Talvez a própria China seja como um destes comboios bicudos de alta velocidade. A primeira vez que estive na Estação Sul de Pequim foi há menos de dez anos e, no entanto, ao regressar agora, tudo mudou. Já não existem aqueles homens e mulheres do campo, com pele queimada pelo sol ou, pelo menos, já não carregam aqueles sacos de serapilheira às costas. Continua a haver uma imensa multidão sem tréguas, milhares de pessoas, famílias de muitas gerações, gente no meio do caos a comer qualquer coisa. Depois de passar pelo controlo de metais, procuro a linha de onde sairá o meu comboio, confirmo o código. Há saídas para Xangai a cada cinco ou dez minutos. Tenho tempo e decido comer qualquer coisa também, contorno gente inclinada sobre malas de viagens escancaradas no chão, contorno centenas de crianças com uniformes escolares, contorno uma mulher a vestir um par de calças sobre umas calças de pijama. Entro numa fila para comer massas com caldo picante de Sichuan, são nove e meia da manhã.
Era assim que imaginávamos o futuro quando víamos séries de ficção científica nos anos noventa. Entram e saem multidões.
Não é difícil encontrar o meu lugar no comboio. Ao comprar o bilhete, foi-me explicado onde estavam indicados os números que precisava de saber. Ao fim de alguns dias na China, não entendendo a língua, ganha-se uma atenção especial aos detalhes, pequenas informações podem fazer muita diferença mais tarde. Vou à janela. Durante seis horas, poderei assistir à paisagem. O comboio ganha movimento e, em poucos minutos, ultrapassa os 300 quilómetros por hora. Se a velocidade não estivesse exposta num letreiro eletrónico, seria difícil perceber que vamos tão depressa. Lá longe, os últimos edifícios de Pequim passam lentamente no horizonte. Dentro do comboio, sentadas ou de pé, as pessoas falam bastante alto umas com as outras ou ao telefone, arrotam às vezes, algumas escarram para dentro dos sacos de enjoo. Os meus vizinhos de banco têm fome, decidem comer qualquer coisa que cheira ativamente a alho, parecem ervilhas secas cobertas por calda de alho, e talvez sejam, são oleosas.
A distância entre Pequim e Xangai é cerca de 1300 quilómetros. Ao longo do caminho, paramos em muitas estações, sempre modernas, sempre com arquitetura inovadora. Era assim que imaginávamos o futuro quando víamos séries de ficção científica nos anos noventa. Entram e saem multidões. No corredor, passam rapazes e raparigas a empurrar carrinhos, vendem pacotes de comida, chá ou caixas com vários tipos de fruta. Cada carrinho leva apenas uma variedade destes produtos, quem o empurra vai estendendo um longo discurso à medida que caminha. Na janela, passamos por campos imensos, atravessados por postes de alta tensão ao longo de toda a lonjura. Às vezes, há blocos incríveis de apartamentos, aparentemente no meio do nada, casa de milhares e milhares de famílias. Há neblina sobre todas as cores. A partir de Nanjing, ainda a trezentos quilómetros, começa já a sentir-se a aproximação à imponência de Xangai. A partir de Suzhou, a cem quilómetros, a malha urbana instala-se e não termina mais. É irreversível, entramos cada vez mais no interior de um emaranhado de cidades, um corpo constituído por milhões e milhões de vidas, cujo coração é Xangai.
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