Das nuvens de fumo a dançar sobre a água a 40 graus da Lagoa Azul ao mais antigo Parlamento do mundo, são muitas as recordações que a jornalista Helena Tecedeiro trouxe da capital islandesa. Da próxima vai ver os glaciares e os vulcões. E com sorte, as luzes do Norte.
Texto de Helena Tecedeiro
Fotografias de Leonel de Castro/Global Imagens
– «Estou, receção? Estou a tentar tomar banho e não há água quente…»
– «[Riso na voz] Há sim, basta deixar correr.»
– «Mas está a correr há imenso tempo.»
– «Sim, tem de deixar correr até cheirar a enxofre!»
– (Silêncio desconfiado) «OK, vou tentar. Obrigada.»
Foi assim a minha primeira experiência com a vida quotidiana em Reiquejavique. Ali, para tomar banho, no hotel como em casa, basta esperar que a natureza opere o milagre e a energia geotérmica, aquela vinda dos vulcões que enchem a Islândia, aqueça a água. Primeiro estranha-se mas ao fim de dois dias já nem se repara no odor acre do enxofre.
E assim se percebe rapidamente como os habitantes daquela ilha, escassos 300 mil cujo engenho explica em grande parte o seu sucesso, conseguiram tirar proveito do que de melhor por ali encontraram. Chegaram a liderar o Índice de Desenvolvimento Humano, mas foram apanhados de surpresa pela crise que obrigou a nacionalizar três dos seus principais bancos. Caíram, levantaram-se e hoje estão no 16º lugar do mesmo índice, à frente da França e do Japão. E com o desemprego pouco acima dos três por cento e uma taxa de crescimento da economia de 3,7 por cento prevista para este ano a confiança no futuro, que os islandeses já revelavam há oito anos, parece ter-se confirmado.
Agora, chega de números. Ir a Reiquejavique é sobre sensações, não estatísticas. Passados os tais oito anos, há outra caraterística da ilha que me ficou na memória. Aquela extensão de terra escura, quase negra que quem chega ao aeroporto tem de atravessar até à capital. Nem uma árvore. Ou quase. Uma aridez logo explicada com uma lição de história. Consta que, quando os vikings ali chegaram, a Islândia estava coberta de árvores e que estes se terão apressado a cortá-las para construir casas e para aquecimento. As ovelhas e a erosão dos solos garantiram que poucas ou nenhumas voltariam a crescer. Na capital, claro já há algumas, que o homem se encarrega de manter vivas.
Estamos a falar de uma cidade moderna, onde vivem dois terços dos habitantes da ilha. Em finais de outubro está frio, mas não tanto como seria de esperar na capital mais a norte do mundo. A corrente do golfo mantém um clima inesperadamente temperado para aquelas latitudes. Mas, para uma portuguesa, os termómetros um ou dois graus abaixo do zero são um choque. Mesmo que dentro de quatro paredes ninguém se lembre do frio, com o aquecimento a garantir o conforto, e, sendo assim, os cafés tornam-se um ponto de atração irresistível em qualquer passeio.
O primeiro habitante da Islândia foi Ingólfur Arnarson. Chegou no ano 874 ao que hoje é Reiquejavique.
Lá dentro, novo confronto com a realidade de Reiquejavique: famílias, sobretudo mães, algumas bem jovens, com vários filhos pequeninos. Ali o café não é um sítio para os adultos onde as crianças podem estar por favor. Há pufes, brinquedos, livros à mão para os mais pequenos se entreterem enquanto as mães conversam e leem também.
As conversas abafam os gritos dos miúdos que correm pelo meio das mesas sem que isso pareça importunar ninguém. Na rua já me tinha cruzado com estas mães que não hesitam em enfrentar o frio com os carrinhos de bebé e com os mais velhos agasalhados sem exageros. O inverno está só a começar, os dias vão chegar a ter apenas quatro horas de luz e as crianças não vão deixar de fazer a sua vida por causa disso.
Cafezinhos, restaurantes, bares, lojas e muito mais concentram-se na Laugavegur, a rua principal de Reiquejavique. Aqui há pequenas livrarias cheias de charme e de recantos onde só apetece ficar horas sentado a ler um bom livro. Os amantes da leitura que prefiram a quantidade só têm de ir até à Baixa da cidade, onde nasceu Halldór Laxness, Nobel da Literatura. É lá que estão livrarias que se estendem por vários pisos onde, então – como imagino que ainda hoje –, se podiam encontrar livros de outro Nobel, o português José Saramago.
Com o vapor do aquecimento público a sair fantasmagórico de dentro de chaminés e a neve a não durar muito no chão (aquecido pelos canos que trazem a mesma energia geotérmica que aquece a água do banho), uma ida à Baixa obriga a passar pelo Halpingi, o Parlamento. Mas primeiro um cappuccino num café cheio de estilo, com uma decoração a fazer lembrar os salões vienenses e onde não se avistam crianças. Pela janela avistam-se, sim, os tijolos negros do Parlamento.
