Galerias e passagens cobertas são joias de arquitetura e testemunhos de um estilo de vida que celebrizou Paris no século XIX. A gozar de uma segunda juventude, revelam uma vertente pitoresca e menos óbvia da capital francesa.

Texto e fotografia de Luís Maio

As galerias e passagens cobertas mais famosas, aquelas que ficaram para a história e são hoje património classificado, foram quase todas abertas na primeira metade do século XIX. A maior parte nasceu perfurando quarteirões inteiros entre o Louvre e os Grands Boulevards, mas também à volta de Saint-Denis, ao longo da antiga muralha da cidade. Numa cidade até aí de ruelas estreitas, sombrias e enlameadas, estes longos corredores coroados por elegantes telhados envidraçados surgiram, na altura, como uma ideia luminosa, entusiasticamente recebida pela cidade inteira.

Atalhando pelo meio dos quarteirões, galerias e passagens cobertas encurtaram distâncias, ao mesmo tempo que os seus telhados envidraçados vieram dar abrigo das intempéries naturais e de uma pilha de incómodos urbanos. Uma providencial oferta de conforto, para mais suplementada da promessa de diversão, ou mais propriamente de tudo o que fascinava os parisiense nos inícios do século XIX: o teatro de variedades e as grandes paisagens em formato de panorama, os primeiros restaurantes dignos do título, cafés com jogos de mesa, bares onde se servia absinto, lojas com as últimas modas, salões de beleza e até salões especializados na remoção de imundices do calçado.

Todo um programa de mimos urbanos que não tardou a ser replicado e, da fornada inicial de quinze galerias e passagens cobertas, a capital francesa passou a contar com 130 em 1840. Pouco depois, no entanto, entrou em cena o barão Haussmann com o seu esquema de modernização radical, que passou pela demolição da cidade medieval, mas não só. Foi assim que, na segunda metade de Oitocentos, nasceu a Paris dos Grands Boulevards com os seus passeios largos e prédios-armazéns comerciais como o Bon Marché, as Galerias Lafayette e o Printemps, concentrando toda a espécie de comércios num único edifício.

Em comparação com estas novas superfícies comerciais, as galerias e passagens cobertas já pareciam acanhadas e obsoletas aos olhos de muitos parisienses. Começou aí uma lenta agonia, rematada com o fecho ou a amputação de boa parte. Sobreviveram as mais emblemáticas, reanimadas por toda uma geração de artistas, estilistas e mais em geral de malta alternativa nos anos 1980, que optou por marcar terreno ocupando essas velhas glórias insólitas, em vez de se render aos seus descendentes uniformizados, que é como quem diz, os modernos centros comerciais.

Hoje classificadas e recuperadas como espaços nobres da cidade, galerias e passagens cobertas são de novo ocupadas por lojas de luxo ou de culto, à mistura com startups e escolas especializadas. Explorá-las de forma avulsa ou seguindo rotas que a sua própria localização sugere constitui hoje um dos programas turísticos mais sedutores e, no entanto, menos turísticos no centro da capital francesa.

Palais-Royal

Poderá causar alguma surpresa ver um dos mais seletos palácios da capital francesa à cabeça de uma lista de espaços comerciais dos inícios do século XIX. Mas o Palácio Real é também o grande precursor e o modelo das galerias e passagens cobertas que depois se multiplicaram ao seu redor – um perfil hoje de novo reforçado, quando as suas galerias congregam algumas das lojas mais singulares e exclusivas à face da Terra. Isto dito, convém acrescentar que a história do Palais-Royal está longe de se reduzir à de um vulgar espaço comercial, quando o palácio mandado construir pelo todo poderoso cardeal Richelieu em 1624 foi de tudo um pouco, desde estância termal na Antiguidade a cenário de alguns dos mais turbulentos episódios da Revolução Francesa.

Um dos seus ocupantes mais notáveis foi Luís Filipe II, duque de Orleães, que, para financiar a reconstrução do majestoso edifício, na sequência de um incêndio em 1733, mandou rodear os jardins por uma monumental colunata e loteou a metade do edifício em redor para habitação no piso superior e comércio no piso térreo. Resultado: se antes a vida dissoluta se praticava em circuito fechado num reduto principesco, onde a polícia estava proibida de entrar, a partir daí o Palácio Real abriu à cidade inteira, oferecendo casinos, teatros, salas de ópio e a maior concentração de bordéis de Paris. Antro de prazeres indecorosos à noite, de dia o Palais Royal, ou pelo menos a sua metade pública, desdobrava-se em meca de consumo, e foi mesmo sob as suas colunas que nasceu a galeria comercial moderna, elegante e mundana.

