Beatriz Cardoso viajou por mais de vinte países antes de decidir deixar o emprego e tornar‑se nómada. Com uma particularidade: não foi desbravar destinos internacionais, quis antes sair de Lisboa e mergulhar a fundo no país que a viu nascer.

Texto de Bárbara Cruz

Beatriz Cardoso, de 34 anos, despediu se em junho de 2014. Trabalhava em marketing e fizera o chamado «percurso tradicional»: nascida em Lisboa, tirou um curso, conseguiu emprego e esperara fazer carreira, sem se afastar muito das funções e competências que já desenvolvera. Mas o trabalho deixara de a entusiasmar. Antes de sair da empresa «sentia me a ter duas vidas dentro de mim», confessa. «O que aconteceu foi que passei a ter maior consciência do impacto que queria ter no mundo e, portanto, trabalhar em certos contextos, que não valorizam as pessoas, ou em certas empresas, que não valorizam o ambiente, deixou de ser apelativo.»

Naquele momento, decidiu que por mais incógnito que pudesse ser o futuro, certamente que iria satisfazê-la mais do que a vida que tinha em mãos. E se, até ali, tinham sido as viagens internacionais a abrir lhe os olhos para o que ainda podia conquistar no mundo, quando deixou o emprego optou por conhecer outros roteiros, mais próximos mas nem por isso mais familiares: «Queria ir conhecer o meu país e, acima de tudo, sentir que podia decidir quando e onde queria ir. Ter 22 dias de férias não dá para conhecer os sítios da maneira como queremos. Passei a integrar projetos de voluntariado de norte a sul de Portugal.»

Manteve a base em Lisboa, de onde antes saíra para várias experiências internacionais: Erasmus em Barcelona, escolas de verão em Praga, estágios em Estocolmo. Já viajara para mais de vinte países, mas garante: «Não é a quantidade que me alimenta.»

«Em Portugal somos pouco preconceituosos, apesar de nos custar admiti-lo. Liga-se mais ao que a pessoa faz do que a quem a pessoa é, o que limita a nossa liberdade comportamental.»

Em janeiro de 2016, nova reviravolta – quis deixar a capital e «andar nómada» durante alguns meses, continuando sempre a fazer projetos de voluntariado. «Não foram os chamados projetos de voluntariado convencionais», explica. «Foram experiências em que contribuí para o desenvolvimento de projetos agrícolas ou culturais em troca de alojamento e comida. Foi realmente muito enriquecedor. É bom sair da nossa zona de conforto e conhecer outras realidades e formas de estar. É tudo isto que nos constrói enquanto seres humanos», realça. As viagens que já tinha feito, acrescenta, foram o que lhe permitiu abrir se para se mostrar mais ao mundo, sem inibições. «Em Portugal somos um pouco preconceituosos, apesar de nos custar admiti-lo. Liga se mais ao que a pessoa faz do que a quem a pessoa é, o que limita a nossa liberdade comportamental. »

Antes de se fixar no Algarve, andou por Castelo Branco, visitou amigos no Porto, fez um retiro em Sintra, voluntariado em Tavira. No festival Andanças foi voluntária num restaurante vegetariano, em Dornes dedicou se à biodanza, que estimula o desenvolvimento humano através da música e da dança.

Já tinha ido várias vezes a Lagos, onde tinha a casa de férias de familiares, mas «partia sempre». No final de 2016 decidiu ficar pela cidade e, meses depois, escolheu para viver a aldeia de Barão de São João. «Seria um período de transição que me daria fôlego para decidir o que queria fazer a seguir.» Em abril de 2017 lançou o projeto Talanti (talanti.pt), que «consiste em fazer a ponte entre clientes e artistas para que estes possam criar presentes com maior valor e significado».

Se daqui a uns meses quiser mudar, assim farei. De momento não penso nisso, mas se vier a vontade será só arregaçar as mangas e fazer acontecer.

Mudar de vida, admite, permitiu lhe sobretudo «viajar de outras formas», com mais tempo, com maior reflexão na escolha dos destinos, sem estar dependente da «aprovação de dias de férias». Desde que, há três anos, deixou tudo para ser uma espécie de nómada em terras lusas, poucas foram as viagens ao estrangeiro: passou por França e foi três vezes a Espanha, participar em retiros. «Antes, como tinha mais dinheiro, viajava sem pensar muito. Agora pondero mais o que quero fazer, sinto que estou mais seletiva mas de um ponto de vista positivo.» Até porque há muito tempo deixara de ser a «turista de check list», acrescenta. «Valorizo muito uma experiência verdadeiramente local em vez de ir a determinado lugar sem perceber porque é que existe ou por que razão está referenciado como especial.»

Itália está nos planos de futuro, mas também tem intenção de fazer o Caminho de Santiago e regressar à ilha de São Miguel, nos Açores. Privilegia os destinos onde tem conhecidos, sempre, porque só assim sente que está realmente em contacto com a vida local. «É muito melhor do que o Lonely Planet», assegura com ironia.

A família, claro, ficou em pânico desde que decidiu mudar de vida e ainda hoje «não se reequilibrou. Mas eu tenho de seguir o meu caminho», explica. Sozinha, acompanhada, no campo ou na cidade, de mochila às costas. Se houve momentos em que duvidou das escolhas que fez? «Faz parte. Mas o lado bom é sabermos que nada é definitivo. Se daqui a uns meses quiser mudar, assim farei. De momento não penso nisso, mas se vier a vontade será só arregaçar as mangas e fazer acontecer.»

Para já, sabe que os projetos de voluntariado vão continuar a fazer parte do dia-a-dia. «Da me prazer ajudar e gosto sobretudo do trabalho físico, que é algo que não se proporciona nos meus projetos pessoais e sinto que me faz falta.» Quanto a iniciativas futuras, tem ideias, mas sem pressões. «O mais importante é estarmos alinhados e criarmos uma ligação entre o nosso estilo de vida e aquilo que queremos fazer. O resto acontece.»

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