Os bancos estão a fechar e muita gente a debandar. Mas é por isso mesmo que a Espanha profunda é um destino cada vez mais atrativo para quem ama a quietude, o som do vento e a poesia dos bosques.

Texto e fotografia de Luís Maio

Burgos e Madrid são ligadas pelas Autovía del Norte, cerca de 300 quilómetros de estrada que a maioria dos automobilistas faz em regime de queima quilómetros, como se pelo meio não houvesse nada. Quem estiver com mais tempo e for dado a improvisos fica a ganhar e muito se, a páginas tantas, descolar do eixo norte‑sul dominante, infletindo pela bem mais remota direção este‑oeste. Se, por exemplo, sair da autovía em Aranda, a meia hora de Burgos, para passar a adotar por guião o rio Douro e a sua espinha curvada no sentido da nascente.

Quarto oriental de Castilla La Vieja, o território da Ribeira do Douro e de Soria tem a reputação pouco abonatória de ser uma das regiões mais inóspitas e despovoadas de Espanha. Uma terra de colinas áridas e ondulantes, montanhas agrestes e barrancos profundos, manchas florestais monocórdicas e pastagens a perder de vista. Não conhece grandes centros urbanos, nem as diversões do costume, mas a sua peculiar combinação de despojamento e de sossego constitui todo um programa de evasão, feito por medida para quem padece dos excessos da civilização.

O vento omnipresente e as grandes amplitudes térmicas contribuem para acentuar a aura de lonjura e de retiro zen, sobretudo quando se conjugam com a descoberta de escaninhos de natureza prístina, castelos monumentais e aldeias fantasma. Estas trações singulares oferecem-se como reverso da medalha da Castela profunda, funcionando como epifanias que quebram enfado da paisagem. Só por si justificam ir e ficar onde a maioria passa ao lado.

Postais à beira-rio

Justamente um dos sítios mais fotogénicos de Espanha – certamente um dos mais espetaculares da bacia hidrográfica do rio Douro – encontra-se nestas recônditas paragens, a cavalo das províncias de Burgos e de Ávila. E o Canon del Rio Lobos, um desfiladeiro que se alonga por 25 quilómetros, cobrindo quase 10 mil hectares de serranias, moldadas pela erosão fluvial ao longo de milhões de anos. Daí uma paisagem de falésias calcárias esculpidas em formas caprichosas, pontuadas por múltiplas cavernas e furnas, algumas de profundidade considerável. Esta moldura rochosa e depois preenchida por bosques de pinheiros, azinheiras e zimbros, habitados por javalis, gatos-monteses, texugos e aves de rapinas – águias e abutres, que se destacam categoricamente nas alturas.

As falésias esculturais, os bosques frondosos, as aves de rapina, tudo isso e magnifico, mas falta qualquer coisa, pelo menos ate que se avista a Ermita de San Bartolomé, alcandorado num pequeno outeiro, ao fundo do vale. Parece um cenário de O Nome da Rosa ou de qualquer desses bestsellers que romantizam as proezas dos templários. Justamente esta ermida, que remonta aos inícios do século XIII, terá sido parte de uma abadia templária, posta ao serviço dos peregrinos na ligação do Caminho Frances (para Santiago) com o castelo da ordem construído na vizinha Ucero.

A Ermita de San Bartolomé, dizem os místicos, está decorada com símbolos esotéricos, nomeadamente uma roseta de seis corações entrelaçados, similar ao judaico Selo de Salomão. Mesmo se toda esta semântica não passar de fantasia, o edifício protogótico é um espanto, sobretudo dramático quando contracena com uma falésia abrupta, rasgada por uma caverna monumental. Seria um dos centros do mundo, onde se comunicava com o para lá e se praticavam rituais pagãos desde a Idade do Bronze. De resto, segundo as mesmas fontes esotéricas, a ermida, que antes pertencia a abadia de San Juan de Otero, terá sido construída em sintonia com outros dois templos, que se alinham frente a Soria, na outra margem do rio Douro.

