Entre templos e veados

Pode não ter a mesma fama da vizinha Quioto, mas isso também se sente no ritmo dos dias. Na primeira capital do império encontra-se um Japão imaginado, feito de templos serenos, comunhão com a natureza e uma monumentalidade que pode apanhar muitos visitantes desprevenidos. E veados, muitos veados.

Texto e fotografia de João Mestre

Parece uma coisa grotesca. No Japão, cada cidade tem a sua mascote, quanto mais delirante melhor, e Nara não se escusa a essa competição. Na estação de comboios da Japan Railways, junto a mesinha onde uma funcionaria do turismo recebe os visitantes, a cidade exibe a sua mascote, Sento kun, num grande recorte de cartão. Um monge budista, com as vestes típicas, um sorriso amistoso e, na cabeça, um par de hastes de veado. Budismo, sorriso, veados – Nara esta apresentada.

Esta foi a primeira capital permanente do Japão, instituída em 710, ainda que o consulado não tenha durado um século sequer. Com o propósito de afastar a corte de um clero que crescia em poder e importância, em 794 o império mudou a sua sede para Quioto, e por la se manteve, de modo intermitente, ate ao século XIX. A herança, contudo, perdurou ate aos nossos dias – a patrimonial e a espiritual, ambas motivo de romaria, tanto de crentes como de turistas fascinados com o assunto (ou, mais não seja, com um par de olhos na cara). E, se quisermos, uma Quioto em miniatura, ainda que tenha também o seu que de monumental, mas porventura sem as monumentais enchentes de gente, que na cidade imperial podem ser uma experiência avassaladora.

Em Nara, encontra se um Japão fantasiado, aprendido dos filmes, do manga, das revistas de viagens. Um lugar de tranquilidade, de viagem no tempo, de encanto magico, tanto pelos santuários que se espalham floresta adentro como pelo inesperado encontro com veados em estado semisselvagem, mais de um milhar deles, que tomam conta da cidade, entram pelas lojas, atravessam estradas, são ate incluídos na sinalização de transito local. Há também avisos para os peões, ≪Cuidado, os veados do parque são animais selvagens. Podem, eventualmente, atacar pessoas≫. Diz que podem morder, dar coices, empurrões. Fortuitamente, e certo. O que se vê, num primeiro contacto, são criaturas dóceis, em particular para quem lhes trouxer comida. Sabem, por experiência, que mal não lhes acontecera – afinal, aqui são venerados como mensageiros dos deuses, e com os deuses não se brinca.

Os veados estão por todo o lado, mas o melhor sítio para conhecê‑los de perto é o Nara Koen, onde se pode comprar bolachas para alimentá‑los.

Antes que venha a pergunta: não, em Nara não há restaurantes a servir carne de veado. Mas há casas de massas artesanais, de cozinha cerimonial kaiseki, de dieta vegetariana budista shojin ryori. Isto além de sushi bom, rápido e a preço acessível. Tudo acompanhado, na maioria dos casos, por serviço simpático, atencioso, cortes ate – mesmo que o inglês não seja o prato forte. Vale, por isso, a pena trazer sempre na bagagem um ou outro elogio estudado (≪Oyshi katta!≫, por exemplo – ≪Estava delicioso!≫), que será decerto apreciado. E a melhor gratificação que se pode deixar num pais onde a cultura da gorjeta praticamente não existe.


Roteiro de Nara

Nara Visitor Center
Fica diante de um lago, com a silhueta do pagode de Kofuku‑ji recortada ao fundo. E traduz na essência o que é um welcome center – fazer o visitante sentir‑se bem‑vindo é missão encarada com seriedade (porém, de sorriso no rosto). Além de informação turística, disponibiliza atividades gratuitas (aprender a fazer origami, a vestir um quimono) e tem também uma loja de produtos locais. O nível de inglês dos funcionários é bom e a disponibilidade para responder a perguntas é total – incluindo inquietações como «É normal andar de quimono na rua?» (não, são os turistas que se vestem assim), ou «Há restaurantes de carne de veado?» (no resto do Japão, sim; aqui, não).
3 Ikeno‑cho, Nara‑shi.
Das 08h00 às 21h00. Não encerra.

Sobakirimo‑moyotsuki
As massas estão no centro de todas as atenções neste restaurante familiar a curta distância da estação do Kintetsu. A casa tem moagem própria de cereal, atividade herdada do avô da proprietária – que não é propriamente fluente no inglês, mas é muito dada a conversar com os estrangeiros que lhe entram porta adentro. As massas, essas são simples, saborosas, envolventes. A sala é luminosa, convidativa, com uma grande mesa ao centro. E o preço é um achado, para o produto artesanal que é servido – ao almoço, rondará os mil ienes.
38 Nakasujichō, Nara‑shi.
Das 11h30 às 14h30 e das 17h30 às 19h30. Encerra à quarta e à terça ao jantar.

Pagode de Kofuku‑ji
Será, porventura, o «arranha‑céus» mais antigo do Japão, com 50 metros de altura, cinco pisos e quase 700 anos em cima da sua estrutura de madeira. Faz parte de um templo aqui erguido no século VIII, que chegou a ter mais de 150 edifícios. Hoje sobram, além de um outro pagode, alguns pavilhões convertidos em museus – entre eles, o Tesouro Nacional, que foi renovado em 2017 e tem reabertura prevista para breve, e o novo Central Golden Hall, que será inaugurado neste ano.

