Num ano decisivo para a Europa, o analista de política internacional Bernardo Pires de Lima faz-se à estrada para percorrer as 28 capitais da União Europeia. Depois de muitas conversas, encontros improváveis e perceções surpreendentes, vai juntar os 28 ensaios num livro. Até lá, a Eurovisão será emitida aqui, na Volta ao Mundo.
Dublin, Irlanda
Uma Londres em pequena escala, foi assim que interpretei Dublin numa primeira passagem. Depois percebi que era mais do que isso. Que tinha uma alma própria, uma vida independente, uma atração especial. Um misto de quietude com desregramento, de melancolia com sobressalto.
Como é que o urbanismo clássico e uma mistura etnográfica daquelas puderam produzir tantos escritores de qualidade, tanta literatura marcante, tão bons pintores? Foi por ser pequena, insular e ter Londres por perto, que motivou tantos a saírem, regressando ou não mais tarde, mas fazendo dessa travessia um constante compromisso com a arte, a criatividade e a liberdade interpretativa? É que poucas capitais europeias se podem orgulhar de ter visto nascer James Joyce, Samuel Beckett, George Bernard Shaw, W. B. Yeats e Oscar Wilde. Se lhes juntarmos mais umas dezenas de nomes sonantes, percebemos que não restava à UNESCO outra coisa senão atribuir a Dublin o título de “cidade da literatura”, um critério que lhe assenta bastante melhor do que a muitas outras que compõem a lista.
Por isso o meu primeiro impulso foi percorrer a O’Connel Street até às redondezas do Trinity College em busca de boas livrarias, perdendo-me nas prateleiras da Hodges Figgis, fundada no século XVIII, da Books Upstairs, da Connolly Books ou da Winding Stair. Os preços eram bastante simpáticos e a oferta variada. Mas a maior surpresa não veio de nenhuma livraria virada para a rua, mas da loja da Hugh Lane, a galeria municipal de arte moderna que vale mesmo a pena visitar, e cuja loja estava repleta de livros a menos de cinco euros, com destaque para as obras quase completas de Joyce, Wilde, Jonathan Swift, ou até de George Orwell e John Banville. E foi nesta mesma galeria que o meu destaque em Dublin apareceu sem avisar, precisamente à hora em que habitualmente dois ou três músicos se sentam no átrio da galeria para tocar Bach, Mertz, Chopin ou Liszt: o caótico estúdio de Francis Bacon.
Pintor irlandês marcado pelo traço de Picasso, pelo expressionismo de Soutine, pela lente de Eisentstein, e pelas passagens por Londres, Paris e Berlim no primeiro quartel do século XX, submergidas à guerra e ao declínio pós-imperial, tem hoje os mais de dois mil objetos que ambientam este estúdio minuciosamente catalogados e digitalizados para interpretação dos seus hábitos de trabalho e das respectivas fórmulas de criação. O que mais salta à vista é o caos calmo da atmosfera, o amontoado de tintas, pinceis, telas desordenadas, experiências pictóricas feitas na própria parede, em exercícios de composição aparentemente sem coerência, mas percorrendo um rumo lógico na cabeça do artista. A atmosfera que sai do estúdio de Bacon impressionou-me, convidando-me a entrar na sua cabeça através das cores, da confusão e da construção de uma identidade vincada. Tal qual como a que encontrei em Dublin.