Pirâmides de pedras feitas por turistas ameaçam fauna e flora dos paraísos de Cabo Verde
Pirâmides de pedras feitas por turistas ameaçam os paraísos de Cabo Verde

As paisagens de alguns dos paraísos naturais das ilhas cabo-verdianas do Sal e da Boavista estão a ficar descaracterizadas devido à recente «moda» dos turistas empilharem pedras, situação que já levou à intervenção de ambientalistas e das autoridades.

Flávio Santos é advogado de profissão e pratica pesca por paixão. Conhece praticamente todos os cantos do Sal, onde nasceu há 41 anos, e acompanhou todo o crescimento turístico da ilha, que em 2017 recebeu 47% das entradas nos estabelecimentos hoteleiros do país.

Em declarações à agência Lusa, recordou que viu os primeiros “montinhos” «há cerca de sete/oito anos», e na altura até achou interessante, porque não eram feitos com pedras de grandes dimensões.

«Mas há uns meses eu estava a passar na estrada e vi que começaram a fazer aqui, nessa zona da Murdeira», recordou Flávio, referindo-se à baía que fica a meio caminho entre os dois principais centros urbanos da ilha do Sal: Espargos e Santa Maria. «Aí já achei má ideia, porque costumo frequentar essa prainha aí à frente e pensei logo nos meus filhos, porque costumam passar aqui e podiam mexer nessas pedras e cair-lhes em cima», explicou.

A angústia deste salense é enorme ao ver a Murdeira «completamente descaracterizada», considerando que daqui a algum tempo as pessoas terão dificuldade em encontrar um sítio na praia para «passar um bocado com a família».

«Não parece que seja boa ideia, não acho bonito e devemos parar com isso», entendeu, dizendo que a solução é fácil: «É só fazer uma sensibilização junto dos guias turísticos para aconselharem as pessoas a não fazerem», apontou o amante da pesca.

Empilhar pedras é uma técnica milenar, usada em diversos locais e em ambientes naturais para expressão artística, meditação ou simplesmente para indicar o caminho. Conhecidos também como mariolas, os montinhos em forma de pirâmide são também um fenómeno associado ao turismo mundial, feitos pelos turistas, como recordação e como marca da passagem por determinado local.

A questão não tem enquadramento jurídico em Cabo Verde, mas enquanto advogado Flávio, considera que o problema não se resolve com criação de leis, para depois não haver fiscalização. Por isso, sugere a criação somente de um regulamento, mesmo que apenas a nível local, bem como a colocação de placas no circuito turístico proibindo as construções.

Depois da Murdeira, a zona onde a Lusa constatou maior quantidade de empilhamento é em Joaquim Petinha, um lombo perto do Monte Leão, mais afastado dos dois principais centros urbanos do Sal. Para chegar lá é preciso ir de carro por trilhos esburacados e danificados pelas águas das chuvas e por entre alguma vegetação, que contrasta com o castanho da terra seca e do céu azul a meio da tarde.

A vista é impressionante, pela quantidade de montinhos de pedras, uns maiores do que outros, provando que foram feitos cuidadosamente e com muita paciência nessa zona descampada. Outrora um dos outros pontos críticos, onde praticamente já não há empilhamentos é na zona de Buracona, graças à iniciativa por conta própria de Luciano Teixeira, promotor do único empreendimento local, que pôs o seu pessoal também a «sentir o prazer de derrubar as pedras».

A cerca de 20 minutos de carro a partir de Espargos, passando por Palmeira, Buracona é muito frequentada por turistas, por causa da piscina natural e também de uma das grutas onde se pode observar o efeito «olho azul», uma reflexão da luz na água. No início, Luciano Teixeira disse que o empilhamento parecia uma «coisa curiosa», mas com a sua massificação tornou-se num fenómeno que deturpa a paisagem e, baseando em «informações científicas e sérias», pôs os seus funcionários a derrubar as pedras amontoadas na Buracona.

Além disso, colocou alguns sinais de proibição nos pontos onde há maior quantidade de pedras, onde mesmo assim ainda se pode ver alguns desses “montinhos” e os vestígios dos que foram derrubados. Luciano Teixeira disse também que tem sensibilizado os guias no sentido de informar os turistas para não juntarem as pedras, por causa do aspeto visual e das consequências para o ambiente.

É o que tem feito Humberto Sousa, 46 anos, natural do Sal, guia turístico há 17 anos e por conta própria há cinco, que deu conta à Lusa que o fenómeno tem crescido «bruscamente» na ilha mais turística de Cabo Verde.

O guia disse que nunca incentivou os turistas a fazer empilhamentos, mas confirmou que já presenciou várias destas construções, que os turistas fazem «por ingenuidade» e como promessa de regressar ao Sal. «Mas hoje em dia já temos conhecimento dos problemas que está a causar ao meio ambiente e cabe a nós tentar evitar esse mal que pode ter um impacto bem maior no futuro», apontou o guia turístico, entendendo que o mal deve ser «cortado pela raiz».

Quem também já está a tomar iniciativas para resolver o problema é a Câmara do Sal, que iniciou com uma campanha na rede social Facebook e que quer fazer chegar aos operadores e agentes turísticos. Além disso, fiscais municipais derrubaram, nos últimos dias, as pedras amontoadas na Murdeira, local onde o vereador Vítor Cardoso disse que o fenómeno estava «próximo» de um ponto crítico.

O responsável pela área do saneamento e ambiente da Câmara do Sal disse que o código de posturas municipais já tem alguns artigos que podem servir de base para fazer algum enquadramento, mas afirmou que a autarquia vai trabalhar sobretudo na colocação de sinais nos locais mais frequentados e na sensibilização.

«A sensibilização terá de ser um trabalho contínuo, permanente porque há novos turistas que chegam todas as semanas e que terão de ter sempre esta noção que é uma prática que não é necessária e que prejudica o ambiente e que deve ser evitada», salientou o autarca. «Não é um fenómeno a grande escala, mas acaba por ter algum impacto. Há zonas mais críticas em termos ambientais e outras mais em termos visuais e paisagístico», pontuou, indicando alguns dos efeitos negativos desta prática para o ecossistema.

Com a retirada das pedras dos seus lugares, é destruído o habitat de algumas espécies que vivem e se alimentam nos locais, como as lagartixas, prejudica o desenvolvimento da vegetação, os insetos, répteis e aves desaparecem, quebrando a natural cadeia alimentar.

O problema já é do conhecimento do Movimento Contra a Poluição de Cabo Verde (MCPCV), que também lançou uma campanha nas redes sociais para desincentivar esta prática, num fenómeno que também acontece na ilha da Boavista, a segunda mais turística do país.

Em declarações à Lusa, César Freitas, membro e administrador da página do movimento e um amante da natureza, disse que a prática deve ser proibida no país e incentiva qualquer pessoa a derrubar as pedras e devolvê-las ao seu lugar natural e habitual.

César Freitas considerou que, além de ser «boa» a criação de uma lei específica para este e outros fenómenos ambientais no país, devem ser colocadas placas de proibição nos pontos mais frequentados pelos turistas, entre outras medidas. «Os agentes turísticos já deviam ter isso nas normas que os turistas usam para ficar aqui. Deve ser discutido, não só isso, mas várias outras coisas ambientais», pediu Freitas, considerando «doloroso» a mudança da paisagem do país.

Por isso, congratulou-se com a iniciativa da Câmara Municipal do Sal em começar a espalhar as pedras e sensibilizar todos os agentes turísticos para evitar as pirâmides de pedras na ilha.

Lusa

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