Hoje ainda o melhor que tem Soria para oferecer em termos patrimoniais não esta na cidade propriamente dita, mas nessa outra margem, emoldurada por choupos e dominada pelos edifícios ligados as ordens religiosas que favoreceram a reconquista no século XIII. E o caso de San Juan do Douro, complexo edificado pelo Hospitalários de Jerusalém, atual Ordem de Marta, do qual se conserva a igreja e sobretudo as ruínas de um amplo claustro irregular, porticado e profusamente decorado, que e uma das maravilhas do românico de fatura ibérica (a quarta, segundo a votação popular dos espanhóis em 2008).

Seguindo na mesma margem do Douro para nascente, dois quilómetros mais a frente encontra se o mosteiro templário de San Polo, um edifício imponente, mas também privado, onde por enquanto só funciona uma quinta agrícola. Mais um par de quilómetros na mesma direção fica a Ermita de San Saturio, incrustada nas alturas de uma falésia íngreme, que cai a pique sobre o rio. Outro edifício de perfil dramático, desta feita erguido na época barroca, assenta sobre a gruta onde terá vivido o santo padroeiro de Soria, que lhe da nome.

Castelos-fantasma

Comparadas com estes postais de encanto ribeirinho, as cidades maiores da região fazem fraca figura. As igrejas góticas de Santa Maria e San Juan são os principais pontos de interesse em Aranda, ao passo que Soria vale sobretudo pela igreja românica de Santo Domingo, pela rococó Santa Maria del Miron e pelo renascentista Palácio dos Condes. Mais interessantes, porem, são as aldeias e os vilarejos disseminados pela imensidão castelhana, que parecem congelados num momento de gloria, algures num passado distante. Sítios em geral bem conservados, onde hoje vive pouca e cada vez menos gente. Dir-se-ia que só abrem aos fins de semana e em horário de museu.

Iluminação privilegiada desse brilho espectral e Penaranda de Duero, que fica cerca de 20 quilómetros a oriente de Aranda. Aldeia fortaleza celta na fundação, tornou se depois num baluarte da Reconquista, do qual hoje se conserva uma esplêndida praça com cruzeiro de pedra, flanqueada por uma elegante igreja barroca e um monumental palácio construído em estilo gótico tardio, luxuoso e ultradecorativo. Há depois o colar de castelos e de fortalezas estrategicamente disseminados pela fronteira natural representada pelo rio Douro, erguidos e disputados por muçulmanos e católicos, ao longo de toda a Idade Media.

Em Gormaz vai poder ver 1200 metros de muralhas com 21 torres. É a herança muçulmana do século X.

Maior alcáçova de fatura muçulmana na Europa, construída no século X, Gormaz e ainda hoje uma visão impressionante. São 1200 metros de perímetro amuralhado, pontuados por 21 torres ameadas, reinando sobre a hoje completamente desertificada vila aos seus pés. Menos majestosos, mas também dignos de visita são os vizinhos castelos de Berlanga e de Calatanazor.

Ver castelos e fortalezas imponentes, erguidos no alto de terras atualmente abandonadas, causa estranheza, uma estranheza porventura mesclada de deslumbramento. O tipo de mistura que se reconhece e e porventura ainda mais ostensiva em El Burgo de Osma, 12 quilómetros a oriente de Gormaz. Terra de província típica, agrícola e pacata, oferece depois a surpresa de uma catedral colossal, com uma volumetria e um recheio mais próprios a capital de um reino católico. Do românico ao barroco, passando pelo gótico, a catedral funciona como uma eloquente historia da arte, para mais suplementada da digníssima Plaza Mayor de Osma, já no estilo mais clássico do século XVIII e da antiga universidade da matriz renascentista.