Entre o Museu do Louvre e a área dos grandes Boulervards surgiram estas passagens cobertas e galerias. Além de encurtarem distâncias, tornara-se atração para a população parisiense.

Em 1986, por iniciativa de Jack Lang, polémico ministro da Cultura da altura, o não menos célebre artista Daniel Buren instalou 260 colunas estilo lollipop no pátio interior, a combinar com a colunata clássica do palácio. Produziu na altura uma azeda controvérsia, entretanto pacificada ou pelo menos adormecida. Teve certamente o condão de insuflar nova vida na galeria comercial, onde hoje se sucedem lojas tão raras e tão caras como não há em mais lado nenhum. Isto à mistura com casas de condecorações militares e antiquários de alta-costura.

Véro-Dodat

A dois passos do Palais Royal encontram-se as galerias Véro e Vivienne, porventura as mais bonitas de Paris. Mas porque chamaram galerias a umas e passagens cobertas a outras? A diferença não está no figurino, mas na classe, digamos assim. Em termos de arquitetura e de decoração, mas também de artigos em exposição, as galerias nasceram com a mira no topo de gama, ao passo que as passagens eram menos sofisticadas, algumas até ultrapopulares – uma diferença que se esbateu com o tempo, mas que hoje de novo é marcante e especialmente notória no alinhamento por cima dos estabelecimentos que atualmente ocupam as galerias.

Se este modelo de negócio vem do Palais-Royal, já em termos de design de interiores a inspiração das galerias comerciais radica no Palácio de Versalhes e na sua célebre Galeria dos Espelhos. Lugar de passagem entre os aposentos do rei e da rainha, onde Luís XIV também expunha obras de arte e organizava bailes, a joia de Versalhes é dominada por dezassete arcos, frente a igual número de janelas, cada um deles constituído por 21 espelhos, instalados entre pilastras de mármores. Foi este figurino de ostentação, justamente, que os salsicheiros Véro e Dodat quiseram replicar ao investirem na galeria com os seus nomes, aberta em 1826 entre as ruas Bouloi e Jean-Jacques Rousseau, a meio caminho entre os jardins do Palais-Royal e o antigo mercado central de Les Halles.

No início eram 15 galerias e passagens. Em 1840, o número já chegava às 130. Viria a diminuir com a entrada em cena do Barão Haussmann e dos grandes armazéns.

Curta mas preciosa, esta galeria recria o modelo palaciano no uso de arcadas, pilastras com capitéis, madeiras a imitar mogno, carpintaria forrada a cabedal e lajes de mármore branco e negro aos losangos a cobrir o soalho, para criar uma ilusão de profundidade. Um luxo desde logo anunciado pelas estátuas gigantes alusivas a divindades gregas, que flanqueiam a entrada mais nobre, virada para o Palácio – divindades gregas depois também invocados em frescos ligados ao prazer e à prosperidade, que alternam com o envidraçado do telhado.

Tão bem restaurada que parece a estrear, a Véro-Dodat é hoje sobretudo visitada pela brigada internacional de fashion victims, gente capaz de passar horas a adorar as pomposas montras de Christian Louboutin, antes de perder a cabeça e trocar o pé-de-meia por um par de sapatos de outra galáxia.

Vivienne e Colbert

Se a Véro-Dodat é sobretudo um lugar de passagem e de peregrinação consumista, já a vizinha galeria Vivienne é outra história: um oásis de requinte e de tranquilidade, no meio e em absoluto contraste com o bulício parisiense. Uma espécie de bolha encantada, inaugurada em 1823 entre as ruas Banque e Vivienne, formada por duas longas vias pedestres coladas em L.As suas escadarias e rotundas não foram feitas nem ajudam a vencer distâncias, mas definiram um espaço de excelência para estar e comprar, combinando mosaicos multicolor, arcos clássicos e fachadas revestidas com madeiras polidas e molduras em ferro forjado. Hoje como há dois séculos, a Galerie Vivienne é um nicho de restaurantes mundanos, bares refinados, galerias de arte, salões de chá e uma mão-cheia de lojas de designers famosos.

A sensação que a Galerie Vivienne produziu em 1823 atraiu concorrência instantânea, levando à abertura ainda nesse ano de outra passagem coberta, ali mesmo na porta ao lado. Recriando o interior do antigo hotel do senhor Colbert, a ideia foi também recriar o luxo ao estilo de Pompeia, revestindo o chão com mármore e cobrindo as paredes com pinturas etruscas em tromp l’oeil.

