Este é o ano para visitar a Varsóvia. Comemora-se o Centenário da Independência da Polónia e está mais do que na hora de descobrir uma das capitais mais vibrantes da Europa.

Texto de Ricardo Santos
Fotografias de Maria João Gala/Global Imagens

O mar está a trezentos quilómetros, mas eles parecem tirados de uma estância balnear nas Caraíbas. É sábado à tarde à beira do rio Vístula, em Varsóvia. Está sol e as cadeiras estão abertas na areia de uma das margens da praia fluvial. O guarda‑sol faz sombra à geleira de onde já devem ter saído mais de meia dúzia de garrafas de cerveja. A menos de vinte metros, um grupo de adolescentes, agarrados aos telefones, ouve e dá música para todos. Eles em tronco nu, elas de calções e parte de cima do biquíni.

A cruzar o rio, duas pontes, uma de ferro por onde passa o comboio, outra de betão cruzada pelos automóveis. Há cães a correr atrás de outros, há quem jogue raquetas e quem prepare o churrasco com a vegetação como cenário. Chegam carros cheios de gente e de embalagens de salsichas para grelhar. Na outra margem, o ambiente é mais familiar, mas é deste que a vista compensa. O desenho dos prédios da capital polaca começa a ganhar silhueta com o adeus do Sol. Habitação social, arquitetura da Cortina de Leste, palácios, arranha‑céus, blocos de apartamentos de luxo, centros comerciais, avenidas largas, néons, vida. E pensar que, durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 85 por cento de Varsóvia foi destruída.

Não tem sido fácil a história da capital polaca – e do país – no século XX. Depois da ocupação alemã (de 1939 a 1945) veio o período comunista, que durou até 1989. Nesse ano, Agneska tinha 26 anos e destruía estátuas do comunismo. A história da família mete fugas aos nazis, morte, campos de concentração alemães, protesto e superação. Hoje é guia turística, vai contando, em inglês e francês, episódios e curiosidades à medida que descobrimos a cidade, mas deixa o aviso: «Estou pronta para destruir mais estátuas se o caminho da Polónia for novamente o totalitarismo.»

A Varsóvia do século XXI é uma lição para quem a destruiu no passado. Entre o orgulho e a modernidade, esta é uma capital a que não se fica indiferente.

Deixamos a margem do rio e entramos no coração de Varsóvia. Estacionamos frente ao edifício mais polémico da cidade – o Palácio da Cultura e da Ciência. É uma marca na paisagem urbana, mas ainda maior golpe na psique dos habitantes locais. A construção deste presente do povo soviético – através do então líder Josef Estaline – começou em 1952. Quando o edifício com 237 metros de altura ficou concluído (três anos mais tarde), já o secretário‑geral do PC da URSS tinha morrido. Ficaram os mais de 3200 quartos e a abreviatura PkiN (Palac Kultury i Nauki), que rapidamente derivou para Pekin. Outros nomes – daqueles aceitáveis – que ainda hoje lhe chamam: Pajac (palhaço em polaco), Seringa de Estaline (graças à antena) ou o Bolo de Casamento Russo, fruto da arquitetura do realismo socialista.

Agneska leva‑nos para a tribuna frontal ao palácio. «Era aqui que ficavam os dignitários do Partido dos Trabalhadores. No desfile do 1º de Maio, milhares de pessoas enchiam esta avenida.» Fala sem saudade. Hoje, o Pekin é um dos símbolos da cidade e transformou‑se num centro de exposições, complexo de escritórios, tem seis cinemas, quatro teatros, dois museus, bares, piscina, auditório com capacidade para três mil pessoas e uma universidade que funciona nos 11º e 12º andares. Mais acima, no 30º, está o miradouro, 114 metros acima do solo. É dali que se tem uma das melhores vistas da cidade.

