Uma história de amor e de arte na capital húngara. Retomando os passos do companheiro de uma vida da pintora Maria Helena Vieira da Silva.

Texto de Ana Sousa Dias
Fotografias de Adelino Meireles

É sabido, a cidade é belíssima, recheada de tesouros e composta por três núcleos que em tempos se diferenciavam mas hoje são uma capital: Buda, Peste e Obuda. Deambular por Budapeste é fazer uma viagem a um tempo de império, num reconhecimento de coisas que só sabemos de livros, filmes, fotografias, música. Por exemplo, uma pessoa entra na Igreja Mathias, no Castelo de Buda, toda ela esplêndida, e percebe que estão ali séculos de história e de histórias, de poder e de ocupação, de arte construída sobre riquezas, religiões e culturas sucessivas.

Imprescindível templo de uma religião de outro tipo é a Academia de Música Lizt, a casa do compositor com os pianos onde compunha, os móveis e objetos que diariamente usava. A música está por todo o lado, faz parte do ADN daquele povo de língua fechada ao resto do mundo. Símbolo de poder é o excessivo Parlamento, um edifício tão desmedido que só metade é utilizado para as funções parlamentares e o restante fica para conferências e visitas turísticas, para podermos admirar os interiores majestosos e os objetos preciosos sob o olhar rigoroso de guardas estáticos.

Umas centenas de metros abaixo, à beira do Danúbio, o brutal, comovente e simples memorial das 3500 pessoas mortas a tiro, os corpos deitados à água, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945, pelas milícias do partido fascista húngaro. Ao longo de quarenta metros, sessenta pares de sapatos feitos de ferro, em desalinho, réplicas dos que homens, mulheres, crianças, foram obrigados a descalçar antes do tiro fatal, quando os Aliados estavam perto de chegar a Budapeste.

À beira do Danúbio, o brutal, comovente e simples memorial da 3500 pessoas mortas a tiro, os corpos deitados à água. Sessenta pares de sapatos feitos de ferro, em desalinho.

E há os banhos, por todo o lado mas em especial aqueles gigantescos onde se joga xadrez com água pelo peito e as águas quentes surgem das maneiras mais bizarras. E a enorme pista de gelo municipal onde patinam milhares de pessoas de todas as idades, aproveitando os dias mais frios. E as avenidas largas, e os edifícios imponentes, e os cafés brilhantes de dourados, entre chás, bolos requintados e pianistas discretos.

E porque tudo isto já foi escrito, descrito e reescrito, o que procurámos em Budapeste foi o rasto de um húngaro que passou tangencialmente por nós e que no entanto marcou a nossa história da pintura. O homem que viveu uma fulgurante, intensa e duradoura história de amor com Maria Helena Vieira da Silva, dois bichos da pintura que o Portugal de Salazar rejeitou. Arpad Szenes, o húngaro que em 1928 se cruzou em Paris, na Academia da Grande Chaumière, com uma pequena rapariga de olhos expressivos e comentou com um amigo: «Conheci uma jovem ibérica muito interessante.» Ele nem sabia bem o que era esse país chamado Portugal.

Arpad Szenes, ou Szenes Arpad se dissermos o nome na língua original (na Hungria diz‑se primeiro o apelido e depois o nome próprio, e quem tem cartão‑de‑visita para dar a estrangeiros tem de um lado o nome assim, do outro o nome ao contrário), tinha chegado poucos anos antes de Budapeste, já artista na sua terra e portador de uma carta de recomendação para Picasso. Conversaram um pouco, ele deu‑lhe conselhos sobre pintura – disse‑lhe que devia desenhar figuras maiores, a ocupar mais superfície no papel. Regressou por mais de um ano ao país natal enquanto ela ficava em Paris, sempre acompanhada pela mãe. Não tinham trocado moradas nem sabiam bem os nomes um do outro. Depois ele voltou e passado pouco tempo estavam casados. «A mãe dela exigiu», contou ele mais tarde.

O que procurámos foi o rasto de um húngaro que passou tangencialmente por nós e que marcou a nossa história da pintura.

Nesse regresso à capital francesa, ele levou na bagagem os desenhos que tinham ficado na casa materna. Mas não recuperou as pinturas que tinha deixado na casa de artistas onde vivia, como forma de pagar as dívidas acumuladas. O que guardou, e hoje está na Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva, em Lisboa, são desenhos da infância e da adolescência, desde os 4 ou 5 anos.