O choque dos cogumelos

Paisagens ribeirinhas, mosteiros e castelos são atrações locais. Mas haverá mais para ver e sobretudo que fazer em Soria e vizinhanças? A maior parte da região parece mergulhada num estado de semissonambulismo, mas também e verdade que há desenvolvimentos interessantes, sobretudo no capitulo do micoturismo – uma área a meio caminho entre o lúdico e o gastronómico, que e seguramente uma mais-valia económica importante para uma província a beira da depressão. Onde há cada vez menos gente, as dependências bancarias e outros serviços não param de fechar, por outro lado crescem cada vez mais fungos. Ou melhor, há cada vez mais cogumelos e trufas – mas dos bons, ou seja, para colher, consumir e vender.

Isto significa, por exemplo, ≪reempacotar ≫ florestas inteiras sob a bandeira do micoturismo. Assim sucede no Pinar Grande, também conhecido como no 172 no Catalogo de Montes de Utilidade Publica de Soria. São 12 500 hectares de mancha verde, a maior parte ocupada por pinheiro bravo a mistura com pinheiro-manso e carvalho. Antes o negócio por estas paragens era a madeira e pouco mais, mas agora há um centro de interpretação no coração do Pinar Grande, onde se explica o básico sobre fungos de cerca de 700 espécies, muitos deles comestíveis, que anualmente frutificam nestes pinhais. Fornecem se dicas sobre onde procurar, como colher sem vandalizar, e sobretudo como evitar intoxicações alimentares.

O turismo em busca de cogumelos está a criar novos negócios na região

Os visitantes (na maior parte famílias em escapadelas de fim de semana outonal) podem depois tirar uma licença, pegar num cesto de vime e partir à caça de boletos e outras delicias micológicas. A crescente importância económica do setor implica não apenas a demarcação e regulamentação das áreas florestais onde os fungos são proeminentes mas também um investimento crescente nas técnicas de produção das espécies mais valiosas, neste caso das trufas negras.

O que Soria aprendeu com o Sul de Franca (e o Alentejo também poderia seguir o exemplo) e que o montado de azinho não serve apenas para produzir bolotas. Se as trufas nascem debaixo da terra onde crescem azinheiras e outros carvalhos, aparentemente sem regra, seguindo os caprichos da natureza, já empregando determinadas formulas químicas e sistemas de rega no tratamento dos solos a sua colheita fica praticamente assegurada. Algumas unidades de truficultura da província de Soria organizam sessões de demonstração das técnicas de plantação e de colheita do ≪diamante negro do bosque≫ com a ajuda de cães especialmente treinados para o efeito.


Guia de viagem

Documentos: cartão de cidadão ou passaporte
Moeda: euro
Fuso horário: GMT +1
Idioma: castelhano

Ir
A saída para Aranda de Duero fica no km 160 da Autovía do Norte, direção Madrid‑Burgos. De Aranda a Soria são 114 km na N‑122 com passagem por El Burgo de Osma.

Ficar

HOTEL TERMAL BURGO DE OSMA
Universidade do século XVI ao XIX, agora convertida num estabelecimento termal elegante. É magnífica a fachada plateresca, mas também o claustro porticado, entretanto coberto com uma cúpula envidraçada. Os serviços termais são um mimo, a cozinha e o bar também são muito agradáveis. Quarto duplo a partir de 105€.
CALLE UNIVERSIDAD, 5, EL BURGO DE OSMA, SORIA
TEL.: +34 975 34 14 19
castillatermal.com

EL LAGAR DE ISILLA
Quinta vinhateira em plena zona demarcada de Ribera del Duero, mais concretamente em El Vid, que fica a 18 km de Aranda na direção de Soria. Em tempos houve aqui uma pousada, agora reconvertida num boutique-hotel de enoturismo pela família Zapatero Pinto (ver ficha do restaurante com o mesmo nome em Aranda). O edifício de arquitetura neocolonial tem 21 quartos temáticos, todos diferentes uns dos outros. Comungam, porém, do estilo de decoração pós moderna, girando em torno do imaginário vitivinícola. Tem restaurante, loja gourmet e adega premiada, que se visita e onde se fazem provas de vinhos. Quarto duplo a partir de 80€
EL VID
TEL.: +34 947530434
lagarisilla.es