Agneska tem uma filha de 27 anos, Anna. Tem a mesma profissão da mãe e é fluente num português açucarado que vem de ser casada com um brasileiro. Joga futebol americano e conta‑nos essa sua faceta desportiva no Parque Lazienki, oitenta hectares em plena Varsóvia. Não é de estranhar, um quinto da cidade é ocupado por zonas verdes. Famílias, casais e crianças, estão estendidos na relva. Também por lá estão grupos de turistas, nacionais e estrangeiros.

Aos domingos, a multidão junta‑se em redor da estátua dedicada a Fryderyk Chopin (1810‑1849). Às 12h00 e às 16h00, com a duração de uma hora, homenageia‑se, ao piano e com alma, o compositor polaco. É assim desde 1959, de maio a setembro. No resto do ano, o clima não permite aventuras ao ar livre. «A estátua é como a história atormentada da Polónia. A figura do pianista está sob um salgueiro, ao vento, os galhos parecem uma águia branca, a águia da Polónia. O monumento original foi destruído pelos nazis. É triste pensar que os nossos monumentos serviram para causar a morte ao nosso povo», diz Anna, referindo‑se ao uso do metal das estátuas para o fabrico de armamento.

Varsóvia também é uma viagem para quem gosta de comer e de beber. Dos restaurantes tradicionais aos mais modernos, da comida de rua aos mercados, há sempre uma opção para cada carteira. A Rua Nowy Swat é uma das principais artérias. Tem restaurantes, bares, lojas e movimento de pessoas para um e outro lado. Panquecas de batata com cogumelos silvestres, truta assada, pato com molho de laranja e arandos, blinis com salmão, saladas de queijo, peixe marinado em vinagre, sopa fria de beterraba, dumplings de batata com pato e cebola caramelizada, rábano fermentado, bife tártaro com foie gras, enguia fumada, vitela com aveia, cheesecake de frutos do bosque ou strudel de maçã fazem parte das ementas.

Os vegetarianos que se acalmem – Varsóvia já foi considerada a terceira cidade mais simpática para vegans e pudemos comprová‑lo. Com ou sem peixe e carne, são pratos que podem ser sempre bem acompanhados por cerveja, claro, mas também pela inquestionável vodca polaca. E esse é outro mundo que acabamos por visitar, o da bebida destilada mais consumida no país. Patrick é barman e trabalha, entre outros clientes, para a Associação de Vodca Polaca. «Este é um amigo para todas as ocasiões», diz‑nos. «Já foi remédio, era fabricada por monges e, a partir do século XVI, qualquer pessoa a podia produzir.» O especialista traça um retrato do produto, caraterizando o povo, os ingredientes, o terroir e a cultura. Conta‑nos das vodcas caseiras, com frutos e ervas e estabelece três regras fundamentais para tirar o máximo partido desta bebida: «Ter boa companhia, a vodca estar a uma temperatura entre os seis e os oito graus e ter sempre um copo de água à mão.» Seguimos os preceitos e dedicamo‑nos às provas.

À mesa, Varsóvia também enche as medidas. Sabores fortes, como o rábano ou a beterraba, combinam-se com carne de aves. E há sempre uma cerveja por perto.

Patrick idealiza um cocktail, a que chama O Sonho, enquanto nos fala de batata, centeio e trigo, alguns dos cereais com que a bebida é produzida, e deixa espaço para uma novidade. Na primavera de 2018 vai abrir o Museu da Vodca Polaca. Faltam pouco mais de três meses para a inauguração deste espaço na zona de Praga, bairro de Varsóvia – o mesmo local onde decorre a ação do filme de 2002 O Pianista, de Roman Polanski.

É tido como o lugar onde terá nascido a vodca polaca e aqui funcionou uma das mais antigas destilarias do país. O museu vai ser também um espaço aberto a eventos, com auditório, área de exposição onde se ficará a conhecer a história do produto, as técnicas e o papel social desta bebida que – nunca se pode esquecer – deve ser consumida com moderação. E é animados pela boa notícia, e pelo cocktail, que aproveitamos para conhecer a área onde irá funcionar o museu, aquela que tem nome de capital checa.

