Veneza não é destino que se despache numa visita de cortesia. Apetece ficar mais tempo, adiar sem prazo o regresso. E, ao mesmo tempo, mal se desembarca na cidade dá vontade de zarpar de novo e explorar tudo em volta. É nessa altura que se começa a olhar para os vaporetti com outros olhos – não apenas como autocarros aquáticos que servem para circular pela cidade –, mas como uma rede de meios de fuga para todas essas ilhas e ilhotas disseminadas pela lagoa.

Há ilhas que ilustram o passado mais remoto de Veneza, outras que simbolizam aquilo que ela nunca quis ou não lhe deixaram ser. Outras ainda surgem como réplicas em ponto pequeno, extensões ou complementos daquela que foi conhecida, do século IX ao XVIII, pela Sereníssima República de Veneza. Todas são Veneza e, no entanto, estão para além dela. E é aí – nesse jogo de alternativas, justaposições e variações – que reside o fascínio das ilhas da Laguna Veneta.

São nada menos de oitenta ilhas, algumas pouco mais que pinceladas de terra à beira da submersão, outras santuários naturais que só se contemplam ao longe. Outras ainda são privadas ou de difícil acesso. Exploramos as mais célebres e mais umas quantas com nomes menos sonantes mas nem por isso menos dignas de visita. Deixamos outras de fora, se calhar de propósito, em jeito de pretexto para voltar depressa a Veneza.

 

Murano

Porventura a ilha mais concorrida a norte de Veneza, Murano conta cerca de sete mil residentes e cinco milhões de visitantes anuais. O prestígio da produção vidreira e das linhagens dos artistas sopradores de vidro justifica quase exclusivamente essa popularidade. O fabrico do vidro é uma arte veneziana transferida para Murano desde finais do século XIII. A história de criação e propriedade que aí começa está bem ilustrada nos dois pisos do Palazzo Giustinian, antiga sede episcopal e museu do vidro desde 1861. Essa é uma das atrações da ilha, outra são as igrejas, nomeadamente a Basílica de Santa Maria e San Donota com o chão coberto de enigmáticas figuras geométricas de matriz bizantina.

murano, veneza

Um passeio um pouco mais demorado depressa leva a inferir que Murano é um lugar estranho. Porque se as ruas principais, sobretudo em redor do canal, estão forradas de montras com toda a espécie de artigos de vidro, já nos bastidores – quase todo o resto da ilha – o que mais se encontra são ruas desertas e fábricas abandonadas.

 

San Michele

A caminho de Murano há uma ilha que toda a gente fotografa, mas onde poucos se aventuram. É a ilha de San Michele, ultrafotogénica sobretudo por causa da sua aparência de ilha-fortaleza emoldurada por sólidas muradas e coroada por uma magnífica igreja da escola dos Lombardi, em 1469. Um marco na arquitetura local, a Igreja de São Miguel simboliza a descolagem do gótico e a adesão de Veneza ao ideário da Renascença. Mas San Michele é também uma ilha-cemitério, certamente única no mundo, já que foi construída por razões sanitárias longe da cidade durante o período de regência napoleónica.

O cemitério não partilha da monumentalidade do seu homólogo de Génova, mas é um lugar com uma vibração peculiar e meia dúzia de campas famosas, incluindo as últimas moradas de celebridades como os poetas Ezra Pound e Joseph Brodsky ou o compositor Igor Stravinsky. A nova atração, pelo menos para os alunos de arquitetura, é a extensão do cemitério com a assinatura de David Chipperfield, que ainda não está concluída, mas que no geral se assemelha a um bunker.

San Michele veneza

 

San Giorgio Maggiore

Mesmo em frente a São Marcos, entre o canal e a lagoa, avista-se San Giorgio Maggiore, um desses emblemas de Veneza que meio mundo reconhece mesmo sem nunca lá ter posto os pés. A ilha de forma pentagonal é tão pequena que se confunde com a majestosa igreja de Andreas Palladio, (desenhada em 1565, concluída 45 anos depois), uma das mais geniais recriações renascentistas da arquitetura clássica. No interior há várias obras-primas dos pintores Tintoretto e Bassano, mais recentemente acompanhadas por uma mão gigante que abençoa, suspensa das alturas da abóbada central. A escultura de aço do artista plástico Jaume Plensa, que se chama Together e junta carateres de oito alfabetos diferentes, foi premiada na Bienal no ano passado e está emprestada MSiacnhele até ver.

San Giorgio Maggiore, Veneza

 

Giudecca

Também gizadas pelo arquiteto Palladio foram as igrejas de Zitelle e do Redentore, que dominam a fachada urbana da vizinha Giudecca. Cadeia de ilhas primeiramente conhecidas como Spina Longa, dada a sua forma estreita e comprida, já foi de tudo um pouco, desde gueto judeu a parque industrial, passando por estância balnear chique. Agora «a Giudecca é a última ilha onde os venezianos autênticos vivem, em contraste com uma acelerada desertificação e turistificação da ilha central». As palavras são de Nuno Grande, comissário do pavilhão português da atual Bienal de Arquitetura (até final de novembro).