A Passagem Colbert nunca igualou o sucesso da sua vizinha famosa e acabou mesmo por se afundar, na sequência do choque petrolífero dos anos 1970. Adquirida e restaurada pelo estado, veio a ser integrada na Biblioteca de França e a abrigar vários departamentos universitários (e nenhum estabelecimento comercial). Agora para entrar é preciso ser revistado na única entrada, na Rua Vivienne, mas vale o incómodo pelas exposições temporárias e sobretudo pela fabulosa rotunda, dominada por uma sensual estátua da ninfa Eurídice sob uma luminosa abóbada envidraçada.

As passagens dos Grands Boulevards e de Saint-Denis

No capítulo das passagens cobertas, a mais famosa é uma das primeiras, a dos Panoramas, que data de 1800. Por essa altura atraía multidões por causa do conforto, mas sobretudo pelos divertimentos, a começar pelos Panoramas que lhe deram nome – pinturas monumentais de paisagens e de batalhas em formato arredondado, que faziam a cidade inteira sonhar e viajar sem sair fora de portas. Outras atrações lendárias da Passagem dos Panoramas eram os espetáculos picantes do teatro de variedades, que hoje continua a funcionar, e lojas como a do gravador Sterne, agora convertido num restaurante insólito, decorado como um gabinete de curiosidade.

Tal foi o sucesso da Passagem dos Panoramas que em frente, do outro lado do Boulevard Montmartre, abriu a Passagem Jouffroy que a prolonga e por sua vez desemboca na mais curta Passagem Verdeau. Com arruamentos mais espaçosos e luminosos, estas passagens contam-se entre as peças de arquitetura de ferro e vidro mais ilustres, erguidas em Paris de meados do século XIX. Hoje classificadas e exemplarmente reabilitadas, as três passagens do Boulevard Montmartre estão de novo a funcionar em pleno, oferecendo um sortido de mercadorias perfeitamente integradas no cenário, ou vice-versa. Lojas especializadas em selos, moedas, postais antigos, brinquedos artesanais, arte gótica ou bengalas em segunda mão encontram nestas passagens cobertas o seu elemento natural. Resistentes durante décadas ao comércio global, estes negócios tradicionais ou alternativos começam, porém, a ceder a pressões corporativas e um quarto da Passagem Jouffroy acabou de se render à filial de uma cadeia de supermercados ingleses.

Não muito longe dali, no Boulevard des Italiens, a Passagem dos Príncipes (1860) chegou mesmo a ser desfigurada por um projeto imobiliário nos anos 1980, mas foi mais recentemente resgatado e restaurado em grande estilo, abrigando agora um superarmazém de brinquedos.

Outra constelação floresceu em torno da Rua de Saint-Denis, num bairro onde tudo ou quase passou a ser oriental desde que Napoleão Bonaparte partiu à conquista do Egito – e também se diz que é dos mercados cobertos do Cairo que vem a inspiração da moda parisiense das passagens cobertas, que arrancou pouco depois da sua campanha. De arquitetura mais linear e frequentação popular, muitas destas passagens desapareceram ou foram descaraterizadas em posteriores reformas urbanas. Meia dúzia, porém, sobreviveu e ganhou um novo fôlego à entrada do novo milénio. Valem como testemunhos de outros tempos, mas também pelo sugestivo diálogo de passado e presente. O destaque vai para a Passagem do Cairo, a mais antiga (1798) e mais longa da cidade, agora sobretudo ocupada por grossistas ligados às grandes lojas de confeções do vizinho Sentier, uso também predominante na pequena passagem do Ponceau (1826), do outro lado da rua. Mais interessante do ponto de vista patrimonial é a passagem de Bourg-L’abbé (1828) com duas estátuas gigantes do Comércio e da Indústria flanqueando a entrada principal, e a do Grand-Cerf (1825), que conta com um dos telhados envidraçados mais altos e mais espetaculares de Paris.


Guia de viagem

Documentos: cartão de cidadão ou passaporte
Moeda: euro
Fuso horário: GMT +1 Hora
Idioma: francês

Ir

A Air France voa para Paris a partir de 196 euros, ida e volta (dependente das datas). Na capital francesa, todas estas passagens estão servidas por metro e demais transportes públicos à porta, mas as galerias e passagens cobertas exploram-se melhor a pé, tanto mais que há três grandes núcleos em torno dos quais se encontram as principais: Palais-Royal, Boulevard Montmartre e Rue Saint-Denis. De resto, esses núcleos não são muito distantes uns dos outros, facilitando um roteiro mais abrangente, eventualmente tocando as três áreas num dia ou menos. Atenção que a maior parte das galerias e passagens cobertas de Paris têm horários diários de abertura parecidos com os do comércio mas que diferem de uma para outra, podendo também variar consoante as estações do ano.