Praga é o bairro mais cosmopolita, onde embaixadores e expatriados convivem. Lá estão os bares, os edifícios recuperados e uma antiga zona industrial que os hipsters adoram. David é norte‑americano, neto de açorianos da ilha de São Miguel, e está à frente de um museu peculiar, o Museu do Néon. «Os néons ajudaram ao fim do comunismo», diz. A questão explica‑se facilmente e com as palavras deste residente em Varsóvia: «Qualquer loja ou estabelecimento comercial podia ter um néon pago pelo governo, durante o período do comunismo. E isso levou o Estado à falência, porque toda a gente quis um.» A dada altura, estima‑se que Varsóvia tenha tido o equivalente a 300 mil quilómetros destas luzes, com as mais diversas formas, cores e objetivos. Hoje, na Soho Factory, o museu apresenta uma coleção de duzentos néons originais que ocuparam as fachadas mais emblemáticas da cidade no período da Cortina de Ferro.

Terminamos o dia no Nocny Market, um mercado noturno com comida do mundo para públicos que querem ser mais sofisticados. Acontece três vezes por semana, de sexta a domingo, e combina, além da alimentação, música, passagem de modelos, espaços de barbearia e de venda de roupa. É frequentado por gente entre os 20 e os 40 anos, polacos e não só, que procura cerveja fresca, pratos asiáticos e dois dedos de conversa. Foi Monika quem lá nos levou.

Esta polaca esudou em Miranda do Douro no início do século XXI e mantém um sotaque do Norte no português que continua a falar de forma quase perfeita. É guia para viajantes polacos um pouco por todo o mundo. Já levou grupos à África do Sul, Islândia ou Vietname, mas continua com saudades de Trás‑os‑Montes, da posta mirandesa, do vinho e das pessoas.

 

A destruição tomou conta de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, mas a Cidade Velha tem um encanto como poucas no mundo. É lá que visitamos a Igreja de Santa Ana, um dos locais mais procurados para casamentos na capital da Polónia. Além da beleza do espaço, a igreja tem uma torre de onde se vê a parte antiga (reconstruída) no seu esplendor. Da fotografia oficial também faz parte o rio Vístula e o jardim zoológico, que serviu de porto de abrigo para quem fugia aos nazis durante a guerra. Deu direito a filme, em 2017, O Jardim da Esperança.

A praça principal também está no enquadramento e, mesmo lá do alto, é possível ouvir o violino e a guitarra dos músicos ambulantes. Se Viena é clássica, Varsóvia é rock sinfónico. Já com os pés no chão, caminhamos até ao Teatro Nacional, passamos por lojas e galerias de arte, parques e bancas de rua onde se vende a música de Chopin. Depois da estátua de Copérnico, o astronómo e matemático polaco, damos de caras com a Igreja de Santa Cruz, onde está sepultado o coração do compositor. Ali bem perto da banca com os seus CD.

No dia a seguir ao Natal de 1939, Adam Czerniakow escreveu no diário: «À noite, leio muito, constantemente a invejar todos os heróis dos meus romances porque todos eles viveram em épocas diferentes, numa época diferente.» Adam vivia no gueto de Varsóvia. As deportações para Treblinka começaram em julho de 1942. Nesse verão, mais de 300 mil pessoas foram enviadas para o campo de extermínio. Quantificar a morte, este tipo de morte, nem deveria ser possível, mas uma visita a Varsóvia nunca poderá ficar completa sem levar esta chapada na cara, este murro no estômago. Aqui vivia o maior número de judeus da Europa, daí a existência de um museu que lhes é dedicado – o POLIN, Museu da História dos Judeus Polacos. Localiza‑se onde existiu o infame gueto e mostra‑nos a história dos mil anos de presença judaica no território que é hoje a Polónia.

O Museu dos Judeus Polacos é um dos locais a visitar na cidade. Há mais de mil anos que essa religião está presente no território e são muitos os vestígios para descobrir.

