O Sudoeste inglês revela trechos tirados de contos de fadas. Pela frente tem o Atlântico, temperamental; à retaguarda, mantos de um verde apaziguador. Tem cidades que cabem na palma da mão e aldeias históricas, verdadeiros exemplos de conservação. Estivemos em Plymouth – de onde saíram as embarcações inglesas com destino ao Novo Mundo –, e de Plymouth partimos para os condados de Devon e de Cornwall.

Texto de Petra Alves
Fotografias de Constantino Leite

Flora é francesa, Maria é portuguesa, ambas vivem em Plymouth. Steve é um amigo canadiano de visita à cidade. Chegaram ao parque Mount Edgecombe de ferry, trouxeram piquenique, sentaram-se na relva em frente ao mar e ali ficaram largas horas a conversar sobre as perspetivas que a vida ganha entre os 50 e os 60 anos. Em terra de ingleses, falaram dos franceses, dos portugueses e dos alemães já que Steve está ‘emprestado’ a Berlim há três décadas.

Um pouco mais acima, um grupo de rapazes e raparigas jogavam uma espécie de andebol em que todos correm muito e depois todos descansam, deitados e sobrepostos uns nos outros. Aos 20, a chamada “distância confortável” tende a ser muita curta. Também por ali se viam festas de aniversário de crianças, casais a ler como se o mundo não existisse, pessoas sozinhas a caminhar e a apreciar a paisagem, a brisa, o céu azul que horas antes estava vestido de cinza. Aquele grande green é o raio X de uma região onde, num mesmo dia, a chuva cai, o céu limpa, o sol brilha e aí todos povoam o espaço público, tornando-o vivo e ainda mais rico. Um raio X que mostra várias faixas etárias, diferentes condições sociais, muitas nacionalidades, crenças e religiões juntas, a respirar o mesmo ar – que, em Mount Edgecombe, é bastante puro –, a usufruir, cada um à sua maneira, de um parque que é dos mais bonitos do país.

Plymouth: cidades do Sul de Inglaterra de onde não apetece sair

Sim, a multiculturalidade está instalada, não só nos grandes centros urbanos ingleses. As cidades mais pequenas, como Plymouth e as suas vizinhas, aliam à beleza da diversidade, a natural. Os condados de Devon e Cornwall (Cornualha) são uma espécie de paraíso para quem gosta de longas caminhadas no topo de escarpas, ou na floresta densa, de vilas perdidas no tempo com casas de pedra e telhados de colmo, de castelos, história e de um bom fish and chips, de bacalhau fresco, crocante por fora e suculento por dentro. E lá, a sul, onde tudo é mais ameno, a simpatia de um Yes, my dear, how can I help you? parece estar sempre na ponta da língua.

Viajar dá cabo da ignorância

Francis Drake, Portugal e Espanha: o que têm eles, e nós, a ver com Plymouth? Quando chegámos não lhe conhecíamos a história. Podíamos ter pesquisado, mas não o fizemos. Entrámos em Plymouth assumindo toda a nossa ignorância sobre aquele território e as suas personagens mais afamadas e fomos descobrindo, em micro mas consistentes doses, que esta pequena cidade portuária desempenhou um papel-chave na história naval britânica. Viajar também é isto: descobrir o como, o quando e o porquê de um lugar.

Flora, a francesa, saberá que França fustigou Plymouth por várias vezes. Que o pior ataque terá acontecido em agosto de 1403, quando as tropas inglesas não conseguiram afugentar os soldados franceses que ocuparam a Plymouth medieval e a queimaram quase dos pés à cabeça. A cidade foi reconstruída e usada, mais tarde, como importante base de operações contra França.

Steve, o canadiano emprestado à Alemanha, foi professor de História, pelo que certamente terá conhecimento de que, durante o período entre 1558 e 1603 (Tudor), a população do país seguia em franco crescimento, acompanhado pelo desejo de poder e de desbravar territórios longínquos. A rainha Elizabeth I estava ansiosa para seguir os passos exploratórios de Espanha e Portugal que, à época, viajavam pelo mundo estabelecendo importantes rotas comerciais. E aqui chegamos a Francis Drake, cuja figura se ergue em estátua no bairro The Hoe, onde Maria tantas vezes almoça, de olhos postos no mar.