O edifício é tudo menos imponente e ninguém adivinharia que é o herdeiro do mais antigo Parlamento do mundo, fundado em 930 como uma assembleia geral de donos das terras, entre eles o filho de Ingólfur Arnarson, o primeiro colono a instalar-se na Islândia e fundador de Reiquejavique.
Foi ali, diante do Halpingi, que os islandeses se juntaram há oito anos para exigir que os políticos pagassem pela crise que levara os seus bancos. E conseguiram, com a Islândia a tornar-se o único país do mundo onde o presidente foi preso devido à má gestão que fez da crise financeira. E seria ali que, no ano passado, se voltariam a juntar mais uma vez para exigir responsabilidades após os Papéis do Panamá revelarem que o seu primeiro-ministro estava envolvido com uma sociedade offshore. De novo houve vários políticos mundiais envolvidos, mas o líder islandês foi o único a sofrer as consequências dos seus atos, tendo sido obrigado a demitir-se. Inspirados nas assembleias do passado, os islandeses já provaram que quando elegem um político irão de seguida exigir-lhe que corresponda à confiança que depositaram nele e assuma as suas ações.
Da baixa para a alta
Quando se olha para o horizonte de Reiquejavique, a Hallgrimskirkja destaca-se. E subir a essa igreja em forma de foguetão é obrigatório para qualquer visitante da capital islandesa. Esteja-se de férias ou em trabalho. Do alto dos seus 73 metros e erguida numa colina, a Hallgrimskirkja domina a cidade. A vista é de cortar a respiração, mesmo quando se encontrava coberta de andaimes e era preciso desviar o olhar dos ferros e das redes verdes para avistar lá em baixo o lago Tjörnin com a sua superfície gelada ou ao fundo o monte Esja coberto de neve. Um ex libris em obras num país ele próprio em renovação.
O inverno está só a começar, os dias vão chegar a ter apenas quatro horas de luz e as crianças não vão deixar de fazer a sua vida por causa disso.
Sem muito tempo para sair da cidade, não podia, no entanto, deixar de ir à Lagoa Azul. O nome pode soar a filme com uma Brooke Shields novinha e com pouca roupa, mas o que esconde é uma maravilha da natureza. Pelo caminho, seguimos as rochas negras cobertas de neve. Quando se chega e se veste o fato de banho – já a pensar que vamos ter de atravessar os poucos metros entre os balneários e a lagoa a correr com a temperatura a rondar os dois, três graus negativos –, o estômago fica contorcido de expetativa. Aberta a porta, e depois do choque térmico, o espetáculo diante dos meus olhos não desilude. Nuvens de fumo rodopiam sobre uma lagoa rodeada de neve.
Já é de noite. Respiro fundo. Dou uma corrida entro na água. 40 graus. Está a 40 graus. Mergulho e volto a meter a cabeça de fora. Cheira um pouco a enxofre, um odor associado ao inferno mas que aqui se torna sinónimo de paraíso. Encosto-me ao bordo e ali fico, pasmada diante da minha sorte e da dos islandeses. Só o repuxar do cabelo, que começa a congelar e a criar uma espécie de capacete, me recorda de mergulhar mais uma vez. E outra. Até serem horas de ir embora. Muito a contragosto. Podia ficar aqui o resto da vida, de molho e sem fazer mais nada a não ser olhar as nuvens de fumo a avançar sobre a água quente.
A natureza pode ser genial, mas as pessoas são a verdadeira mais-valia de Reiquejavique. Em 2008, em plena crise que deixara alguns com dificuldade em pagar os empréstimos, o otimismo não desaparecera. Sim, os quatro períodos de férias anuais se calhar iam ter de passar a dois, as festas com champanhe e caviar iam dar lugar a Coca-Cola e piza (ou um bife de baleia, que continuam a pescar), brincavam os islandeses, mas quem vivia em Reiquejavique sabia que tinha tudo para recuperar e sair por cima. A educação, as condições económicas, tudo. Um otimismo que contagiava até quem vinha de fora. Como os amigos portugueses que tinham um restaurante de tapas na Baixa. Tapas espanholas com sabor português e muitas saudades de casa.
Passada quase uma década, a Islândia voltou a ser uma história de sucesso. Eu prometo voltar para uma visita que inclua os glaciares e os vulcões (e, com sorte, as luzes do Norte) que não vi da primeira vez neste paraíso com cheiro a enxofre. E, sim, vou voltar à Lagoa Azul.
Helena Tecedeiro
Nasceu em Évora em 1980. Viveu na Suíça, em Lausanne, até 1994, altura em que regressou a Portugal, tendo feito o ensino secundário em Montemor-o-Novo. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, entrou como estagiária no Diário de Notícias em 2003, na secção Internacional, da qual foi editora adjunta. Editora executiva adjunta para o online, Internacional e Artes entre 2011 e 2014, assume desde então a editoria da secção agora chamada Mundo. Esteve em reportagem em países como a Malásia, Israel, Omã ou Cabo Verde. Foi enviada à Islândia em outubro de 2008, na sequência da crise económica.