O que há hoje de Arpad Szenes na Hungria, tantas décadas depois de ter deixado o país onde nasceu em 1897? Pouca coisa, disseram vários especialistas quando coloquei a questão. Mas é seguro que existe uma coleção de quarenta desenhos do casal no Museu de Belas-Artes, onde se realizou uma exposição de retratos de ambos em 1999. Não estão expostos habitualmente e, aliás, o museu está em obras desde 2015 e até ao final do próximo outubro, tendo o essencial da coleção exposto na Galeria Nacional do Palácio Real, do lado de Buda. Mas a historiadora de arte Krisztina Passuth garante que há quadros de Arpad e de Vieira na posse do museu. Ela própria conheceu o casal em Paris, onde também viveu.

Já voltamos a esta académica que tem muito que contar, com quem nos encontrámos no Museu Kassák, mas vamos antes sair do centro da cidade, dirigidos pelo responsável do Instituto Camões em Budapeste, João Henriques, em direção à vivenda rodeada de neve onde mora Edit Kurucz, viúva do jornalista e escritor Gyula Kurucz (1944‑2015). Edit, que só fala húngaro e alemão, espera‑nos com café e bolos, e tem com ela a filha Orsolya que será a tradutora da conversa.

A historiadora de arte Krisztina Passuth garante que há várias obras de Arpad e Vieira no museu de belas-artes de Budapeste.

Mas mesmo antes de começarmos a conversar já estamos de boca aberta, os três portugueses – João Henriques, o fotógrafo Adelino Meireles e eu – porque as paredes da ampla sala estão cobertas de quadros e entre eles são absolutamente identificáveis vários de Arpad e de Vieira da Silva. Não são peças grandes, mas uma delas, ao baixo, é uma das poucas que ele pintou naquele formato.

«Arpad tratava o meu marido como o filho que não tinha tido», conta Edit, que está emocionada com as recordações do tempo em que Gyula estava presente. A amizade começou um dia quando este último passeava por Paris e viu um nome húngaro na montra de uma galeria de arte. Entrou: estava a ser inaugurada uma exposição de Arpad. Iniciaram assim um diálogo que se prolongou por muitos anos.

Existe uma longa e preciosa entrevista que Kurucz fez a Arpad e que se revelou um pesadelo para o autor: a gravação foi apagada antes de ser transcrita, e Gyula teve de escrevê‑la de memória, porque só deu por isso quando já estava de regresso a Budapeste. Nesse longo texto, que a incansável Emese Rasztovitch, da Embaixada da Hungria em Lisboa, me cedeu, Arpad conta a vida desde a infância. Revela até que teve um filho, aos 16 anos, de uma namorada um ano mais nova, mas que o pai o proibiu de falar da criança à mãe.

Tragicamente, o menino morreu ao 3 anos sem a avó chegar a conhecê‑lo. Arpad não teve mais nenhum filho e daí que Edit tenha referido que ele nunca tinha sido pai. Na mesma entrevista, ele conta que só não combateu na Primeira Guerra Mundial, na frente italiana, para onde estava mobilizado, porque o pai morreu em 1915 e ele, que era militar de cavalaria, ficou a fazer trabalho administrativo para poder apoiar a mãe.

Edit conheceu mal Maria Helena, não só porque estiveram juntas poucas vezes mas sobretudo porque não partilhavam nenhuma língua. Maria Helena não falava alemão, Edit não falava francês. Mas estiveram juntas em França, quer em Paris quer na casa de campo dos pintores, em Yèvre‑le‑Châtel, no Loiret. Ela e o marido fizeram uma entrada elegantíssima, no fim da viagem de uma centena de quilómetros entre Paris e esta casa denominada Maréchalerie. Levavam um faisão que, despreocupado, se tinha atravessado à frente do carro num campo de trigo. Manuel, o cozinheiro português – conta Edit que ali todo o pessoal era português –, preparou um memorável petisco com o desgraçado animal.

Mas na vivenda de Kurucz não é só na sala que se encontram desenhos ou aguarelas dos dois pintores. Há‑os nos quartos, nos corredores, há até um na parede ao lado da porta da cozinha. A dado momento, Edit vai buscar um álbum da obra de Arpad, e logo que o abre cai‑lhe no colo um cartão assinado por Vieira da Silva. «Avec amitié». A data era já posterior à morte de Arpad, em 1985. Edit insiste em dar‑nos mais bolos, tradicionais da região, e a filha explica o acaso que deu a conhecer a existência de todas estas obras a uma das pessoas mais interessadas no reavivar da ligação de Arpad à Hungria: Klara Breuer, a embaixadora daquele país em Lisboa.

