A minha Sicília era, à partida, a das colónias da Magna Grécia que ergueram o templo e o teatro de Segesta, a acrópole de Selinunte, o vale dos templos de Agrigento, os teatros de Siracusa e de Taormina. Era a dos caçadores de feras e das meninas em biquíni nos mosaicos romanos da Villa del Casale, em Piazza Armerina, dos mosaicos bizantinos de Monreale e da Capela Palatina do Palácio dos Normandos.
Era, sobretudo, a Palermo das “Vésperas Sicilianas” – a ópera de Verdi que imortalizou a revolta de 1282 contra o ocupante francês – e do Leopardo, de Lampedusa e de Visconti, a Agrigento de Pirandello, a Taormina dos festivais de cinema e de todas as divas, desde Anna Magnani até Monica Vitti, passando por Claudia Cardinale.
Era a Sicília dos meus heróis, de Garibaldi e dos Mil; dos soldados e camponeses de Libertação, de Rosselini; dos juízes Falcone e Borselino – e dos vilões das sagas O Padrinho e O Polvo.
Foi essa a Sicília que encontrei. E muito mais. Tanto que vou ter que voltar.
Visita obrigatória no coração da antiga capital do Reino da Sicília é o Teatro Massimo. No Padrinho 3 é naquela escadaria que a jovem Mary Corleone (Sofia Coppola), depois de ouvir o irmão cantar o papel principal da Cavalleria Rusticana, morre atingida pela bala destinada ao pai, Michael Corleone (Al Pacino), que ali mesmo dá corpo a uma das mais lancinantes cenas de dor da história do cinema. Essas escadas são, agora, o ponto de encontro dos turistas em Palermo.
Nas ruas principais do centro histórico saltam à vista os palazzi decadentes, com fachadas que são uma pálida sombra da imponência de outrora. As cornijas acusam a passagem dos séculos e a acumulação de humidade, a pedra de alguns brasões está partida. Pesados portões de madeira estão fechados a cadeado. Um deles, na Piazza Bologni, ostenta uma placa: “Aqui descansou Garibaldi os seus membros exaustos, durante apenas duas horas, no dia 27 de maio de 1860.” Recorda os combates da insurreição de Palermo que acabou com a monarquia absoluta de Francisco II de Bourbon e abriu caminho à integração da Sicília na Itália.
Palácios outrora imponentes, memórias cinematográficas e ruas de alfarrabistas fazem parte das recordações do historiador.
Felizmente, alguns desses palacetes da velha nobreza siciliana foram recuperados. Um deles, a dois passos do monumental cruzamento Quattro Canti, entre a Via Maqueda e a Via Vittorio Emanuele – com fontes e estátuas representando em diferentes fases da sua vida o rei Filipe III de Espanha (II de Portugal: o escudo português lá está, em grande destaque, sobre as armas reais) – foi convertido em hotel em 1892: é o Centrale Palace, fazendo gala em preservar os pormenores que fazem a diferença nos hotéis românticos que marcaram uma época.
A poucos metros de distância, o B&B 4 Quarti funciona noutro palacete recuperado, construído em 1555 e ainda hoje propriedade da família Arone, cujo brasão, encimado por uma coroa de barão, está pintado numa parede da casa. O “quarto matrimonial”, com o teto de estuque trabalhado, uma tapeçaria com uma águia por detrás da cama, peças de majólica por toda a parte, parece um museu. Percorrendo os corredores, a todo o momento espero (receio) cruzar-me com Don Fabrizio, o príncipe de Salina imortalizado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa como “o Leopardo” e por Burt Lancaster no filme de Visconti, ou com Tancredi (Alain Delon), o tal que disse: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.” O baile em que este anuncia o noivado com Angelica (Claudia Cardinale) foi filmado ali perto, no Palazzo Valguarnera Gangi, na Piazza Croci dei Vespri. No 4 Quarti não há a Cardinale, mas há a descendente dos antigos senhores, jovem discreta com um indisfarçável porte aristocrático, cujos pergaminhos não a impedem de ajudar os hóspedes a carregar as malas.
Subindo a Vittorio Emanuele, rua marcada pela profusão de livrarias e alfarrabistas, chego à Catedral de Palermo, cuja imagem de marca é a mistura de estilos arquitetónicos. Parece-me mais bonita por fora do que por dentro, ao contrário de quase todas as outras igrejas da cidade, por exemplo a não muito distante Igreja de Jesus. Como todos os templos jesuítas, por fora é de um despojamento austero que contrasta com a riqueza da decoração barroca no interior. Na capela dedicada a São Francisco Xavier há uma pintura de Camões com “Os Lusíadas” na mão e uma nau portuguesa com a cruz de Cristo nas velas. Ali perto fica o Palácio dos Normandos, com um ponto de visita obrigatório: a Capela Palatina. De cortar a respiração é a Igreja de Santa Maria dell’Ammiraglio (La Martorana), uma preciosidade do século XII, com cúpulas árabes, ícones e mosaicos bizantinos e normandos (Matt Damon aparece no interior desta igreja em O Talentoso Mr. Ripley, de Anthony Minghella). Depois de bater várias vezes com o nariz na porta, consegui visitá-la graças ao casamento de Serena e Diego (os nomes estavam nas folhas com as leituras e orações da cerimónia…).