Francis Drake (1540- 1596) foi capitão, corsário, navegador e político inglês. Teve a cabeça a prémio.

Drake, diz-se, tinha uma moral duvidosa mas enchia os cofres de Inglaterra e contribuiu para a colonização do Novo Mundo. Em Espanha, era conhecido como El Draque e tido como um sujeito da pior espécie que ameaçava pelos mares, ao ponto de Filipe II, rei da Espanha (I de Portugal), oferecer uma fortuna pela vida do corsário rebelde. Francis Drake saiu de Plymouth a 13 de dezembro de 1577 a bordo do Pelican para ser o primeiro navegador inglês a vencer o estreito de Magalhães, a atravessar o Pacífico, o Índico, a passar pela Indonésia e a fazer todo o caminho de volta para Inglaterra, cheio de tesouros e de especiarias exóticas. Foi ele o primeiro inglês a circum-navegar o globo.

Plymouth: cidades do Sul de Inglaterra de onde não apetece sair

Maria, a portuguesa, terá lido – aquando das suas investigações sobre as figuras que viraram estátua na cidade onde escolheu viver – que, em 1589, Drake esteve por terras portuguesas, na altura nas mãos dos espanhóis. Há, inclusive, uma expressão penichense que tem tudo a ver com essa “visita”. Drake fazia parte de uma vigorosa expedição militar de 140 navios e mais de 27 mil homens que vinham ajudar D. António, Prior do Crato, a destronar Filipe II de Espanha do trono de Portugal. A ideia, apoiada por Isabel I de Inglaterra, era restaurar a soberania portuguesa mas a verdade é que, segundo consta, os milhares de homens no terreno pouco fizeram para o efeito. Não deram o ‘corpo ao manifesto’ aqueles grandessíssimos “amigos de Peniche”. E Portugal continuou subjugado aos espanhóis.

Um fim-de-semana seria o suficiente para visitar Plymouth?

O centro de Plymouth tem uma particularidade curiosa da qual só se apercebe quem o visita durante a semana. Quando se aproxima o final do dia, as ruas começam a esvaziar-se de gente, as lojas fecham e tudo parece acontecer em dois minutos. Às 16h58 todos andam às voltas com as suas vidas pela grande zona pedonal e comercial do centro da cidade; às 17h, o pavimento empedrado parece uma pista de aterragem de aviões. Grande e vazia. Isto acontece sobretudo no inverno, quando os dias são mais curtos e as temperaturas, apesar de não tão baixas como no Centro e Norte do país, não convidam a grandes passeios. Dica: aproveitar o dia.

Mas voltando à pergunta acima, há a dizer que a cidade é relativamente pequena, tem pouco mais do que 260 mil habitantes e não é propriamente Londres, onde está tudo sempre a acontecer. Por isso, sim, em dois dias conhece-se o coração da metrópole e as suas artérias mais emblemáticas que são o The Hoe e Barbican. Mas ir a Plymouth é também sair de Plymouth e desbravar a região. Ou seja, a pergunta de partida deveria ser: quantos dias tenho disponíveis? É que a cidade surge no mapa estrategicamente posicionada a dois passos das principais atrações de condado de Devon – a que, aliás, pertence – e do condado de Cornwall que é lindo de pasmar e – pasme-se! – tem uma coisa chamada ordenamento do território que protege aquela enorme beleza natural e cultural. Se não tem, parece ter.

Posto isto, decidimos ficar uma semana inteira, alugámos um carro e usámos o GPS do telemóvel que batizámos de Drake, na esperança que nos guiasse o desejo de exploração do território. No entanto, a aplicação não nos orientou pelos caminhos mais recônditos mas levou-nos até eles, boicotando os nossos planos a cada nova rotunda ou sentido proibido – claramente não estava atualizada. E ainda bem. Até porque tínhamos tempo.

Devon e Corwall, a sustentabilidade e a virtude

Ao contrário do nosso, o coração de Devon é verde e chama-se Dartmoor. Tem o maior número de restos arqueológicos na Europa, de pedra, menires, cruzes e aldeias antigas. Tem vales arborizados com rios de fluxo rápido e floresta densa, tem cumes altos, com vistas tão poderosas que farão com que todas as almas, mesmos as mais empedernidas, se encham de gratidão. São quase 1000 quilómetros quadrados de área para explorar, com dezenas de estradas sinuosas e estreitas que vale a pena cursar, com ou sem Drake. No entanto, há que dizê-lo, é possível percorrer-se vários quilómetros sem avistar uma única pessoa.