Orsolya faz parte do gabinete do primeiro-ministro Viktor Orbán, como responsável pelos assuntos europeus, e estava em Lisboa numa visita oficial quando, num intervalo dos trabalhos, a levaram ao Museu Gulbenkian. Ao ver pinturas de Vieira e de Arpad, comentou: «Tenho quadros dele lá em casa.» «O que é que disse?», perguntou a embaixadora, perplexa. E Orsolya explicou.

Assim se desenvolveu uma troca de contactos que passou a envolver a diretora do Museu Arpad Szenes Vieira da Silva, Marina Bairrão Ruivo. E está em preparação, ainda sem data marcada, uma exposição dos dois pintores em Budapeste, talvez relacionada com uma eventual visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa à Hungria.

As obras existentes na casa de Kurucz poderão um dia ser expostas fora da residência, mas em primeiro lugar serão apreciadas por especialistas, assim o espera Marina Bairrão Ruivo. Mas noutro ponto da Hungria, longe da capital, em Hajdúszoboszló, terra famosa pelas águas termais, haverá um núcleo de obras oferecidas a um outro amigo húngaro de Arpad.É isto que conta a historiadora de arte Krisztina Passuth, a quem voltamos agora, no Museu Kassák, dirigido por Edit Sasvári: Arpad e o pintor Joseph Kadar (ou antes, Kádár József, nascido em 1936) eram grandes amigos e conviveram em Paris largos anos. Segundo a historiadora, Kadar recuperou muitos trabalhos que Vieira e Arpad deitavam para o lixo por não gostarem do resultado. E haverá ainda um outro conjunto de desenhos, deixado por um pintor que morreu recentemente, aos 105 anos, também amigo de Krisztina e de Arpad.

Krisztina, que fala francês fluentemente, recorda Arpad como um homem muito gentil. «Devo dizer que os dois eram muito simpáticos e o que me agradou muito é que Vieira adorava Arpad, o que não era compreensível para mim porque ela era a grande pintora, a mais conhecida, mas era tão modesta e simples.» Conta que o casal esteve em Budapeste depois do casamento, nos anos 1930, e que foi também à Transilvânia. E mostra‑me cópias de cartas que Kassák, o grande intelectual húngaro que fez parte do movimento Dada e teve uma forte influência na época, escreveu a Vieira e Arpad.

«A minha pintura embranqueceu ao mesmo tempo que os meus cabelos», escreveu Arpad.

Na opinião de Krisztina, poderia ser feita uma boa exposição de Arpad e Vieira no museu que fica mesmo ao lado do Kassák, onde estamos a conversar, e diz‑me o nome do museu, que é afinal o nome de um pintor que inicialmente não reconheço – Vásárhelyi Győző – dada a pronúncia magiar. Mas logo percebo que se trata de Victor Vasarely (1906‑1997), o pintor da op art que tão fortemente marcou os anos 1960.

Krizstina tem ainda uma informação para dar que me faz ter pena de ter de partir de Budapeste para Lisboa no dia seguinte. Diz que uma ex‑aluna dela fez um trabalho de mestrado sobre a obra de Arpad na Hungria, e mostra‑me fotografias e, finalmente, o índice desse documento: Introdução, os primeiros anos; Os anos 1930 sob o signo do surrealismo; A guerra; O pós‑guerra; Regresso a Paris; Tornar‑se conhecido; Contactos húngaros; Exposições retrospetivas; a Fundação ASVS; obras de Arpad Szenes nas coleções húngaras; A coleção de Kurusz; Fotografias de Joseph Kadar; Bibliografia.

E de tudo o que está escrito e de que percebo apenas alguns nomes próprios, a historiadora traduz uma frase de Arpad: «A minha pintura embranqueceu ao mesmo tempo que os meus cabelos.» E comenta: «Isto é bonito, ele sabia muito.»

Depois da sessão de fotografias e de uma visita ao Museu Kàssar, um poço de história da ação política e cultural, saímos para a tarde de Budapeste ainda a tempo de conhecer os banhos Széchenyi, em Peste, no Parque de Varosliget. As avenidas largas tornam mais legível a cidade e as linhas de metro são fáceis de entender. As informações que tínhamos colhido sobre Arpad na cidade onde nasceu eram muito mais do que alguma vez esperáramos, estávamos contentes ainda que com vontade de saber mais e mais.

Mas não podíamos deixar a Hungria sem experimentar as águas quentíssimas e mergulhar literalmente na exuberância um pouco louca das correntes de água e dos labirintos dos balneários interiores.


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