Como nem só de arte e história vive o homem, rumei depois ao mercado Ballarò: quarteirões inteiros cheios de bancas de hortaliças – incluindo tomates de todos os tamanhos e feitios e umas courgettes com mais de um metro –, fruta (deliciosos os figos-da-índia bem maduros), peixe (espadartes gigantes e salmonetes minúsculos) e tudo o que tem cabimento numa feira de rua, sem esquecer o melhor negócio sob o sol inclemente: packs de seis garrafas de dois litros de água cada por 1,50 euros.
Arquitetura religiosa e boas experiências gastronómicas não faltam neste roteiro através da Sicília.
Não podia despedir-me de Palermo sem adoçar a boca na Pasticceria Cappello (esquina da Via Nicolò Garzili com a Giosuè Carducci, a dois passos da Via Dante): além de se esmerar nos tradicionais cannoli e cassate, esta pastelaria inventou outro doce imperdível: settevelli ou o céu em sete camadas de chocolate.
Como qualquer curioso da cultura greco-romana, sujeitei-me a uma autêntica via sacra pelo interior da ilha, por estradas em mau estado e/ou com obras intermináveis e ao trânsito caótico-suicida, até chegar aos paraísos dos classicistas. Mas o templo dórico inacabado de Segesta, os templos e a ágora de Selinunte, com o mar ao fundo, ou o templo da Concórdia, em Agrigento, valem o desvio. Outra prova – bem dura, por sinal – foi a travessia de montes e vales até Piazza Armerina, mas os mosaicos romanos merecem o sacrifício. Em Agrigento também se pode visitar a casa onde nasceu Luigi Pirandello, Prémio Nobel da Literatura de 1934.
Siracusa, a cidade onde o matemático e físico Arquimedes gritou «eureka!» e construiu armas de destruição maciça para resistir à conquista romana, não vale só pela comparação entre os monumentais teatros grego e romano, separados por escassas dezenas de metros, nem pelo exaustivo museu arqueológico. Um dos monumentos mais curiosos que vi até hoje foi o Duomo, na ilha de Ortigia, onde salta à vista o aproveitamento das colunas dóricas do templo de Atena para a construção da catedral, no mesmo local, com partes arabo-bizantinas e barrocas, além de decoração normanda. Mesmo ao lado, a Igreja de Santa Luzia (padroeira de Siracusa), tem um quadro de Caravaggio.
Ao jantar, segui o conselho do guia Lonely Planet e fui provar uns ravioli de bacalhau e camarões com filetes de salmonete e um tagliatelle mar e monte (mexilhões, amêijoas e cogumelos) ao restaurante Sicilia a Tavola. Cumpriu: foi bom e barato.
A cidade de Noto, perto do vértice sueste do triângulo siciliano, é a prova de que a ilha não tem só ruínas gregas para mostrar: em poucas centenas de metros sucedem-se igrejas, palácios e monumentos barrocos. Por vezes com iniciativas improváveis, como a exposição Barroco Imaginário de Andy Warhol.
Em Catânia não me demorei: encontrei a catedral fechada e, depois de encarar o Etna, decidi que subir ao vulcão não é coisa que me atraia. Para os interessados em história militar, nos arredores há cemitérios de guerra americanos, ingleses e alemães.
Taormina é outra história. A grande atração é o teatro grego mas a Isolla Bella e as praias vizinhas, ligadas ao centro por um teleférico, não lhe ficam atrás. Mal o Sol se põe, a rua principal, entre as portas de Catânia e de Messina, transforma-se num cenário de desfile de vaidades – grandes, médias e pequenas –, como se a passadeira vermelha estivesse sempre estendida. Mas os dias de glória do Festival de Taormina, quando o jet set mundial marcava presença obrigatória na entrega das estatuetas David di Donatello, os Óscares do cinema italiano, já lá vão.
O festival continua a realizar-se todos os anos, mas as fotos à porta dos restaurantes e bares são a preto e branco e mostram estrelas dos anos 1950, 60 e 70: Sofia Loren, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale, Anita Ekberg, Audrey Hepbrun, Elizabeth Taylor, Richard Burton, Burt Lancaster… Os mais recentes são talvez Kabir Bedi (Sandokan) e a já falecida Laura Antonelli, nos tempos áureos das comédias marotas.
E a Mafia? À vista desarmada, parece que se tornou uma atração turística. As lojas de souvenirs vendem aventais de cozinha com fotos de Marlon Brando ou Al Pacino e a legenda Io sono il Padrino. E há os bonecos de cerâmica: um gordo de bigode com uma caçadeira a tiracolo com a legenda U Mafiusu e uma matrona, A Mafiusa, com ar brincalhão.
O monumento ao juiz Falcone, assassinado à bomba em 1992, perto do aeroporto batizado Falcone-Borselino; a placa de homenagem ao general Della Chiesa (assassinado com a mulher em 1982), no quartel dos Carabinieri de Palermo; e o túmulo, na catedral, do padre Pino Puglisi, assassinado a tiro em 1993 e beatificado como mártir, não deixam esquecer o passado.