Plymouth: cidades do Sul de Inglaterra de onde não apetece sair

Nós perdemo-nos. Perdemo-nos de carro, perdemo-nos a pé, perdemo-nos em conversas silenciosas apenas testemunhadas, aqui e além, por vacas e cavalos que de repente apareciam no caminho. De volta ao carro, lá fomos encontrando aldeias e pequenos lugarejos que pouco mais tinham do que a igreja e o pub. Se a primeira alimenta a alma, a segunda mata a sede.

Dartmoor é um Parque Nacional e uma espécie de pulmão com vários propósitos: um deles, turístico. Para que este não entre em conflito com o bem-estar das populações que ali vivem, com o edificado histórico e com o ecossistema único daquele lugar, há uma equipa composta por ecologistas, técnicos florestais, arqueólogos, entre outros especialistas, apoiados por auxiliares de informação sazonal, guias e voluntários. Fica assim assegurada a coexistência saudável entre residentes, vida selvagem e visitantes, que procuram Dartmoor para fazer piqueniques, passear por trilhos, andar de bicicleta, entre outras atividades. Este cuidado em promover a sustentabilidade de vários universos – que, no fundo, perfazem um único – é notório um pouco por toda esta região. E é bom de se ver.

A beleza natural é do melhor que esta região inglesa tem para oferecer.

Também Noss Mayo, uma pequena vila, em Devon, a cerca de 16 quilómetros de Plymouth, conquistou uma certa harmonia entre diferentes demandas. Encontra-se no lado sul de Yealm, um estuário bonito, rodeado por colinas arborizadas e construídas. Apesar das muitas casas, há uma ordem visual que harmoniza o conjunto e tudo parece bater certo. E há também boas alminhas que avisam os visitantes distraídos – nós – que a subida do nível das águas do estuário provavelmente iria afogar a viatura que tínhamos estacionado junto ao restaurante central. Reposicionámos o carro e fomos fazer o que nos levou a Noss Mayo: uma caminhada. As duas horas previstas transformaram-se em quatro, porque a cada cinco minutos era perentório parar, ficar, olhar.

Plymouth: cidades do Sul de Inglaterra de onde não apetece sair

O passeio não tem qualquer dificuldade, faz-se junto à água, o estuário do rio vai alargando à medida que se aproxima do mar. Tudo aquilo parece um quadro. O verde denso da mata, o caminho em terra batida junto ao azul da água pontuada por pequenas embarcações; nas margens, algum casario típico, uma sucessão de pequenas enseadas. Este seria um belo lugar para um empreendimento turístico com casas modernas e campo de golfe? Seria, mas noutro mundo, não neste que parece estar protegido da sofreguidão imobiliária. Enquanto caminhávamos, por nós passaram turistas e locais, estes a fazer jogging com os cães ou a andar de bicicleta. Passámos por rebanhos e manadas a pastar com vista para o mar. Noss Mayo rules!

Nada tem a ver com meio-termo o que acontece quando testemunhamos a fúria do mar a bater na escarpa, quando estamos no cimo de um penhasco e sentimos o furor do vento a bater-nos na cara, ou quando a candura do sol de inverno nos abraça, desprevenidos. O que se sente quando estes eventos têm lugar, nada tem a ver com meio-termo e ainda bem. Aristóteles que tenha paciência. O meio-termo pode ser uma seca. Cornwall está na ponta sudoeste de Inglaterra. Está no extremo do extremo e as sensações que oferece são poderosas.

De Penzance a Bude, pela costa, a paisagem é dramática e, na maior parte dos lugares, os cenários parecem tirados de filmes históricos e lendas. É o caso de Tintagel, que ganhou fama literária quando Geoffrey de Monmouth a nomeou como o lugar onde o rei Arthur nascera. Certo é que a lenda permanece viva até hoje e continua a colocar Tintagel no mapa de muitos curiosos. No vilarejo de Boscastle, que ficou praticamente destruído em 2004, pelas cheias, fizemos o que todos fazem. Estendemos o piquenique, comemos, quase adormecemos. Passaram-se três horas à velocidade de vinte minutos. Tudo baixinho, tudo tranquilo numa aldeia linda, de ruelas de pedra e casinhas recuperadas. Pessoas a passear nas margens do riacho, um violinista a embalar o momento. Uma ternura sem meio-termo.