A Giudecca conserva boa parte do património industrial e uma população de rendas económicas com quem se têm vindo a misturar estudantes, artistas e start-ups. Daí o clima de autenticidade e convivência, já raros noutros quadrantes de Veneza, mas que aqui persiste e ganha especial expressão durante as festas do Redentor.

Guidecca Veneza
Guidecca Veneza
Guidecca Veneza

Criadas para assinalar o fim da epidemia da peste, em 1576, realizam-se agora no terceiro fim de semana de julho em torno da igreja homónima e incluem uma procissão num pontão de madeira lançado desde Veneza, uma caótica concentração de barcos no canal e um fogo-de-artifício capaz de iluminar cidade e arredores. Vem muita gente de fora, mas as festas do Redentor são sobretudo uma celebração de quem lá vive, que faz questão de abrir portas, montar mesas, comer fritos e dançar na rua até de madrugada.

 

San Lazzaro degli Armeni

Entre Veneza e o Lido, disseminadas pelo sul da lagoa, há meia dúzia de ilhas ditas menores, entre as quais cabe destacar San Lazzaro degli Armeni. Facilmente identificável pelo alto campanário com a forma de uma cebola no topo, San Lazzaro é uma ilha-convento habitada por onze monges e sete seminaristas da congregação arménia-mequitarista. Há um vaporetto (linha 20) que faz lá escala, mas o sítio só abre para visitas guiadas ao princípio da tarde. Quem chega antes fica a passear num encantador jardim plantado com roseiras centenárias e abençoado por vistas privilegiadas sobre Veneza e a lagoa.

O jardim à borda de água é a perfeita antecâmara para esse outro mundo que são os corredores do mosteiro, onde os monges também são guias. De uma incrível erudição desbobinam três mil anos de história arménia numa hora – incluindo um generoso capítulo sobre a sua «célula» veneziana que, em 1717, ganhou autorização para a construção de um convento e de uma igreja na ilha de São Lázaro (que, como o nome já indica, antes era uma leprosaria). A atribulada história dos arménios é um dos pontos altos da visita, incluindo a exposição sobre o centenário do genocídio arménio, exibida nas paredes do claustro. Outra sensação é o acervo da congregação, um espólio que vai de uma múmia egípcia a memorabilia de Lord Byron (poeta inglês que aqui passou uma temporada a aprender línguas orientais), passando por um teto pintado por Tiepolo e uma riquíssima coleção de manuscritos antigos dos quatro cantos do mundo.

San Lazzaro degli Armeni, Veneza

Entre San Lazzaro e a cidade há uma paragem em San Servolo, que serve os estudantes da Universidade Internacional de Veneza. De vez em quando (e com marcação prévia) também lá desembarcam curiosos do Museu de la Folia, que recorda a antiga utilização da ilha como manicómio. Em exibição estão fotografias dos antigos pacientes, bem como os engenhos empregues para os tratar, incluindo uma espécie de detetor de mentiras rudimentar e uma jaula para duches frios.

 

Lido

Uma das fronteiras da lagoa com o mar alto, o Lido são doze quilómetros de uma língua de terra em boa parte ocupada por praias de areias finas. É um destino de fuga inevitável quando Veneza entra em ebulição no pico do verão. Já para quem pode usufruir de praias como as portuguesas não será grande programa. Sobretudo quando a maior parte das praias do Lido é privada e cobra exorbitâncias por duches e toldos. Não admira então que as raras praias públicas da ilha tendam a estar sobrelotadas Lido e não primam pela limpeza.

O Lido justifica mesmo assim a deslocação sobretudo na cauda das suas glórias passadas, que incluem o Grand Hotel des Bains imortalizado na obra Morte em Veneza e um punhado de graciosas relíquias de veraneio Belle Époque. Santa Maria della Vittoria e a sua cúpula prodigiosa, o empoeirado cemitério judeu, mais o antigo Casino e o Palácio do Cinema, ícones da era fascista, são outros pontos de interesse. Para facilitar a circulação entre estas moradas há bicicletas e um serviço de autocarros, que são cómodos, mas que têm um nadinha de desilusão. Há qualquer coisa nos autocarros do Lido que leva a cogitar que a vida não é só ilhas e vaporetti, ou que há sempre uma altura para voltar a terra firme.

lido1

 

Torcello

Vale a pena resistir a fazer escala nas ilhas intermédias e só desembarcar mesmo em Torcello. São muitas as distrações consumistas pelo caminho e boa parte dos potenciais visitantes acabam por nem pôr os pés nesta ilha na ponta nordeste da lagoa, a coisa de uma hora de vaporetto da cidade. Melhor para os resistentes, quando o lugar dimana uma atmosfera única que só se aprecia em pleno longe das multidões. Torcello é Veneza antes de Veneza e, ao mesmo tempo, um caso sério de involução, ou melhor, de devolução de uma cidade à natureza, deixando de pé pouco mais do que um par de testemunhos do seu passado glorioso.