No primeiro de agosto de 1944, cerca de 300 mil pessoas morreram em Varsóvia. Rebelaram‑se contra a barbárie e pagaram por isso. Hoje, um museu com mais de três mil metros quadrados de área exibe cerca de 800 itens e 1500 fotografias e gravações desses tempos terríveis. As formas de luta contra o invasor e a brutalidade encontrada estão presentes neste espaço dedicado à Revolta de Varsóvia, ao levantamento popular que aconteceu nesse fim de tarde de agosto há 74 anos.

Regressamos uma vez mais ao Vístula. Desta vez à noite. A marginal convida a caminhar. As emoções dos dias, as histórias, os testemunhos, o horror e a superação de quem cá viveu, o despertar do país, o progresso, tudo continua a mil na cabeça. O som dos bares e das discotecas mistura‑se com o das conversas das pessoas que passeiam entre pontes. Diz a lenda que o pescador Wars conheceu por aqui a sua mulher, Sawa. Ele homem, ela sereia. Encantaram‑se um pelo outro e nunca mais ninguém os conseguiu separar. Assim terá nascido Warszawa, o nome original de Varsóvia. Com sorte, talvez alguma das conversas cruzadas seja ainda entre eles. E teriam tanto para dizer sobre aquilo por que a sua cidade ‑ e a sua gente – teve de passar.


Guia de viagem

Moeda: zloty (PLN ). 1 euro ‑ 4,2 PLN
Fuso horário: GMT+1 horas
Idioma: polaco

Ir

Há várias companhias a fazer a ligação entre Portugal e a capital polaca. Entre elas, a TAP, com preços a partir de 142 euros por pessoa, ida e volta.

Visitar

Palácio da Dultura e da Ciência
Visita obrigatória. Repleto de simbolismo, é o presente da URSS para a Polónia, com todo o significado inerente. Hoje é centro cultural e poiso de lazer, diversão noturna e eventos. Do 30.º andar, onde se situa o miradouro, a vista é abrangente.
Praça Defilad, 1
Telefone: + 48 22 656 7600
pkin.pl

Museu da História dos Judeus Polacos
Bem no centro de Varsóvia, onde se localizava o gueto da cidade. Conta a história da presença milenar judaica no território.
M. Anielewicza, 6
Entrada: 6 euros
polin.pl

Museu Warsaw Rising
A revolta de 1944 continua a ser um acontecimento marcante para os polacos. Este museu é prova disso, um espaço interativo que recorda esses dias trágicos de uma forma sublime.
Grzybowska, 79
Tel: +48 22 539 7937
Entrada: 5 euros
1944.pl

Parque Lazienki
Zona verde de 80 hectares no centro da cidade, com edifícios históricos e áreas de lazer.
Av. Ujazdowskie
Entrada gratuita
lazienki‑krolewskie.pl

Comer e beber

Kita Koguta
Bar de cocktails da moda, com ambiente informal e bem frequentado. Perto do centro e de zona de hotéis. O nome significa rabo de galo e a decoração tem ligações a esse universo. Encerra à segunda.
Krucza 6/14
Tel: +48 512 307284
kitakoguta.pl

Warszawa Wschodnia
Em plena Soho Factory, na zona de Praga, área industrial recuperada que se tornou trendy nos últimos anos. Pratos de autor confecionados pelo chef Mateusz Gessler e menus de almoço simples, mas sofisticados. O espaço é um desafio arquitetónico e vale a experiência. Mesmo ao lado, fica o Museu do Néon. Aberto todos os dias.
Mińska 25
Telefone: +48 22 870 29 18
Preço médio: 30 euros
mateuszgessler.com.pl

Mercado Koszykach
Espaço comum a vários restaurantes e bares, com ofertas variadas de restauração. Cozinha polaca em destaque, mas também oferta mediterrânica e internacional. É procurado por famílias e jovens com poder económico que aproveitam igualmente os eventos, exposições e concertos que ali se realizam.
Koszykowa 63
koszyki.com


Reportagem publicada originalmente na edição de março de 2018 da revista Volta ao Mundo (número 281).

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