Esta viagem começou no Peru – depois de passar por um dos mais emblemáticos lugares do nosso planeta: Machu Picchu. Só então se deu a «passagem» para uma outra dimensão, que não parece ser a «nossa», com paisagens e contrastes surpreendentes, cenários e proporções que vão para lá da nossa imaginação, e paleta de cores e luz, com outro espetro, que não são habituais ao nosso olhar. O nosso subconsciente faz-nos pensar em Marte.

Mas antes de chegar a estas maravilhas do Altiplano boliviano, passei a fronteira entre o Peru e a Bolívia, junto às margens do famoso lago Titicaca, lago mítico e sagrado da cultura inca. A primeira paragem foi numa cidade que tem um nome curioso e familiar – estou a falar de Copacabana, a principal cidade em torno do lago e cujo nome, que todos associamos ao bairro nobre do Rio de Janeiro, tem por origem uma imagem de Nossa Senhora de Copacabana levada por comerciantes espanhóis para o Rio. Na cidade boliviana, e não no bairro carioca, uma das visitas mais importantes é precisamente à Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira nacional e lugar de peregrinação intensa. São inúmeros os fiéis que fazem oferendas e procuram a bênção de padres, que deambulam à volta do recinto para benzer os seus pertences (a maioria fá-lo junto aos próprios carros, adornados de flores para o efeito).

Voltando as costas a Copacabana, os olhos prendem-se no sagrado lago. Titicaca está situado a 3821 metros de altitude, sendo este o lago comercialmente navegável mais alto do mundo – reza uma lenda andina que nestas águas nasceu a civilização inca, onde o deus Sol ordenou aos seus filhos que procurassem o sítio ideal para o seu povo; eles acharam o que hoje se chama Isla del Sol. Navegar por estas águas, depois de ouvir as suas lendas, coloca-nos entre o sonho e a aventura. Uma vez chegados à Ilha do Sol, o moderno catamarã dá lugar a uma das embarcações típicas, as Totoras (o seu nome vem das plantas, muito abundantes no lago, usadas na sua confeção e também das famosas ilhas flutuantes, as Urus, que se encontram no lado peruano).

Uma vez em terra firme, na ilha, há que subir até ao ponto mais elevado. A toda a volta é possível admirar a enorme extensão do lago, as montanhas e vulcões andinos, cheios de neve; não muito longe, avista-se igualmente a Ilha da Lua, onde se confinavam as mulheres que seriam escolhidas como concubinas do imperador inca. Composta por muitos socalcos, aos quais se chamam Terrazas Pachamama (em língua nativa, «terraços da mãe terra», deusa da produtividade), a Ilha do Sol é um celeiro de inúmeras ervas medicinais – e plantas como a quinoa, que há pouco tempo entrou na Europa e, pelo seu grande valor nutritivo, passou a ser apelidada de superalimento. Nesta ilha existe ainda um complexo cultural chamado Inti Wata que passa em revista a sua história, contando para o efeito com diversos achados arqueológicos importantes.

Depois de pernoitar no lago Titicaca, a bordo do catamarã, rumei a La Paz, cidade muito peculiar. Quando a vemos pela primeira vez, de um dos seus miradouros, parece uma gigantesca favela de tom avermelhado, pois quase todos os seus edifícios e casas de tijolo estão por acabar (o facto não passa tanto pela pobreza e sim por um estratagema popular: segundo consta, quem não finalizar a obra não paga imposto sobre o imóvel!).

Descendo a colina em direção ao centro, reparo que os transportes públicos são também eles peculiares, ostentanto cores e decorações diferentes. Na capital existem muitas igrejas e mercados, mas o mais famoso, e de visita obrigatória, é o Mercado das Bruxas – as suas lojas são desafios à imaginação, pois encontram-se repletas de prateleiras recheadas com produtos à prova de todos os males e maleitas. O comércio é muito direto e, sobretudo durante a noite, também muito ativo. A alguns quilómetros do centro existe um lugar conhecido por Valle de la Luna, onde a erosão criou um cenário parecido com às formações existentes na Lua. É um passeio bastante interessante.

