A expedição Volkswagen California leva-nos pelas ilhas Lofoten mas também pela história do século XX. É o melhor da Noruega, com direito a condução na neve, surf no Ártico, pesca do bacalhau e, claro, auroras boreais. Para ler aqui e ver os episódios da Volta ao Mundo na televisão – RTP.
Texto de Ricardo Santos
Fotografia de Achim Hartmann
Numa das estantes da sala de estar de casa dos meus pais havia um livro de capa dura vermelha e lombada azul-escura. Contava a história da corrida para ser o primeiro homem a alcançar o Polo Sul. Deve ter ali chegado da mesma forma que muitos outros livros em nossa casa – e na casa de tantos portugueses na década de 1980 – através do senhor do Círculo de Leitores que todos os meses nos batia à porta. Trazia uns e levava encomendas de outros.
Aquele foi o primeiro livro de gente crescida que li. Não tinha bonecos, com exceção de uma outra ilustração científica e dois ou três mapas ao longo de mais de duzentas e tal páginas. Falava da maior aventura do século XX, a última grande fronteira conquistada quando ainda não se pensava no espaço. Antes disso, a minha vida passava pelos heróis de ficção: de Astérix a Tintin, de Robinson Crusoe a Conde de Monte Cristo. E, de repente, Roald Amundsen e Robert Falcon Scott tiraram-me o sono das noites e levaram-me à conquista do Polo Sul. Cerca de 35 anos depois voo para o lado oposto, em direção ao Polo Norte, mas ao encontro da herança de um dos meus primeiros heróis de carne osso, o norueguês Amundsen. O avião vai perdendo altitude à medida que nos aproximamos de Bodo, a porta de entrada no arquipélago norueguês das Lofoten. Do ar veem-se ilhas e mais ilhas, rochosas, cobertas de neve. A primavera está a chegar ao fim, mas não há flores à vista. Afinal, estamos no Norte da Noruega, já no Círculo Polar Ártico, e só mais para a frente no calendário poderemos apreciar a paisagem sem o manto de gelo.
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Bodo tem cerca de 50 mil habitantes e foi destruída durante a II Guerra Mundial pelos ataques das forças alemãs. É nesta região que passa uma das mais fortes correntes de maré do planeta (os habitantes locais dizem que não há outra assim no mundo), a Saltstraumen. A cada seis horas, cerca de 400 milhões de metros cúbicos de água passam no estreito de três quilómetros de comprimento e 150 metros de largura, por baixo de uma ponte e bem perto dos fiordes. Há quem venha de todo o mundo para testemunhar a força do mar. Outros vêm para pescar. Bacalhau, entre outras espécies.
Bodo é uma cidade pequena. Do aeroporto ao centro são dez minutos a pé. Tentamos equilibrar as malas com rodinhas na estrada que é uma mistura de alcatrão, gelo e lama. Estamos a hora e meia de avião de Olso, a capital. O plano passa por dormir uma noite aqui antes de apanhar o ferry que percorre a grande «autoestrada» do país, a costa do mar da Noruega.
Baleia fumada, cerveja local e umas tapas à espanhola servem de jantar numa noite fria durante a semana. O termómetro na rua marca dois graus negativos, mas a sensação real é bastante inferior. Talvez por nessa altura estarem cerca de 25 em Portugal. Talvez porque os povos do Sul da Europa não estejam habituados a este clima. Ou talvez porque há um ditado norueguês que faz todo o sentido: «O mau tempo não existe, o que há é roupa má.»
Bodo está rodeada por montanhas e pelo mar. É um centro turístico, ponto de partida para as Ilhas Lofoten e para os parques naturais. Pesca, espeleologia e canoagem são atividades a não perder.
Céu azul à saída de Bodo é bom sinal para um dos objetivos desta expedição Volkswagen California. A ausência de nuvens é desejável para a noite. É com céu limpo que poderemos ver as auroras boreais na sua imponência. Os carros estão alinhados, à nossa espera. Cheiram a novo. São veículos pensados para duas a quatro pessoas, uma evolução lógica da mítica pão de forma, um ponto de encontro entre o espírito dessa carrinha mítica e as linhas da Transporter, outro dos modelos da marca alemã. Isto é tudo muito bonito para se tentar entender aquilo que se vai ter nas mãos para esta experiência de condução nas ilhas Lofoten, mas, na verdade, a Califórnia é a Califórnia.
