a cabana estará à espera para o merecido descanso.

Uma noite bem dormida, em cama assente no solo, é um bálsamo para a alma. E um dia de sol sem nuvens, ainda mais. É tempo de andar a pé, percorrer as ruas principais da cidade de pouco mais de cinquenta mil habitantes das mais diversas nacionalidades. Há lojas com roupas quentes à venda, recordações do Sul, bares cheios de gente, monumentos que glorificam as Malvinas argentinas e a memória de um presídio que deixou marcas. Nos primeiros anos do século xx, ser condenado e trazido para Ushuaia era quase pena de morte. Presos políticos, anarquistas bombistas e assassinos em série foram alguns dos muitos que por aqui passaram.

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Diz a lenda urbana que até Carlos Gardel, o mais famoso dos intérpretes de tango, também teve direito à sua temporada de reclusão no degredo do Sul. Há uma cela no presídio que o homenageia, mas há dezenas de outras que lembram a dureza que deve ter sido viver aprisionado nesta última fronteira. Do inferno gelado, rapidamente voltamos ao sol. É que, do porto turístico de Ushuaia, partem cruzeiros em direção ao canal Beagle, às muitas ilhotas e ao Farol do Fim do Mundo. São pouco mais de três horas de viagem, com direito a caminhadas pela natureza e a uma paisagem tão difícil de descrever como de ficar indiferente. O continente gelado do Sul está a pouco mais de mil quilómetros de distância e os leões-marinhos e os pinguins comprovam-no. Mar, montanhas, céu, tudo parece um gigantesco cenário ou material da terra dos sonhos.

Mar, montanhas, céu, tudo parece da terra dos sonhos. A luz do Farol um gigantesco cenário ou material do Fim do Mundo comprova-o.

As últimas semanas passam a correr pela  cabeça. Há memórias de caminhadas, de mochilas pesadas, de hotéis e restaurantes,de israelitas, holandeses, norte-americanos e portugueses que conhecemos pelo caminho. Há imagens rápidas de corredores e terminais de autocarro, fins de dia e amanheceres em movimento, piadas, histórias, refeições inesquecíveis e caminhos que pareciam ir dar a lado nenhum e nos trouxeram onde queríamos. Debruçados no varandim do catamaran, com Ushuaia ali ao fundo, só temos uma certeza – juntos, chegámos ao fim do mundo.

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Guia para não se perder na Patagónia

Clima
As mudanças de clima ao longo do dia são comuns, podendo nevar e, dez minutos depois, já o sol estar a brilhar.
A temperatura na região da Patagónia e Terra do Fogo pode oscilar entre -20º C no inverno e 15º C no verão, daí esta ser a região do mundo com mais glaciares, com exceção dos polos. Gorro, luvas, calçado adequado e várias camadas de roupa nunca são de mais.

Moeda
Um euro equivale a 6,8 pesos argentinos, mas o câmbio não é assim tão simples. Devido às leis antifuga de capitais existentes no país, o dólar e o euro são bastante procurados pelos cidadãos argentinos. Para conseguir um valor a rondar os sete pesos por euro, convém fazer a troca de divisas no Banco de La Nación Argentina, já que, em muitos outros, o câmbio poderá rondar os cinco pesos por euro. Outra opção é levantar diretamente nas caixas automáticas, mas não se esqueça de consultar previamente as taxas cobradas pela sua instituição bancária.

Como se deslocar
Num país onde as distâncias entre cidades são tão significativas, voar é a melhor opção. E também a mais dispendiosa. O caminho-de-ferro não é opção, já que as ligações na Argentina são praticamente inexistentes e demoradas. A rede viária é de qualidade e o autocarro é o meio mais popular e prático de deslocação. Para os percursos efetuados neste roteiro de San Martín de los Andes a Ushuaia, a opção passou por companhias regionais que ofereciam a possibilidade de viajar em autocarros de dois andares com as opções de cama e semicama e refeições leves incluídas, para além de café, chá e casa de banho e dois motoristas disponíveis.

Companhias como a Andesmar (andesmar.com), El Rapido Internacional (elrapidoint.com), Tramat (tramatweb.com), Albus (albus.com.ar) ou Taqsa (taqsa.com.ar) foram as utilizadas nesta viagem. Os bilhetes podem ser comprados diretamente nos balcões destas empresas, situados nos terminais rodoviários ou via internet, através do site plataforma10.com. Em qualquer dos casos, é sempre necessária a apresentação de passaporte e o pagamento pode ser efetuado em dinheiro ou com cartão de débito ou crédito. Em relação ao preço das viagens, por exemplo, a mais dispendiosa deste roteiro foi entre Bariloche e El Calafate (1800 quilómetros de distância), em autocarro-cama, com um custo por pessoa de 902 pesos, o equivalente a 132 euros.