Ficar

GRAND HÔTEL DU GRAND PALAIS
Era um hotel banal até ser reconvertido num cinco estrelas sob a batuta de Pierre Yves Rochon, superestrela da arquitetura de interiores com french touch. Agora é a quintessência do chique parisiense, decorado com peças
de arte escolhidas a dedo e vistas sublimes sobre os telhados de Paris. Quartos duplos a partir de 340 euros por noite.
4, RUE DE VALOIS
TEL.: 33 (0)142961535
grandhoteldupalaisroyal.com

HOTEL CHOPIN
A Passage Jouffroy foi inaugurada em 1846 já com o Hotel Chopin lá dentro, o que faz dele um dos mais antigos de Paris, sobretudo porque desde aí nunca fechou a porta (até porque esta não tem fechadura).
Quartos duplos a partir de 80 euros por noite.
46, PASSAGE JOUFFROY
TEL.: 33 (0)147705810
hotelchopin.fr

Comer

RESTAURANT DU PALAIS-ROYAL
Vista para os esplêndidos jardins do Palácio Real, decoração refinada, cozinha e serviço ultradepurados (uma estrela Michelin).
Menus entre os 48 e os 142 euros.
110, GALERIE DE VALOIS
TEL: 33 (0) 140200027

LUCIEN LEGRAND
Bistrot, bar e loja de vinhos, a casa fundada por Lucien Legrand em 1880 especializou-se em provas de vinhos e é hoje uma das melhores montras dos produtores franceses (representa 370).
1, RUE DE LA BANQUE/GALERIE VIVIENNE
TEL: 33 (0) 142600712
caves-legrand.com

DARACO
Trattoria estratosférica, um dos sítios mais cool para comer italiano no coração de Paris. Tem um pé direito de catedral com tetos espelhados, a fazer pendant com os envidraçados da Passagem Vivienne. As pizas são boas, mas conservadoras. Andam entre os 16 e os 20 euros.
5, RUE VIVIENNE
TEL.: 33 (0) 142219371
daroco.fr

BOUILLON CHARTIER
Restaurante histórico, uma verdadeira instituição aberta em 1896 num pátio vizinho à Passagem Jouffroy. Conserva os menus tradicionais e os preços acessíveis, mesmo se agora é mais para turistas.
Menus a 20 euros.
7, RUE DU FAUBOURG
DE MONTMARTRE
TEL.: 33 (0) 14770 8629
bouillon-chartier.com/fr

LE PAS SAGE
Epítome do restaurante cool que descola da cozinha francesa clássica, cheio de fantasia e de ousadias, como logo se percebe pelo engenhoso trocadilho com passage que lhe dá nome.
35 a 40 euros por cabeça.
145, RUE DE SAINT-DENIS/
TEL.: 33 (0) 140284560

Comprar

MAISON FABRE
O máximo em luvas desde 1924.
JARDINS DU PALAIS-ROYAL
128-129, GALERIE DE VALOIS
TEL: 33 (0) 142 60 75 88
maisonfabre.com

RICK OWENS
Jardins du Palais-Royal
Meio street, meio alta-costura, um dos estilistas favoritos das celebridades rock.
130-133, GALERIE DE VALOIS
TEL: 33 (0) 140204252
rickowens.eu

CHRISTIAN LOUBOUTIN
Os sapatos mais originais (e desejados) de Paris.
BOUTIQUE BEAUTÉ 8, GALERIE VÉRO-DODAT
TEL: 33 (0) 153002059
christianlouboutinbeaute.com

GALERIE DU PASSAGE
Galeria especializada em objets d’art, onde a portuguesa Bela Silva expôs em 2015.
20-26, GALERIE VÉRO-DODAT
TEL: 33 (0) 142360113
galeriedupassage

CHRISTIAN ASTUGUEVIEILLE
Um dos mais originais designers de acessórios e peças de mobiliário franceses.
GALERIE VIVIENNE
TEL: 33 (0) 144699140

DEBAUVE & GALLAIS
Os mais antigos chocolateiros de França, especializados em chocolate negro desde o tempo das passagens cobertas.
33, RUE VIVIENNE
TEL: 33 (0) 140390550
debauveandgallais.com

GALERIE FAYET
Bengalas e chapéus de chuva feéricos desde 1909.
34, PASSAGE JOUFFROY
TEL: 33 (0) 147708965
galerie-fayet.com

THIERRY RUBY
Arte alternativa sob o signo do exótico. Le cabinet des Curieux.
12, PASSAGE VERDEAU
TEL: 33 (0) 1443830957
cabinetcurieux.com

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