O ar condicionado está ligado – no quente, claro -, o GPS já marca como destino o porto de Bodo e há uns flocos de neve que vão caindo pelo caminho. Cerca de dez Volkswagen California cruzam as estradas da cidade, estacionam no parque do supermercado, para comprar mantimentos e seguem viagem até às entranhas do Finnmarken, o navio que nos irá levar a Stamsund, nas Lofoten.
O percurso completo deste ferryboat é de 11 dias, passando por mais de 30 portos. É a tal autoestrada que permite a ligação entre o Norte e o Sul da Noruega. Temos pouco mais de quatro horas de viagem pela frente e já devemos chegar à noite. Anita é a diretora do cruzeiro. Para quem está na casa dos 40 (ou mais) a primeira associação é à série televisiva Barco do Amor (um sucesso de 1977 a 1986), em que a personagem Julie (a atriz Lauren Tewes) exercia as mesmas funções. Anita é uma Julie, com idade aproximada à que a atriz tem hoje, 63 anos. E faz-nos rapidamente um retrato da Noruega: 5,1 milhões de habitantes, 900 mil turistas por ano nas Lofoten, 50 mil ilhas, água do mar à temperatura de cinco graus e a distância de norte a sul do país é igual à distância de Oslo a Roma, a capital italiana.
O resto são pormenores para ir descobrindo aos poucos com outro membro da tripulação – Oivind Carstens. Desta vez sem analogias a séries televisivas. É o Hotel Manager do ferry, que é uma combinação entre navio de cruzeiro e de transporte de mercadorias. De norte para sul levam peixe e marisco, de sul para norte, os bens de primeira necessidade para abastecer as populações.
Na ponte, de onde se controla o avanço da embarcação, a vista para as encostas geladas é ainda mais impressionante. A companhia tem navios também na Antártida, garantindo 35 por cento de mercado no Polo Sul e sendo líderes na região onde nos encontramos, a dois mil quilómetros do Polo Norte. O dia começa a chegar ao fim, tal como este troço da viagem. Em poucos minutos estaremos em Stamsund, ao volante da Califórnia. Ainda não é época de sol da meia-noite (só de maio a agosto) e há 35 quilómetros para percorrer desde o porto até ao local do churrasco. Estão cinco graus negativos e ninguém acha estranha a ideia de ir agora para a praia.
A condução é com cuidado, os pneus são de neve e tudo fica mais seguro. A estrada é
sinuosa e conseguimos perceber os contornos das montanhas, mesmo com frio. Em determinados pontos do percurso, temos o mar ao lado. E lagos. Em ambos os casos, congelados. As luzes das casas de madeira ajudam a perceber melhor o caminho. O GPS indica que estamos cada vez mais perto de Unnstad.
Estacionamos a poucos metros do Ártico. Ouvem-se as ondas ali perto, a menos de cem metros. No areal estão três mesas montadas e uma fogueira acesa. Distribuem-nos casacos compridos e lá vem outra vez à ideia o ditado da «roupa má». Frio não entra, com a ajuda de vinho quente e de cerveja gelada. Obviamente, não é necessário frigorífico: as garrafas enterradas na neve ficam na temperatura perfeita. E hoje já não há condução. O céu tem estrelas e nuvens e a possibilidade de ver uma aurora boreal começa a aumentar. O guisado de vegetais e a carne grelhada na brasa sabem ainda melhor com essa possibilidade no horizonte. Portugueses, italianos, israelitas, suecos, alemães e checos – todos parte da expedição Volkswagen California – já repetem o jantar quando a magia acontece.
Dizem os livros e os especialistas que a aurora boreal é um fenómeno ótico que acontece nas regiões polares, decorrente do impacto de partículas de ventos solares e de forças eletromagnéticas.
As ilhas Lofoten fazem parte da região de Nordland. Estão situadas no Círculo Polar Ártico e assemelham-se a um paredão rochoso que se estende por cerca de cem quilómetros em pleno oceano.
Estes acontecimentos terão sido batizados assim pelo astrónomo italiano Galileu Galilei, no início do século XVII. Na teoria, tudo faz sentido. Nos documentários e nas fotografias, as imagens são surpreendentes. Ao vivo, é outra coisa. É assistir a um espetáculo que não está ao alcance de todos. Quando o céu ganha estas ondas verdes, ao frio, com uma cerveja gelada na mão e o mar à beira dos pés, tudo parece saído de um sonho. Parece cenário.