PARADOR DE TURISMO ANTONIO MACHADO
Da imponente fortaleza medieval que guardava Soria, no alto do penhasco sobranceiro à cidade e ao rio Douro, não resta mais do que uma ruína informe. O lugar é mesmo assim o melhor miradouro das redondezas e por isso lá construíram a unidade local da prestigiada cadeia hoteleira espanhola dos Paradores de Turismo. Quarto duplos a partir de 90€
PARQUE DEL CASTILLO, S/N SORIA
TEL.: +34 975240800
parador.es/es/paradores/paradordesoria

Comer

BALUARTE
Espaço moderno, encaixado num antigo palacete da Baixa de Soria. É dirigido pelo jovem chef Óscar García, que pratica uma cozinha contemporânea, solidamente apoiada nas tradições e nos produtos da estação da região soriana. Combinações notáveis e por vezes surpreendentes (sempre que possível incluindo cogumelos e trufas negras), justa relação qualidade preço, o melhor restaurante na cidade. Menu de degustação: 50€
CALLE CABALLEROS, 14, SORIA
TEL.: +34 975 21 36 58
baluarte.info

EL LAGAR DE ISILLA
Restaurante e caves históricos, que remontam ao século XV, em plena rua principal de Aranda. Há muito explorado pela família Zapatero Pinto, o restaurante tem por especialidades o borrego de leite assado em forno de lenha (200º C, 1h 45m) e o leite-creme, servidos às mesas da sala dos fundos, sendo que no longo balcão da entrada também se podem experimentar algum dos 450 vinhos de Ribera de Duero que a casa tem em stock. Para além das delícias mencionadas, o menu castelhano inclui sopa, café e meia garrafa de vinho da casa. As labirínticas caves no subsolo estão parcialmente convertidas em museu e às vezes também servem de cenário a concertos e outros eventos. Menu a 35€
C/ISILLA, 18, ARANDA DE DUERO
TEL.: +34 947 51 06 83
lagarisilla.es

LA LOBITA
Elena Lucas costuma dizer que a sua cozinha é inspirada em recordações de infância, sobretudo no imaginário da floresta. O seu restaurante ostenta orgulhoso o rótulo de «micológico» e é o único na região classificado com uma estrela Michelin. Só para abrir o apetite mesmo ao lado há um Centro Micológico que exibe fungos de todas as formas e feitios. Menus a partir de 48€.
AV. DE LA CONSTITUCION, 54, NAVALERO
TEL.: +34 975 37 40 28
lalobita.es

LA CANDELA
Espaço moderno, ambiente convivial, meio restaurante de refeições ligeiras, meio sítio para ir beber copos aos fins de semana.
CALLE CORTES DE SORIA, 1, SORIA
TEL.: +34 975 24 04 00
restaurantelacandelasoria.com

LA CEPA
Uma das melhores moradas em Soria para fazer uma refeição de tapas entre o tradicional e o mais arrojado.
CALLE CORTES DE SORIA, 1, SORIA
TEL.: +34 975 24 04 00
lacepa.com

LA CHISTERA
Taberna tradicional, no coração de Soria, sempre animada e cheia até ao meio da rua, sobretudo aos fins de semana. Da sua cozinha saem excelentes torresmos (ganhou o concurso O Melhor Torresmo do Mundo em 2016) e às vezes tem espetáculos de teatro.
CALLE ALBERCA, 4 BAJO, SORIA
TEL: +34 975 21 29 36
lachistera.es


Reportagem publicada originalmente na edição de novembro de 2017 da revista Volta ao Mundo.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.