Num ano decisivo para a Europa, o politólogo Bernardo Pires de Lima faz-se à estrada para percorrer as 28 capitais da União Europeia. Depois de muitas conversas, encontros improváveis e perceções surpreendentes, vai juntar os 28 ensaios num livro. Até lá, a Eurovisão será emitida aqui, na Volta ao Mundo.

Estocolmo, Suécia

É cosmopolita, aberta, misturada, aquática, arquipelágica. Sabe receber, entreter, divertir. Trata-nos bem. Gostei de Estocolmo à primeira vista, desde logo porque aprecio cidades heterogéneas nas raças e estilos, uma estética social que, apesar dos crescentes problemas com o fechamento étnico nalguns bairros limítrofes, define a conceção liberal que deve percorrer um espaço comunitário como o europeu. Infelizmente, anda por aí um certo higienismo social no ar e um autoritarismo de cacique que se vai entranhando nos sistemas políticos, dois anátemas sobre os quais nunca é demais fazer cara feia e bater o pé a tempo e horas.

Depois de subir ao Gondolen para um final de tarde com vista para a parte antiga, entrei no Fotografiska, ali junto a um dos muitos cais atarefados. O primeiro impacto deu-se com uma retrospetiva do trabalho de trinta fotógrafos sobre o universo dos cavalos e a forma como nos relacionamos com eles nas mais diversas latitudes. Mas o que vale mesmo a pena no museu é o restaurante ao nível da água com grandes janelas que simulam a estadia a bordo, com a fantástica alternativa de um passadiço que percorre a margem e convida aos últimos reflexos de luz, antes de passarmos para as ruas do bairro de Södermalm ou até aos mercados de Hötorgshallen e Östermalms.

Entre pontes e canais, ilhas e ciclovias, o dia da maratona e um corrupio de barcos de recreio, há espaços verdes suficientes para enquadrar edifícios icónicos no meio do arvoredo, num misto de mistério com a pergunta que várias vezes acabei por fazer: entro ou fico cá fora? Skeppsholmen, por exemplo, com o museu de arte moderna, o teatro Galaesen e o festival de jazz. Ou ainda em Djurgarden, com o museu nórdico e o Vasa, um incrível espaço que acolhe o único navio de guerra do século XVII existente no mundo, naufragado ao largo de Estocolmo no dia da sua estreia. A recuperação a que foi sujeito e o detalhe ornamental do restauro tornam a visita imperdível, além de contar a fantástica história da sua retirada do fundo do mar após 333 anos. É claro que a dimensão marítima, a propensão conquistadora sobre vizinhos escandinavos (sobretudo a Finlândia), a dispersão territorial pelo Mar Báltico e a geografia de segurança face ao continente (a Suécia está privada de guerras desde 1814), formataram ao longo dos séculos um modelo progressivo de engenho agrícola, industrial e político.

Aliás, foi precisamente sob o auspício da casa real Vasa que, a partir do século XVI, a máquina estatal foi projetada numa dinâmica simultaneamente burocrática, servidora e garantística. A transformação social entre agricultores reivindicativos e uma classe média mais ou menos domável acabou por caracterizar a relação entre o Estado, o poder político e a sociedade. Coligações cíclicas que evitaram o crescimento do radicalismo em alturas dramáticas do século XX e negociações permanentes entre sindicatos e patrões acabaram por moldar uma plataforma nacional de estabilidade, previsibilidade e modernização. Sem a destruição das duas grandes guerras, a Suécia pode seguir em frente com um modelo de sucesso preservado assente num dos grandes paradoxos da política contemporânea: a construção de um Estado forte como garantia da liberdade individual. Hoje, crescem as dúvidas sobre a magnanimidade do modelo, mas se ele continuar a vingar talvez só tenha existido maior feito quando o Vasa viu a luz do dia depois de 333 anos.

Texto e Fotografias de Bernardo Pires de Lima

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