Zamalek

Dizem que há um código para as buzinadelas. Se for apenas um toque breve, dois toques breves, se deixarem a mão pousada sobre a buzina, há mensagens muito precisas. A esta hora da manhã, não se distingue nenhuma mensagem do manto de buzinas que se enreda lá em baixo, mais agudas, mais roucas, roufenhas, buzinas jovens ou muito velhas, lamentos de carros gastos, amolgados, cobertos pelo mesmo pó que se cola às fachadas dos prédios.

O Cairo é enorme. Estende-se até onde a minha vista não alcança, os contornos do horizonte esbatem-se em cores granuladas, areia. O trânsito atravessa as ruas do Cairo, circula devagar, constante e compacto. São veias e artérias essas ruas. À noite, em todas as horas da noite, esse trânsito será luzes, faróis lentos que nunca param.

No interior de todos os prédios que se levantam na distância, há um movimento semelhante: gente que sobe e desce escadas, gente que atravessa corredores. Essa é a matéria que constitui a cidade. Por todo o lado, há rostos a falar uma língua que apenas precisa da letra «a» para ondular no interior das bocas. São milhões de vozes entrelaçadas, formam uma cidade falada, igualmente densa. Depois, a horas certas, há uma voz única que se propaga a partir dos minaretes das mesquitas. Fala também essa língua, faz vibrar essa vogal, como se a esculpisse no espaço, é uma voz espessa que entra nas pessoas, atravessa-lhes o peito.

Aqui, perto, a meus pés, esta ilha no Nilo. O rio corre à sua volta, águas castanhas que passam com urgência. As pontes que ligam Zamalek ao resto da cidade são atravessadas por gente que caminha, rapazes em passeio, alguns param, encostam-se e ficam a olhar. Não sei o que veem. Talvez sigam os barcos que recolhem a ligeira brisa desta hora, que cortam o brilho das águas. Mais logo, quando o dia estiver quase a terminar, o Sol será um círculo ardente sobre o contorno negro das casas, prédios antigos e modernos. Nesse momento, estas águas serão milhões de pontos de luz a descer à mesma velocidade. As cadeiras que estão alinhadas nas margens do rio estarão todas ocupadas por homens de bengala e pernas estendidas. Já viram o Nilo muitas vezes, observaram-no até se confundirem com ele e, agora, despedem-se todos os dias das suas águas, nunca sabe o que como será amanhã.

As pontes que ligam Zamalek ao resto da cidade são atravessadas por gente que caminha, rapazes em passeio, alguns param, encostam-se e ficam a olhar. Não sei o que veem.

Do lado de Zamalek, quando começar a anoitecer, as ruas recebem novas multidões. Caminham pelos passeios, atentos a buracos, a sombras de buracos, atentos a vultos de gatos, ou, se os carros estacionados os impedem de continuar no passeio, caminham no centro das ruas, atentos aos carros, ao código das buzinadelas, às pessoas que vêm na direção contrária e também tentam seguir o seu caminho.

A qualquer hora da noite, será sempre cedo. Em transversais, becos, haverá gente a beber chá em esplanadas, a soltar nuvens grossas de fumo branco, fumo de chicha bem moldado, mármore a pairar. De noite, como agora, toda a cidade se sente nesta ilha que se atravessa a pé em quinze minutos. Se o Cairo é um corpo, Zamalek é o seu pequeno coração.