Primeiro destino de povoamento da lagoa, Torcello tinha dez mil habitantes no século X, mas o recuo das águas e a malária condenaram-na ao despovoamento e quase completo desmantelamento. Resistiram a prodigiosa Basílica de Santa Maria da Assunção (do ano 639), na fotografia à esquerda, prendada com majestosas colunas gregas e sumptuosos mosaicos bizantinos, a igreja que guarda as relíquias de Santa Fosca (dos séculos XI-XIII) e o original cadeirão de mármore onde a lenda diz que se sentava Átila, rei dos Hunos. A verdade é que Átila nunca aqui aportou e o banco era usado pelos representantes da justiça na época de maior esplendor de Torcello.

Entre o vaporetto e a basílica há uma Ponte do Diabo, na fotografia à esquerda, onde toda a gente se detém para se fazer fotografar e espantar superstições, mas quase tudo o resto em volta é mato. As igrejas e as relíquias ancestrais, toda a mística mais o enlevo do verde invasor convergem para fazer de Torcello um dos locais mais encantadores da lagoa.

 

Burano e Mazzorbo

Burano, Veneza
Burano

Burano é um dos postais do Veneto, famosa pelas rendas artísticas e pelas casas pintadas de cores garridas. Hoje os bordados são mais história – uma história de apuro técnico e de requinte artístico, que conquistou as elites europeias dos séculos XV e XVI. Essa herança é recordada num museu que exibe todas as valências do género, num espetro que vai de ornamentos litúrgicos a pelas de lingerie com brincadeiras eróticas. Já as janelas e as portas pintadas às cores são uma tradição justificada pela necessidade de os pescadores conseguirem identificar as suas residências no regresso da faina em dias de nevoeiro.

Agora quase todas as fachadas estão pintadas de fresco nos seis bairros, distribuídos por quatro ilhotas e divididos por três canais que formam Burano. Suspeita-se, porém, que as cores saturadas têm menos que ver com a tradição do que com o efeito teatral, esse pitoresco procurado pelas falanges de turistas que diariamente desembarcam na pequena ilha, oito quilómetros a norte de Veneza. Burano está, se calhar, mais bonita por causa desse assédio e também é verdade que a maior parte dos turistas debandam mal começa a entardecer.

Mazzorbo, Veneza
Mazzorbo

É quando a ilha regressa à atmosfera de convivência, e até um bocado canalha, que deve ser a sua alma profunda. Mesmo ao lado e ligada a Burano por uma ponte fica Mazzorbo, ilha mais pequena também com casas coloridas, mas sobretudo ocupada por hortas e vinhas, de onde deriva um tinto digno de toda a confiança.


Veja também: 15 locais que não pode perder em Veneza


Dicas

Moeda: Euro
Fuso horário: GMT +1 hora
Idioma: Italiano
Quando ir: Qualquer altura é boa para ir a Veneza, mas abril e maio, e setembro e outubro podem ser as melhores épocas, sem aglomerações de turistas.
Transportes: Os vaporetti da companhia de transportes públicos Actv andam frequentemente a abarrotar, mas são castiços e divertidos, sobretudo quando o pessoal de bordo está bem-disposto. Dado o preço quase imoral de 7,50 euros por bilhete (para todos com mais de 6 anos, válido por uma hora), melhor será comprar o passe Venezia Unica que custa 20 euros por 24 horas, mas só 60 por uma semana (veneziaunica.it). A Alilaguna, empresa pública que gere a navette de ligação com o aeroporto, tem também passeios de barco de meio-dia pelas ilhas mais famosas do norte da lagoa (20 euros, venicelink.com).

Dormir

Certosa Hotel
Integrado no polo náutico da ilha de Certosa, bem no centro da lagoa, este é um hotel com menos mordomias, mas aliciante para quem gosta de praticar desportos náuticos.

Ilha de Certosa
Tel.: +39 041 277 8632
Quarto duplo a partir de 60 euros
hotel.ventodivenezia.it

Locanda Cipriani
Meia dúzia de quartos apenas, num dos quais Ernest Hemingway escreveu vários romances. Sítio de casamentos e batizados aos fins de semana, esta locanda é, durante o resto do tempo, um oásis de tranquilidade campestre. O restaurante também merece nota alta.

Plaza Santa Fosca, Torcello
Tel.: +39 041 730150
Quarto duplo a partir de 141 euros

Comer

Acquastanca
Antiga padaria à beira do canal de
Murano convertida num sítio com
estilo, que recria sabores tradicionais
com todo o requinte.

Fondamenta Manin, 48, Murano
Tel.: +39 041 319 51 25
Preço médio: 50 euros
acquastanca.it

Al Pontil Dea Guidecca
Restaurante popular, que só serve almoços com menus na base das compras do dia. Uma verdadeira bolsa de resistência da Guidecca tradicional, para mais com vistas sobre o centro monumental de Veneza.

Guidecca, 179A
Tel.: +390 415286985
Preço médio: 15-20 euros

Texto e Fotografias de Luís Maio
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