O caminho marítimo para a Índia

Como são vistos os portugueses lá fora: há um povo que não gosta de nósCrónica de viagem
Ricardo J. Rodrigues

O vodka usbeque é uma zurrapa do pior mas, caramba, é difícil encontrar melhor desbloqueador de conversas em todo o território da antiga república soviética. Sobretudo por isto: o Usbequistão é um país islâmico. O que quer dizer que quase toda a gente bebe a sua bebida, mas fá-lo mais ou menos às escondidas. Em boa verdade, quando se juntam vários desconhecidos em torno de um copo, é como se estabelecessem logo ali uma cumplicidade de anos. Tornam-se companheiros de disfarce, cooperantes de uma infração irresistível.

A primeira pessoa que conheci na Ásia Central foi precisamente um passageiro que cumpria comigo a viagem de Samarcanda para Tashkent. Entre as duas maiores cidades do país – dois oásis no meio do deserto do Karakum, no antigo caminho das caravanas da Rota da Seda – preferimos ambos abandonar o desconforto dos bancos de madeira e rumar à carruagem-bar. Pedimos um vodka cada um.

Ele era um tipo alto quando comparado com os seus compatriotas, devia ter um valente metro e setenta. A meia-idade já lhe afiançava uma série de cabelos brancos e, como vestia fato e gravata, calculei que fosse a versão usbeque de um yuppie de Wall Street. «Nazdarovye», atirou-me ele. E brindámos. A conversa foi curta. Não por causa do seu inglês macarrónico, nem por falta de curiosidade pela personagem. É que, quando lhe disse que era português, o homem cuspiu para o chão e vociferou uma algaraviada usbeque, que percebi imediatamente ser tudo menos abonatória. Encolhi os ombros, que pasa, hombre? Ele, antes de me virar costas, ainda teve a delicadeza de explicar tudo: «Tu és português e o Vasco da Gama era português. Foi ele que descobriu a rota da Índia, mas por causa disso deu cabo da Rota da Seda. O meu povo era próspero, mas vocês portugueses encarregaram-se de estragar isso.»

Voltei para o meu lugar atordoado, dei por mim a pensar nas aulas de História da temível professora Odete. E nesse momento eu soube que era preciso percorrer meio mundo para perceber a importância do Caminho Marítimo para a Índia.

Ricardo J. Rodrigues, jornalista da Notícias Magazine

(Fotografia Rui Coutinho)
Crónica publicada originalmente na edição 207 da revista Volta ao Mundo.

Veja também:
Como são vistos os portugueses lá fora: peripécias nas Galápagos

Partilhar