La Paz tem os seus atrativos, mas é a partir dela que se faz o tal caminho para a outra «dimensão». A melhor forma de fazer a viagem rumo ao Sul passa por alugar um jipe, mas há também em La Paz inúmeras agências que propõem diferentes tipos de roteiros – se for esta a sua opção, aconselho que escolha a rota que acaba em San Pedro de Atacama, no Chile, passando por Oruro (cidade mineira conhecida pelo seu Carnaval) e Uyuni (porta de entrada no Salar; na região existem várias unidades hoteleiras, mas as mais procuradas são os hotéis de sal, onde tudo, das paredes ao chão e das mesas ou às camas, é feito de blocos de sal).

Uyuni é a porta de entrada para o Salar, a maior plataforma salgada do mundo. A imensidão branca torna quase impossível distinguir onde acaba a terra e começa o céu, mas é ao pôr do Sol que a sua luz tão particular, pela altitude, se torna feérica.

Em Uyuni o pôr do Sol é fabuloso, a luz é diferente – tal deve-se à altitude a que nos encontramos e ao reflexo do sal. Trata-se do maior Salar do mundo e a sua enorme mancha branca é visível do espaço a olho nu (estamos a falar de uma área de cerca de 12 mil quilómetros quadrados, estando ali concentradas cinquenta por cento das reservas de sal do planeta, fora importantes reservas de lítio, potássio e magnésio, que, por seu turno, são responsáveis pelas cores e pelos tons que vemos nos lagos e montanhas).

De dezembro a março ocorre a época das chuvas e no plateau do Salar forma-se então uma fina camada de água com cerca de trinta centímetros. Como o terreno é totalmente plano isso faz que nessa época tenhamos a ilusão de estar num gigante espelho, tornando quase impossível a navegação à vista – só os guias mais experientes se arriscam a entrar no Salar neste período. Pelo contrário, o inverno é a época seca, mas as temperaturas durante a noite são negativas e podem chegar facilmente às duas casas decimais.

Ilusão ótica
Atração incontornável da Bolívia, o Salar de Uyuni possui inúmeras opções de alojamento, mas as mais procuradas e condizentes com o espírito do lugar são os hotéis feitos de blocos de sal.

Durante a longa travessia do Salar, seja em que altura for, passa-se por algumas pequenas ilhas neste mar de sal; a maior é Incahuasi, popularmente conhecida por ilha do Pescado, que mais não é do que uma pequena elevação castanha, suficiente, porém, para fazer um forte contraste no manto branco.

Na ilha existem alguns animais de pequeno porte, mas o que mais sobressai na paisagem são os catos, que chegam a atingir 12 metros e possuem, em alguns casos, mais de mil anos. Há catos de todas as formas e feitios que se assemelham a fisgas, homens deitados, mãos e muitas outras formas curiosas. No topo da ilha, após uma breve caminhada, pode admirar-se a toda a volta uma vastidão branca. Por momentos, é como se pairássemos no céu.

De volta ao jipe, sempre em direção ao Sul, o Salar fica para trás e começamos a viajar pelas altas planícies – em alguns trechos podem ultrapassar 4500 metros de altitude, e até os jipes têm dificuldade em andar devido à escassez de oxigénio. Esta região está repleta de lagoas e montanhas de todas cores, mas o mais certo é que as elevações mais altas sejam vulcões. A primeira das muitas lagoas por onde passaremos é Hedionda (o nome deixa adivinhar o que nos espera: dela emana um cheiro desagradável devido à grande concentração de gás sulfídrico).

Há vida animal, mas não muita, pois a altitude, a temperatura e a falta de pluviosidade acabam por ditar as suas leis e, no fundo, este tipo de forma de vida acaba por ser escassa (e as espécies que resistem são raras, como o coelho-vizcacha, a raposa-dos-andes e os famosos guanacos). São as aves que predominam na paisagem do Altiplano; os flamingos, por exemplo, salpicam de cor as suas inúmeras lagoas (existem aqui três espécies: os flamingos-de-james, os andinos e os flamingos-chilenos) e a razão da sua abundância por estas paragens, entre a terra e o céu, explica-se pelo facto de as lagoas os sustentarem com vários tipos de plâncton e pequenos crustáceos. Chegam a ser milhares e emprestam à beleza inóspita da paisagem cor e movimento.

O deserto de Siloli funciona como um verdadeiro ponto de encontro nesta viagem pelo Altiplano boliviano. O check in faz-se invariavelmente ao pôr do Sol e, por mais rodados que sejam os viajantes, ninguém consegue ficar indiferente à sua força telúrica.

