Há o mar e o há campo, e ambos oferecem produtos de qualidade imbatível. Depois há toda uma tradição que resiste nas tabernas. O chef André Magalhães diz que os Açores guardam a próxima grande tendência da gastronomia regional portuguesa. 

Ainda não são seis da manhã quando o Tábuas Santas fundeia ao largo de Ponta Delgada. É uma traineira robusta, de nove metros, com pavilhão em Rabo de Peixe, na costa norte da ilha de São Miguel. A bordo seguem, além da tripulação, três cozinheiros com créditos firmados no continente. André Magalhães, da lisboeta Taberna da Rua das Flores, Tiago Santos, da também lisboeta Champanheria do Largo, e Diogo Rocha, do viseense Mesa de Lemos. Foram convidados para fazer um show-cooking a propósito do festival Wine in Azores, que todos os anos traz à ilha de São Miguel as maiores empresas vinícolas do país.

Os chefs decidiram pescar a sua própria comida, e depois logo se vê o que irão preparar. Para irem ao mar tiveram de acordar a horas impróprias, o problema é que o frio também decidiu madrugar. Quando o Sol nasce, já o Tábuas Santos saiu da barra, mas o céu há de permanecer cinzento, a ameaçar chuva – e depois a dispará-la contra a embarcação. O mestre mete o isco à linha e lança-a borda fora. Um peixe-balão, que é devolvido às águas, mais um robalo pequeno. «Mete-lhe o palhaço», grita para o irmão, e lá desce a armadilha para capturar lula. Vêm duas, enormes, servem para o almoço. «Voltamos a terra», anunciam os pescadores, sotaque mais carregado do que o céu.

Os ingredientes da receita vêm todos das ilhas, do feijão às algas. Mar e terra à mesa.

André Magalhães, mesmo que seja lisboeta, assume o papel de embaixador: «Os Açores têm um potencial gastronómico extraordinário, pela qualidade dos produtos e pela própria confeção regional.» Ao contrário de Trás-os-Montes ou da cozinha beirã, que têm estado muito em voga nos últimos anos, o receituário do arquipélago é vasto. «Isso explica-se pelas próprias caraterísticas da população, muito erudita nas classes médias e altas», diz o cozinheiro.«Há uma tradição literária forte e um registo de receitas extenso. Mas, infelizmente, está a praticar-se pouco a tradição.» Com o boom turístico do último ano, acredita André Magalhães, a tendência vai ter de inverter-se. Afinal, o que é genuíno e autêntico vende.

Para já, há uma qualidade de produtos imbatível. Mar limpo e rico em peixe, que traz redes carregadas de peixe – 90 por cento são para exportação. Depois as vacas são mais do que os habitantes e quase todas alimentadas a pasto. Têm carne tenra e permitem alguns dos melhores laticínios portugueses. O queijo da ilha, claro, mas as manteigas e os iogurtes, que nas ilhas são oferecidos a preços de saldo e fora dali custariam um balúrdio. «Os açorianos carregam bastante nas especiarias, têm um tempero muito rico para uma matéria-prima de luxo», acrescenta Magalhães.

Um robalo, duas lulas e um peixe-balão. Pescaria parca, mas qualidade imbatível. Suficiente para três chefs cozinharem uma feijoada do mar.

Há mais do que o mar e a terra, há também a confeção. Aqui os pratos são ricos – e muitos. Na verdade, há muito mais gastronomia nos Açores do que o tradicional cozido das furnas, cozinhado em caldeiras vulcânicas durante seis a oito horas. Vários chefs, do continente e das ilhas, hão de cozinhá-lo dias depois, no encerramento do Wine in Azores, com enchidos de todo o país. Mas a viagem de hoje é aos sabores desconhecidos do arquipélago.

Voltamos ao barco, já debaixo de um copioso dilúvio. Assim que as lulas foram pescadas, Magalhães espetou-lhes um prego no sistema nervoso central. «É uma técnica japonesa chamada ikejime, que anula o sistema nervoso central do animal. Isso reduz consideravelmente o sofrimento do peixe e impede que entre em rigor mortis, tornando-o mais saboroso e manuseável.» Depois, ele e os outros cozinheiros dirigiram-se ao mercado da Ribeira Grande, um edifício novecentista construído em cantaria. Escolhem alguns ingredientes regionais. E acendem o lume.

Três homens e seis mãos para cozinhar uma feijoada do mar, sob a batuta de Magalhães. O chef, que trabalhou em cinema até 2004, fartou-se, decidiu trocar uma vida atrás das câmaras por outra atrás do fogão. Esteve no restaurante do Clube dos Jornalistas e abriu a Taberna da Rua das Flores, onde serve petiscos e pratos regionais desde 2012. Muita comida açoriana, também, que o chef dá aulas na Escola de Hotelaria de São Miguel e gosta de procurar nas tabernas os pratos que as gerações tornaram eternos e depois atualizá-los em Lisboa no seu restaurante. Hoje, no entanto, o dia é de invenção. A feijoada é toda ela feita com produtos insulares. Azeite e alho, cebola e tomate para começar. Depois cenoura, chouriço e barriga de porco. A lula entra no fim, depois da pimenta-da-terra e do hidrato – que é feijão- arroz, típico das ilhas mas caído em desuso. Depois as algas, erva-patinha e alface-do-mar. O prato não é tradicional, mas podia. Não há nada aqui que não venha do arquipélago.

«Mas há todo um receituário que resiste nas tascas e que os açorianos ainda escondem, porque preferem oferecer aos turistas os sabores que os turistas já conhecem.» O cozinheiro está a falar dos chicharrinhos fritos e do feijão arroz assado e das alcatras, sejam de carne ou de peixe. Também há o sarrabulho de lapas, a morcela com ananás, as sopas do Espírito Santo. Não são fáceis de encontrar.

Há mais do que o cozido das furnas nos Açores.

André Magalhães guia-nos pelo caminho menos óbvio. Mesmo no centro da Ribeira Grande fica a Casa de Pasto Flor – e quase não se dá por ela. Sítio humilde, mesas pobres, as paredes repletas de garrafas expostas que são para consumo da casa. À porta há uma máquina de assar frangos, o dia inteiro a rodar em baixa temperatura. Mas é na cozinha que se dá o milagre. Vem servido em pratos pequenos, rações para petiscar. Uma dobrada à açoriana com feijão-arroz, um polvo guisado com batatas e pimenta-da-terra, as favas secas demolhadas e guisadas em lume brando. A língua de vaca vem cortada em fatias e regada com um molho pastoso e picante. Acompanha-se tudo com vinho de cheiro, feito de uva Isabel. Aqui estão, finalmente, os Açores.

Em Ponta Delgada há um culto aos almoços. A tasca do Mané Cigano serve chicharros fritos em farinha de milho, acompanhados de um refogado de feijão com tomate e pedaços de orelha de porco, que vai ao forno antes de servir. Chicharros, em linguagem continental, são carapaus pequenos. A quilómetros dali, no Hotel Boutique das Furnas, experimenta-se a versão gourmet destes paladares, na Fornaria à Terra – liderada pelo cozinheiro Hugo Ferreira. O espaço é elegante, mas o conceito é o mesmo: partilhar comida. Tudo é petisco. «O potencial gastronómico dos Açores é tremendo», repete uma vez e outra André Magalhães. Como se mar e a terra, aqui, tivessem encontrado mesa para um grande banquete.

Texto de Ricardo J. Rodrigues - Fotografias de Gonçalo Villaverde/Global Imagens
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