PS: o “nosso” Drake, apesar de incompletente, era um pirata bonzinho.


Dicas

Moeda: Libra Esterlina
Fuso Horário: GMT
Idioma: Inglês
Quando ir: Em qualquer altura do ano

Como ir

Plymouth não tem aeroporto, pelo que o mais aconselhável é voar para Bristol, cidade a cerca de 200km. A EasyJet tem voos regulares a partir de Lisboa e do Porto, por cerca de 100€ (valor calculado para partidas a 21 e regresso a 28 de fevereiro de 2017). De Bristol para Plymouth há comboios diretos, praticamente de hora a hora; a viagem tem a duração de duas horas (no comboio rápido) e o preço rondará os 40€ (thetrainline.com). Caso o objetivo seja alugar um carro, a opção mais económica é, por norma, a oferecida pela EasyJet no momento da compra do voo.

Onde ficar

Moorland View Cottage
Numa pequena aldeia inserida no Parque Nacional de Dartmoor, esta casa de telhados de colmo tem dois quartos, acolhe quatro pessoas, tem uma cozinha bem equipada e é super confortável. Ideal para quem quiser passar dois dias, ou mais, a explorar o parque.
Desde 167€ (duas pessoas).
moorlandviewcottage.co.uk

The Rusty Anchor
Trata-se de um Bed&Breakfast com uma localização ótima, em The Hoe, perto do centro de comércio tradicional de Plymouth e a dois passos de Barbican. Não tem luxos, é honesto na apresentação, no conforto e no preço, desde 60€ (quarto duplo). therustyanchor-plymouth.co.uk

Onde comer

Rockfish Seafood & Chips
Entre o Plymouth Fish Market e o National Marine Aquarium, este é um restaurante descontraído para comer peixe fresco e marisco. Não falta o tradicional fish and chips. As marcações podem ser feitas online, em therockfish.co.uk.

Barbican Kitchen
Crianças com menos de 5 anos não pagam neste restaurante instalado no edifício da famosa destilaria de Gin Plymouth. A cozinha, que vive sobretudo de ingredientes locais, é liderada por dois chefes conhecidos nas lides da televisão nacional, os irmãos Chris e James Tanner. barbicankitchen.com

The Beach House
Esta espécie de cabana desgastada pelo tempo fica entre Bantham e Salcombe e é uma paragem obrigatória à beira-mar. O que por lá se come? Bolos de caranguejo, lulas crocantes e sanduíches de bacon, servidas em mesas de madeira rústica num um ambiente simpático. beachhousedevon.com

A não perder

Plymouth
Em homenagem a tudo o que conquistou, foi erguida uma estátua de Francis Drake no The Hoe. Altiva, a figura de Drake não poderia ter mais bonito lugar para passar a eternidade. A zona do The Hoe é uma das mais atrativas da cidade.
É também imperdível o histórico bairro de Barbican com as suas ruas de paralelepípedos, estreitas, e mais de 200 edifícios identificados, muitos deles Tudor (1485-1603) e Jacobean (1603–1625). Boutiques, galerias, pubs, restaurantes, tudo com os pés e as vistas voltadas para as águas calmas do porto da cidade (Sutton Harbour). Na rua principal, Southside Street, fica a casa do Plymouth Gin. A destilaria está instalada num edifício do início de 1400 e está aberta ao público para visita.

E pelas redondezas
Para além das vilas que revisitámos no texto, há outras tantas de paragem obrigatória. Em Penzance, na pontinha de Corwall, há um lindo teatro a céu aberto – o Minack Theatre. Fica numa encosta em frente ao mar cujo som serve de música de fundo para as peças que ali se apresentam. Vale a pena consultar a programação e pôr-se a caminho: www.minack.com.
De Barbican há ferries para Cawsand e Kingsand, ambas vilas super recomendáveis. De carro, desde Plymouth, o passeio revela paisagens soberbas. Mais? Kingsbridge, Salcombe, Totnes (pequena, medieval e talvez a povoação com mais oferta alternativa e saudável, sobretudo no que toca à alimentação).

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