Nara Koen (Parque)
Ocupa boa parte do lado oriental da cidade e não só alberga mais de mil veados, que percorrem as florestas e caminhos em liberdade, como guarda os maiores tesouros patrimoniais de Nara. Os templos e santuários são muitos. Para incluir os principais, o passeio estende‑se por cinco quilómetros e leva meio-dia a cumprir. De caminho, aproveita‑se para comprar, aos vendedores ambulantes, um pacote de shika‑sembei, bolachas para veados, o único alimento que é permitido dar‑lhes. Custam 150 ienes e são garantia de ser o centro das atenções destas criaturas sagradas por bons minutos.

Templo Todai‑ji e o grande Buda
Fica dentro do parque e é a principal atração da cidade. Deve entrar‑se pelo lado sul, para que os portões Nandaimon nos deixem desde logo como burro a olhar para um palácio – pela antiguidade (foi concluído em 1203), pela dimensão, pela escala colossal dos dois guardiões de olhar feroz esculpidos em madeira. A procissão, essa ainda vai no adro. Duzentos metros adiante, está o templo Todai‑ji e, no pátio interior, o pavilhão Daibutsu‑den, o edifício cuja construção quase levou o país à falência, no século VIII. Levanta‑se quase 49 metros do chão e guarda uma estátua de Buda com 16 metros de altura, feita de 437 toneladas de bronze. Uma vez mais, a escala: cada narina mede 50 centímetros e dentro de uma mão do Daibutsu cabe um homem adulto (e há uma réplica no chão, para comprová‑lo). Esmagador é a palavra certa.
Das 09h30 às 17h00. Não encerra.
Entrada: 800 JPY.
Todaiji.or.jp
Fica a curta distância do Todai‑ji e merece inclusão no roteiro por, pelo menos, dois motivos: o impressionante trabalho estrutural de erguer um imenso templo‑varanda projetado da encosta, e as vistas magníficas que a sua configuração oferece sobre a cidade.
GPS: 34.6893, 135.8443.
Não encerra. Entrada livre.

Sushi Totogin
Fica ao fundo das arcadas Higashimuki, o sítio para ver montras de tudo e mais alguma coisa: doçaria, casas de massas, lojas de souvenirs, comida de plástico (no sentido literal, das réplicas realistas usadas nas vitrinas dos restaurantes). O sushi do Totogin, esse é bem real e cumpre o padrão de qualidade esperado. É um restaurante kaiten, isto é, de tapete rolante, com lugares ao balcão e o sushiman a trabalhar diante dos olhos dos clientes. Pela passadeira tanto circulam as peças do costume como sashimi de barriga de atum e gunkan de ouriço‑do‑mar. O serviço é rápido, simpático e com uma eficiência quase militar.
5‑1 Higashimuki Nakamachi.
Das 10h30 às 21h30. Não encerra.
Preço médio: 2500 JPY
totogin.com

Ryokan Daibutsukan
Se é para ter a experiência completa de Nara, faz toda a diferença ficar num ryokan. É certo que a noite numa destas estalagens tradicionais tende a ter um preço elevado, mas procurando bem também os há em conta. Visto de fora, o Daibutsukan pode não parecer grande coisa, mas o que conta está no interior: quartos amplos, soalho de tatami, portas deslizantes de papel, camas de chão, serenidade. E uma vista em primeira mão para o pagode de Kofuku‑ji. É obrigatório descalçar na receção, o que pode parecer um incómodo, mas na verdade só acrescenta ao conforto caseiro.
250 Takabatake‑cho.
Quarto duplo desde 13 mil JPY por noite.
daibutu.com

Cozinha kaiseki, no Hyori
Fica no Naramachi, o bairro antigo, feito de ruas estreitas, casas baixas, arquitetura tradicional. Pela morada apenas, é 6 difícil encontrar o que quer que seja, pelo que para estes pequenos pontos no mapa nunca é de mais dar coordenadas: 34.6782, 135.8305. E o Hyori é daqueles sítios que vale a pena ir lá dar direto, sem rodeios nem indecisões. Aqui serve‑se kaiseki, cozinha cerimonial japonesa, que resulta num desfile de pratos, técnicas e produtos em jeito de menu de degustação. Os legumes são ponto de honra na região, e o Hyori eleva‑os ao altar. No desfile de quase uma dezena de pratos, pratinhos e tacinhas, vêm picles caseiros de pepino fumado, tempura, salada de sésamo, tofu de vários níveis de firmeza, sopa de miso e muita coisa difícil de descobrir o que é ao certo. A experiência é de encher a alma, e sem esvaziar os bolsos: ao almoço, um menu completo ronda os 1200 ienes. Tem menus vegetarianos, o que nem sempre é fácil de encontrar no Japão.
26 Nakanoshinya‑cho
Das 11h30 às 14h30 e das 17h00 às 22h00. Encerra à terça.

Sake Harushika
Sem sair do Naramachi, anda‑se nem 500 metros para encontrar esta fábrica tradicional de sake. Por 500 ienes, faz‑se uma prova comentada que ajuda a perceber as nuances entre os tipos de vinho de arroz. No final, o copo fica de recordação, mas para quem quiser tratar do assunto souvenirs há ainda uma lojinha ótima e com aconselhamento, fundamental, já que, aprende‑se também ali, nem todo o sake se pode transportar sem refrigeração.
24‑1 Fukuchi‑incho.
Das 08h15 às 17h15.

Como ir

Não há ainda voos diretos de aeroportos portugueses para o Japão. A Lufthansa voa, via Alemanha e Tóquio, para Osaka a partir de 630 euros (ida e volta). Nara fica a 40 minutos de comboio Kintetsu de Osaka – desde 560 JPY por trajeto;
kintetsu.co.jp/foreign/english


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