Outra opção utilizada, em San Martín de los Andes e El Calafate, foi a de alugar um automóvel para conhecer as redondezas. Além de o preço praticado ser ao dia, há também um limite de quilómetros diário fixado. Cada mil metros a mais é cobrado a um peso. A melhor solução é a de negociar estas condições diretamente com os funcionários da rent-a-car no destino pretendido. Quanto a valores, rondam os 300 pesos por dia – pouco menos de 45 euros – sem combustível incluído, para o segmento mais baixo da frota. A gasolina sem chumbo estava, no final de 2012, a cerca de 7,3 pesos o litro, aproximadamente um euro..

Onde dormir
Além das noites passadas a bordo dos confortáveis autocarros argentinos, há uma oferta variada de alojamento nas cidades visitadas. Em San Martín de los Andes, a opção foi o Hostel El Oso Andaluz (Elordi, 569; Tel.: 02972427664; a partir de 10 euros por noite em dormitório e 30 em quarto duplo; elosoandaluz.com.ar), bem no centro da cidade. Ambiente descontraído, higiene irrepreensível e boa oferta de internet (uma constante ao longo de toda a viagem) são razões de peso para aqui ficar. Em Bariloche, e já que a experiência anterior tinha sido positiva, a opção foi o Hostel 41 Below (Juramento, 94; Tel.: 02944436433; a partir de 10 euros em dormitório e 40 euros por quarto duplo; hostel41below.com). Perto das artérias principais, ambiente festivo e vista agradável para o lago e as montanhas. Já em El Calafate, a Hospedaje Jorgito (Moyano, 943; Tel.: 02902491323; a partir de 12 euros por pessoa ou 25 por quarto duplo) falou mais alto. É uma casa particular, com as típicas rendas sobre a mesa, decoração kitsch e a sensação de se estar de férias em casa da avó ou de uma tia afastada, mas vale pela experiência. E em Ushuaia, nada como alugar uma cabana ligeiramente afastada do centro da cidade, com vista sobre a baía, a Mi Cabana (Calle del Bosque com Pista de Esqui, Bairro Ecologico; Tel.: 02901431863; cabana a partir de 30 euros por noite). Roberto e Mabel são os muito simpáticos proprietários deste local e tudo fazem para que os visitantes se sintam em casa. Cada cabana possui quarto, cozinha, casa de banho, televisão, internet, aquecimento e muita luz. O pequeno-almoço também está incluído.

A não perder

Para percorrer esta região, é impossível fugir à Ruta 40, a estrada mais longa da Argentina. Além de cruzar toda a Patagónia, atravessa todo o país, desde a fronteira norte com a Bolívia até Rio Gallegos, antes do estreito de Magalhães. E vale a pena percorrê-la. Em San Martín de los Andes, o destaque é a natureza. Além da Estrada dos Sete Lagos, destaque para a frente de lago, de onde partem embarcações que realizam curtos cruzeiros. No inverno, o Cerro Chapelco (skienchapelco.com.ar) é a maior atração da região. Poderá alugar material para esquiar a partir de 20 euros por dia. Em Bariloche, a Catedral, a zona comercial – chocolates e gelados em primeiro plano – e a variada oferta noturna. É uma cidade mais divertida de noite do que durante o dia, exceto para os amantes do esqui e das caminhadas. No inverno, não há como fugir à estância de neve Cerro Catedral (catedralaltapatagonia.com) e às suas pistas com vistas deslumbrantes. Passes diários a partir de 30 euros. Na zona de El Calafate, não faltam opções. A curta distância da cidade está o Glaciarium (glaciarium.com), um museu dedicado ao gelo, onde se encontra o Glacio Bar (seis euros a entrada). E a oitenta quilómetros localiza-se o Perito Moreno, em pleno Parque Nacional Los Glaciares (losglaciares.com). A entrada na reserva natural fica por cem pesos por adulto – cerca de 15 euros – e é muito pouco para o espetáculo a que se assiste. Quanto a Ushuaia, há mais um mundo de possibilidades, a começar pelo Museu Marítimo e Museu do Presídio (Entrada: 10 euros; museomaritimo.com.ar), onde se localiza a antiga prisão de Ushuaia. Outro ponto de interesse é o Museu do Fim do Mundo (Entrada: 5 euros; tierradelfuego.org.ar) e a sua coleção de história natural da região. Navegar no canal Beagle é uma das atividades que não vai poder perder. Há diversas companhias a realizar cruzeiros todos os dias, às 09h00 e às 14h00, a partir de 25 euros por pessoa. O Parque Nacional Tierra del Fuego é, para os amantes do trekking, um paraíso. Aproveite-o ao máximo.

 

Texto e Fotografias de Ricardo Santos
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