Está feita a noite, depois de um dia cansativo. É tempo de ligar o aquecimento estacionário da California que nos irá manter confortáveis durante toda a noite. Em menos de dois minutos, os assentos estão rebatidos e as camas feitas. Uma no tejadilho elevado, outra no habitáculo, cada uma para duas pessoas. Os corta-luz são colocados nas janelas, neve de forma intensa lá fora e a banda sonora para dormir é a mesma que se ouve ao acordar: as ondas.
São seis da manhã e já há gente na água. Os fatos são obrigatórios e só os mais corajosos se aventuram no mar com a prancha. A enseada de Unnstad tem uma montanha a protegê-la. Não é uma visão normal, esta do surf com neve e gelo. Os veículos continuam nas mesmas posições e só com a luz do dia se tem a real noção do local onde estamos. Há umas dezenas de surfistas na água, dos mais experientes (um campeão do mundo) aos mais aselhas (jornalistas convidados). E quase todos conseguem o seu objetivo: contar aos netos que, um dia, surfaram no Ártico.
Surf e Ártico até podem parecer duas realidades que não combinam, mas não é bem assim. À Baía de Unnstad chegam todos os anos centenas de praticantes com um objetivo em mente: apanhar ondas no Círculo Polar.
Com a prova superada, outro desafio se impõe a quem faz parte da expedição. São mais 58 quilómetros de viagem até Henningsvaer. Pequenas aldeias, baías, pontes que ligam ilhas, túneis que rompem o oceano, passamos por tudo. Esta é uma paisagem que não pode ser comparada com mais nada. No conforto e no quente do carro, nem se sente o que vai lá fora, mas essa qualidade de vida tem minutos contados. É que chegamos a um porto e apanhamos um barco de pesca para perceber melhor a relação entre norueguesas das Lofoten e Portugal. É isso mesmo, o bacalhau.
O mestre da embarcação pede-nos para vestir os oleados. E ainda bem. Têm forro por dentro e ajudam a cortar o frio. As mãos, geladas, não precisam de luvas, só de uma cana com um carreto. No fim da linha está uma amostra colorida com anzóis.
«Agora, deixem-na ir até ao fundo do mar. Quando lá bater, puxem um pouco a linha e… Esperem.» O conselho não podia ser mais acertado. Dois minutos depois, um passageiro sueco saca o primeiro bacalhau. Não era triangular, nem seco, nem salgado. É um peixe acastanhado com pintas. Passa mais meia hora até o segundo peixe chegar à superfície. Desta vez a sorte coube a um português. «Aquilo que apanharem é aquilo que jantam», avisa o pescador norueguês. Há um olhar de troça entre os presentes: dois peixes para 12 pessoas e o apetite a aumentar.
Voltamos ao cais e temos mais uma hora de caminho até Sorvagen. Além das inúmeras estruturas de seca do bacalhau, esta é a terra do restaurante Maren Anna, onde a chef Anette Morrison se prepara para dar corpo ao peixe apanhado ao fim da manhã. Há tempura de língua de bacalhau, peixe com batatas e puré de cenoura e molho de vinho branco. Continua a não haver álcool para ninguém, exceto o do molho. É que a Volkswagen California ainda tem mais meia dúzia de quilómetros para fazer até ao último poiso, um parque de campismo e caravanismo junto ao porto. E com os alemães não se brinca.
Na manhã seguinte, às seis, estaremos de volta ao ferryboat e, depois, a Bodo. Quando os tripulantes da embarcação estiverem a içar a bandeira da Noruega a bordo, com a silhueta das montanhas geladas das ilhas Lofoten como cenário, quase como uma muralha de gelo, ficam para trás dias inesquecíveis de condução e descoberta em condições inóspitas. Uma lição para quem pensa que o paraíso é só praia, calor e água quente.
Roald Amundsen, o herói polar, sabia do encanto do frio. Cresceu com ele. O explorador norueguês não se limitou a ser o primeiro homem a chegar ao Polo Sul, em 1911, vencendo um Robert Falcon Scott que não voltaria a casa para contar a sua história.
Roald Amundsen não descansou enquanto não foi também o primeiro homem a sobrevoar o Polo Norte, numa corrida igualmente polémica que ainda há quem teime que não venceu. Fê-lo em 1926 e perdeu a vida por aqui, dois anos depois, quando o avião em que seguia desapareceu, a chegar a Svalbard, território bem a norte da Noruega. O explorador andava em missão de resgate e de busca de um grupo de exploradores. Todos acabaram por perder a vida.
O livro da sua maior aventura, a outra, a do Polo Sul, continua lá em casa, na estante da casa dos meus pais.