A menos de uma hora de carro de Lisboa, há uma cidade que sabe manter a identidade alicerçada na Escola Superior de Arte de Design. O reavivar da tradição artística num sítio onde parece estar sempre algo a acontecer.
Texto de Miguel Judas
Fotografias de Orlando Almeida/ Global Imagens
É uma tradição que se mantém desde o século XVI, quando o local hoje conhecido como Praça da Fruta foi, segundo a lenda, cedido pela rainha D. Leonor aos agricultores da região, para ali venderem os produtos. Desde então, nunca mais o mercado deixou de se realizar. Todos os dias, desde manhã bem cedo até à hora de almoço, lá estão as coloridas bancas de fruta e legumes, com as vendedeiras a elogiar os clientes, numa imagem de outros tempos que decerto teria agradado ao pintor José Malhoa, o «pai do naturalismo português» – também ele natural das Caldas da Rainha –, que lhe dedicou um museu.
Igualmente de visita obrigatória é o Museu da Cerâmica, outra tradição antiga da cidade, elevada à condição de arte pela mestria de Bordalo Pinheiro, nas últimas décadas do século XIX. Ambos os museus ficam no Parque D. Carlos, o jardim romântico construído junto às termas, por essa altura ponto de encontro de gente abastada de todo o país, que ficava hospedada no Grand Hotel Lisbonense, encerrado nos anos 1970, mas há sete anos ressuscitado como Silver Coast Hotel pelo grupo Sana.
E tal como o velho hotel, que de repente recuperou o brilho, também a cidade voltou a ganhar um lugar central no panorama artístico nacional, com a abertura, no início dos anos 1990, da Escola Superior de Arte e Design. Muitos alunos que daí saem estabelecem-se depois nas Caldas da Rainha, perpetuando a movimentação artística no dia-a-dia da cidade, em exposições, concertos e performances, mas também nas lojas e nos restaurantes. Como acontece nos arredores da Praça da Fruta, onde os bonitos edifícios românticos albergam lojas como o Granel da Rainha ou a Venda, que reinventam a tradição.
A primeira é uma mercearia de alimentação saudável, onde, como o nome indica, tudo é vendido a granel, enquanto a segunda é «uma loja de coisas simples», como a define o proprietário, o designer Pedro Cardoso. Chegou há cinco anos vindo de Coimbra, para se estabelecer nas Caldas com a mulher, a arquiteta Ana Cotrim, «em busca de qualidade de vida». Nas prateleiras, à mistura com brinquedos vintage e jogos tradicionais, há posters, impressões e art cuts de produção própria, lado a lado com imaginativas peças de cerâmica de marcas emergentes, como o Laboratório de Histórias. «O nosso objetivo, quando abrimos a loja, era vender apenas aquilo que queremos e de que gostamos», explica Paulo.
O Leef é restaurante, pastelaria e café. A nota orgânica está presente em todos os produtos. Combina filosofia e alimentação.
A razão para abrirem a loja aqui? A qualidade de vida, a mesma que Nuno Francisco aponta como justificação para ter estreado o Leef, um espaço de alimentação saudável, que é ao mesmo tempo restaurante, pastelaria e café. «Aqui é quase tudo orgânico e confecionado sem açúcares refinados, óleos ou farinhas de má qualidade», garante Nuno. Uma «mistura de desporto, alimentação e leitura» trouxe-o até aqui e agora assume como missão «partilhar com os outros esta filosofia de vida».
Fazer escola
Quando, em 2009, abriu o Maratona, José Vale também estava a criar algo novo. O restaurante, outrora casa de jogos, famosa pela pista de carros elétricos, é hoje uma das referências das Caldas. Pela comida, mas também porque às vezes se transforma em sala de concertos, galeria de exposições ou salão de festas animadas por DJ locais. «Somos uma própria extensão da vida da cidade», afirma o sócio-gerente desta casa «informal chique», mas «acessível a todos e com um lado pedagógico». O menu baseia-se em produtos da região e de época, trabalhados de forma imaginativa pelo chef Ricardo Ferreira. «Oferecemos algo mais e alargamos horizontes», afirma José, que a cada estação deixa os clientes escolher os pratos da nova lista. Mas há alguns clássicos, como o queijo de cabra assado com figos, nozes e redução de vinho do porto, a barriga de leitão a baixa temperatura com molho de pimentas, puré de castanhas e risoto frito de cogumelos ou a sobremesa fetiche de chocolate – petit gâteau de chocolate com gelatina de tangerina, sorvete de toranja e laranja cristalizada.
A autarquia criou, há vinte anos, o Centro de Artes, onde estão diversas infraestruturas de apoio aos artistas.