À chegada ao deserto de Siloli depressa se constata que os hotéis e abrigos aqui existentes são muito simples. O check in ocorre sempre perto do pôr do Sol, funcionando como ponto de encontro para viajantes. Todos, mesmo os que já palmilharam boa parte do planeta (a que chamo colecionadores de carimbos no passaporte), são unânimes: este é um sítio único no mundo. Este deserto é um dos mais áridos de que há conhecimento, com várias formações rochosas fora do vulgar por terem sido esculpidas pelo vento durante milhões de anos (uma delas, a mais visitada, chama-se Árvore de Pedra).

Em matéria de lagoas, a minha preferida é a Laguna Colorada, totalmente vermelha e com uma extensão de sessenta quilómetros. Enquadrada por montanhas e vulcões, o cenário é perfeito, a que se somam milhares de flamingos com a mesma cor, que deslizam nas suas águas (a peculiar coloração das águas deve-se a sedimentos e a algas que produzem caroteno para se protegerm da radiação ultravioleta). Em contraste com esta cor vermelha, existem várias ilhas totalmente brancas que contêm depósitos de borax.

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Conhecido pelas suas incríveis formações rochosas, o deserto de Siloli ostenta maravilhas, talhadas pelo vento. Em baixo, não menos espetacular, a paisagem arenosa do deserto Dalí.

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A caminho de um banho quente, a céu aberto, nas Termas de Polques (situadas na Laguna Salada), descobri o que poderá ser entendido como o seu «esquentador». Sol de Mañana, envolta em fumaça, está repleta de géiseres, o que demonstra a imensa atividade vulcânica que ainda existe na zona e que, não tão raro como isso, origina alguns tremores de terra. A 4850 metros de altitude, o simples ato de caminhar torna-se cansativo; alguns quilómetros mais à frente, o guia pronuncia um nome conhecido mas que o nosso imaginário não associa aqui:

Dalí. O nome batiza esta zona, entre a Laguna Salada e a Laguna Verde, e explica-se por a paisagem ser de alguma forma parecida com os seus quadros. É surreal a cor das montanhas (douradas de tanto minério) por oposição ao azul puro do céu pintalgado de nuvens brancas que, puxadas pelos fortes ventos, ajudam a criar telas vivas. Cada um, na sua perceção, trata de as interpretar e de as guardar na memória.

No mar de sal que é a atravessia da região de Uyuni existem várias ilhas. A maior, Incahuasi, que não passa de uma pequena elevação na paisagem, popularmente conhecida por ilha do Pescado, distingue-se pelos tons de terra no meio de tanto branco.

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Recuperada a lucidez, antes da fronteira com o Chile, espera-nos uma lagoa bastante especial, a Laguna Verde. A água de um verde-esmeralda brilhante lembra-me uma praia idílica de Bora Bora, mas a natureza ensina-nos que, muitas vezes, cores muito singulares podem ser sinónimo de perigo. É este o caso. Esta lagoa tem na sua composição altos teores de arsénico, magnésio e chumbo. Olhando para o alto, outra atracão da região: o vulcão Licancabur, que, com os seus 5916 metros de altura, é um dos maiores da Altiplano. Pode ser escalado com ajuda de guias especializados e marca uma divisória entre a Bolívia e o Chile. E é também um ponto de partida para outras viagens. Que hão de vir.

Dicas de viagem

Clima
O clima varia bastante com a altitude. O inverno, de abril a outubro, é a estação mais fria, seca e confortável de viajar, enquanto no verão, de novembro a março, o clima é mais quente, chuvoso e por isso torna mais difícil a circulação em algumas áreas.
Mais informações em lonelyplanet.com/bolivia/weather

A não esquecer
Devido às elevadas altitudes da Bolívia, a estada pressupõe sempre uma aclimatação do corpo, pois o ar é mais rarefeito e existe muito pouca humidade — isto significa fazer poucos esforços; pelo menos nos três primeiros dias. Óculos e protetor solar são essenciais, pois na visita ao Salar as radiações ultravioletas são muito elevadas.

Como se deslocar 
Para visitar a zona dos desertos recomenda-se um veículo 4×4, disponibilizado por varias agências de viagens em La Paz e noutras cidades.

Guias de viagem
Bolivia Travel Guide,
Lonely Planet
The Rough Guide to Bolivia, Rough Guides

bolivia.travel

Texto e Fotografias de Carlos Fernandes
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