Num ano decisivo para a Europa, o politólogo Bernardo Pires de Lima faz-se à estrada para percorrer as 28 capitais da União Europeia. Depois de muitas conversas, encontros improváveis e perceções surpreendentes, vai juntar os 28 ensaios num livro. Até lá, a Eurovisão será emitida aqui, na Volta ao Mundo.
Bucareste, Roménia
Não é recente, mas não deixa de ser uma variante interessante nos últimos anos em Bucareste: o regresso da «milonga», uma derivação do tango argentino, aos hábitos romenos, depois de se ter popularizado nos anos 1920 e 1930, na altura atraindo à capital artistas e curiosos de toda a região balcânica. O estatuto de «Paris do Leste» vinha certamente dessa inescapável semelhança com a traça urbanística da capital francesa, fruto de um intercâmbio cultural protagonizado pelos vários arquitetos que foram moldando a cidade, como Horia Creanga, Marcel Locar, Arghir Culina ou Marcel Janco.
Mas não só. Bucareste desenvolveu ao longo da segunda metade do século XIX uma vida cultural cosmopolita, pujante, capaz de entrar pelo século XX dentro até as duas guerras e Ceausescu terem travado o improviso, a jinga e o arrojo modernista na capital romena. O regresso da «milonga», com praticantes regulares e espaços espalhados pela cidade, trouxeram à comunidade facetas hedonistas meio perdidas no tempo, desempoeirando sobretudo os homens num espírito de comunhão social que se adquire quando se dança com estranhos. Para existir o mínimo de consciencialização política de grupo é preciso que as comunidades se agreguem, que se esbatam as distâncias e os medos, que se adquiram hábitos de reunião, discussão livre, construção de mecanismos de participação. Num certo sentido, o regresso da “milonga” põe fim ao ciclo cinzento do pós-guerra e procura equilibrar a dependência da UE, enquanto membro com dez anos de pertença, como uma propulsão endógena que alia criatividade, raízes, tradição e contemporaneidade.
Bucareste desenvolveu ao longo da segunda metade do século XIX uma vida cultural cosmopolita.
O meu ângulo sobre Bucareste nasceu daqui e devo dizer que gostei bastante do que vi. Claro que ajudou o centro histórico ter sido remodelado há três ou quatro anos, que a luz apanhada conseguisse realçar as fachadas dos edifícios, sejam de inspiração francesa ou soviética, que o rio Dambovita me acolhesse nas artérias mais congestionadas da sexta maior capital da União Europeia, e que entrasse nalguns espaços imperdíveis, como a lindíssima livraria Carturesti Carusel, o Café Verona, o Journey Pub e o museu de arte contemporânea, colado ao Parlamento, o único entre os 28 que ostenta as bandeiras da UE e da NATO à entrada.
Lá está, essa tal ideia de uma cidade que quer sair de um período de clausura para outro de luz a entrar, numa cadência que lhe restitua uma identidade abafada e tenta inverter uma percepção externa depreciativa. Por exemplo, é interessante acompanhar os novos negócios na área do design e da tecnologia, especialmente o espaço NOD Makerspace, embora as queixas permaneçam sobre o novelo burocrático, a má gestão da coisa pública, a falta de renovação política, e a cristalização de práticas pouco transparentes.
Apesar disso, há um caminho por desbravar que abre oportunidades de investimento e atenção, numa geografia que entrelaça o Mar Negro, os Balcãs e a Europa de Leste, num território de dimensão equivalente à Grã-Bretanha e que faz da Roménia o sétimo mais populoso da UE. O potencial está cá. É nestas entrelinhas da sua circunstância que 300 mil romenos saíram às ruas de Bucareste no início do ano para travar uma lei que despenalizava a corrupção. A iniciativa inverteu o processo e mostrou que há muito mais para lá da submissão e do casulo. É preciso dar força a esta geração espontânea.