Nos anos 1990, as Caldas foram uma das capitais da música alternativa nacional, quando bandas como Tina and the Top Ten, Red Beans ou Orange atraíram os holofotes para oeste. Hoje, os principais embaixadores do rock caldense são os Cave Story, uma banda que já passou por festivais como Paredes de Coura e NOS Alive e recentemente criou a editora Hat-Size, para promover outros projetos musicais da região. «A banda deu-nos a experiência necessária para avançar», diz Gonçalo Formiga, guitarrista e vocalista dos Cave Story, sentado a uma mesa do Café Central – outrora um local de conspiração contra a ditadura, hoje bem mais conhecido pelo unicórnio desenhado por Júlio Pomar numa das paredes. «Há uma grande diferença entre ser músico nas Caldas ou em Lisboa. Temos de tocar muito aqui, para conseguir chegar às salas da capital, que para nós está lá longe», explica. Talvez isso ajude a explicar a preenchida agenda de concertos que semanalmente está disponível nas Caldas. Alguns organizados pelos próprios Cave Story, em parceria com associações locais, como o Grémio Caldense.
A arte de fazer pão
Aberta há pouco mais de quatro anos, a padaria Forno do Beco já entrou em definitivo no dia-a-dia da cidade, como comprovam as longas filas à porta do pequeno estabelecimento, especialmente ao final do dia, para comprar o «pão cem por cento centeio» ou o pão preto, de espelta, ou o de barbela, «uma tipologia de trigo antiga, moído em mó de pedra», mas também os croissants e as arrufadas, que Paulo Santos faz, todos os dias, à moda antiga.
O segredo do sucesso, revela, reside «no tempo» e no «respeito pelo processo e pela matéria-prima». A massa é feita com dois dias de antecedência, com recurso a leveduras próprias, algumas já com cinco anos. «Há toda uma ética presente no meu trabalho. Só faço aquilo que quero e tem de ser saudável», sublinha Paulo, que está agora a tirar um mestrado em Artes Plásticas, na ESAD, para «aprender a pensar a profissão de padeiro como um processo criativo».
Apesar da pomposidade do nome, o Grémio mais não é do que um «coletivo informal», criado por um grupo de amigos, que nos últimos tempos tem marcado a movida local. São eles Francisca Venâncio, Nayara Siler, Patrícia Rijo, Ricardo Pimentel e Susana Valadas. «Apenas um é natural das Caldas e outros três são antigos alunos da ESAD», explicam, à mesa do Charrua, o popular restaurante do senhor Brito, desde há muito uma espécie de casa para várias fornadas de finalistas da escola de artes das Caldas – merece também uma visita pelos bifes e pelo caril de camarão. Foi ali, naquelas mesas, que foram planeadas algumas das primeiras das iniciativas do Grémio, hoje sediado no antigo Hotel Madrid. «Temos uma programação feita por um grupo e não por um espaço» – em pouco mais de dois anos já organizou mostras de cinema, sessões de poesia, exposições de desenho, noites de jogos de tabuleiro e concertos, em locais como o Museu Malhoa, o Céu de Vidro ou o restaurante Maratona. «Estamos numa posição estratégica entre Lisboa e Porto, perfeita para atrair bandas em digressão», refere Ricardo, dando como exemplo os Concertos Faroeste, ciclo de e de câmara, com regularidade mensal.
De faltar público também Patrícia Faustino não se pode queixar, nas exposições organizadas através da Electricidade Estética, outro «coletivo informal» da cidade, neste caso apenas formado com Gonçalo Belo, que conheceu no curso de Belas-Artes da ESAD. «Foi um projeto surgido da vontade de criar o que não existia. Queríamos expor mas não havia espaços e começámos a fazê-lo em garagens e casas de amigos», recorda. Chegam a reunir quatrocentas pessoas por noite, «algo maravilhoso e só possível de acontecer nas Caldas», garante a programadora, que, de 13 a 24 de abril, organizou o Ciclo Primavera, com exposições individuais espalhadas pela cidade, cada uma com duração de apenas duas horas.
Novos ninhos de criatividade
«Nas Caldas pode-se fazer tudo e criar-se o que quisermos», disse um dia, ao visitar a cidade, o pensador inglês Charles Landry, o criador do conceito de «cidade criativa», surgido no final dos anos 1980. A frase está afixada numa das paredes dos antigos silos de cerais da cidade, que Nicola Henriques, antigo aluno da ESAD, ajudou a transformar num dos mais recentes polos criativos da cidade. «Somos uma incubadora informal», explica. Nicola foi um dos primeiros a entrar na antiga moagem, quando os estudantes da ESAD começaram a usar o local como sala de exposições. O edifício alberga hoje também um bar, palco habitual de exposições, performances e concertos, estando prevista a abertura de um hostel.
A câmara criou, há cerca de duas décadas, o Centro das Artes, que integra também diversas infraestruturas de apoio a artistas. É lá que trabalha Vítor Reis, um ceramista que tem ajudado a renovar a tradição da cidade nesta arte. Define o seu trabalho como «cerâmica de autor», que vende «maioritariamente online», destacando peças como o prato Polvo, concebido para o restaurante algarvio Ocean.
Algumas portas ao lado fica o espaço de Nuno Bettencourt, um ilustrador e professor de Serigrafia há muito radicado nas Caldas, onde organiza eventos como a Galdéria, «projeto nacional de ilustração, já com 17 anos» ou a mostra de artes visuais Maga, que se realiza anualmente em novembro. «Existe um movimento associativo muito forte nas Caldas da Rainha, que tem como motor a escola de artes e faz que pareça estar sempre a acontecer algo», diz Nuno. A razão principal para que tal aconteça «tem que ver com a pequena dimensão da cidade, que continua a funcionar como um bairro onde todos se conhecem e com «um sentido de comunidade já raro noutros locais».
Esse sentido de proximidade sente-se também na Casa Antero, uma instituição da cidade. Aberta há mais de cinquenta anos, pelos pais de Paulo, o atual gerente, começou por ser uma taberna, «onde só se vendia vinho e os clientes traziam o petisco».
Foi Paulo quem, há cerca de 15 anos, mudou o espírito da casa, transformando-a numa tasca de nova geração, muito tempo antes de isso se tornar tendência. «As pessoas confiam em nós e na maior parte das vezes comem o que sugerimos», diz Paulo, antes de começar a servir um sem-fim de petiscos: cestinho de alheira com grelos e ovos de codorniz, croquete de carne recheado de queijo da serra ou o muito popular preguinho em bolo do caco com manteiga de alho e queijo de Idanha. Por vezes, a tasca do Antero transforma-se também em sala de exposições, às quintas há música ao vivo e as noites de sexta costumam ser animadas pela música de um DJ convidado. «Somos uma cidade de artes, não há como escapar.»
Caldas da Rainha
Padaria Beco do Forno
BECO DO FORNO, 8
TEL.: 262980190
Facebook: Beco do Forno
Das 07h00 às 19h00. Não encerra.
Comer e beber
Casa Antero
BECO DO FORNO, 7
TEL.: 262835089
Facebook: Tasca do Antero
Das 09h00 às 23h00. Encerra ao domingo.
Preço médio: 15 euros
Maratona
PRAÇA 25 DE ABRIL, 15
TEL.: 262841483
Web: maratona-cafe.pt
Das 12h00 às 15h00 e das 19h30 às 00h00; sexta e sábado, até às 01h00. Encerra ao domingo.
Preço médio: 25 euros
Charrua
RUA ENGENHEIRO CANCELA ABREU, 5
TEL.: 262836383
Das 09h00 às 00h00; sexta e sábado, até às 2h. Encerra ao domingo.
Preço médio: 12 euros
Leef
RUA ALEXANDRE HERCULANO, 38 A
TEL.: 262096470
Web: facebook.com/leefyourlife
Das 09h00 às 19h00; sexta e sábado, até às 23h00. Encerra ao domingo.
Preço médio: 15 euros
Café Central
PRAÇA DA REPUBLICA, 69
TEL.: 262180147
Web: central-caldas.com
Das 08h00 às 19h30; domingo, até às 19h00. Não encerra.
Ficar
SANA Silver Coast Hotel
AVENIDA DOM MANUEL FIGUEIRA FREIRE DA CÂMARA
TEL.: 262000600
Web: silvercoast.sanahotels.com
Quarto duplo a partir de 68 euros por noite (inclui pequeno-almoço)
Comprar
A Venda
LARGO DR. JOSÉ BARBOSA, 8
TEL.: 262833215
Web: avenda.pt
Das 10h00 às 13h00 e das 15h00 às 18h00. Encerra sábado à tarde e ao domingo.
Granel da Rainha
PRAÇA DA REPÚBLICA, 81
TEL.: 918192891
Web: facebook.com/rainhagranel
Das 08h00 às 19h00; sábado, até às 14h00; domingo, até às 13h00. Não encerra.
Visitar
Museu José Malhoa
PARQUE D. CARLOS I
TEL.: 262831984
Web: facebook.com/museujosemalhoa
Das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30. Encerra à segunda.
Entrada: 3 euros
Museu da Cerâmica
RUA ILÍDIO AMADO
TEL.: 262840280
Web: facebook.com/museuda.ceramica
Das 10h00 às 18h00. Encerra à segunda.
Entrada: 3 euros
Silos, Contentor Criativo
RUA FILINTO ELISIO, ANTIGA MOAGEM CERES
TEL.: 912288809
Web: facebook.com/silos.contentorcriativo
Das 08h00 às 23h30. Encerra ao domingo.
Centro de Artes
RUA DR. ILÍDIO AMADO
TEL.: 262840540
Web: facebook.com/centro.artes.cr
Das 09h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30; fim de semana, das 09h00 às 13h00 e das 15h00 às 18h00. Encerra à terça.
Fim de semana apoiado por revista Evasões
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