Natureza em estado puro, mergulhos na transparência esmeralda do Adriático, banho de cultura para os amantes da arte e da história, gastronomia agradável – uma viagem romântica num veleiro a fazer lembrar as aventuras de Corto Maltese… com todo o conforto do século XXI.

Texto de Rosa Ferreira
Fotografia de Sónia Araújo

A água é de um verde-esmeralda tão límpido que deixa ver o fundo até profundidades respeitáveis. As pedras são tão brancas que parecem acabadas de caiar. A paisagem natural é um colírio para os olhos. O património cultural, uma enciclopédia viva. O rendilhado da costa e a beleza das ilhas, tão diferentes umas das outras apesar da curta distância que as separa, completam o cenário e tornam inesquecível a visita à Dalmácia, a região da Croácia banhada pelo mar Adriático.

E para conhecer de perto as muitas atrações da costa dálmata (é verdade: os simpáticos cães malhados de preto e branco que inspiraram os filmes da Disney são mesmo originários daqui), nada melhor do que um cruzeiro. Mas de preferência longe das multidões impessoais nos paquetes mastodônticos dos cruzeiros massificados. A sugestão vai para um cruzeiro de oito dias que começa a cheirar a aventura logo no barco: a goleta Mendula.

É aqui que acodem à memória as imagens das bandas desenhadas de Corto Maltese. Trata-se de um iate clássico, um veleiro de dois mastros, com 36 metros de comprimento e 7,75 metros de largura, construído em 2012 e que, embora seja tão elegante, leve e manobrável como os seus antepassados dos séculos XVII e XVIII (caraterísticas que fizeram da goleta, ou escuna, a embarcação favorita dos piratas), oferece todo o conforto proporcionado pela tecnologia do século XXI aos ocupantes dos seus 16 camarotes [ver caixa].

O brinde que se seguiu ao embarque na Mendula, ao fim da tarde do primeiro dia de viagem, refresca e ajuda a relaxar após um voo cansativo, apesar da simpatia do pessoal de cabina da TAP (Lisboa-Frankfurt), da Croatia Airlines (Frankfurt–Dubrovnik) e da guia Lana, que nos acompanhou desde a chegada ao aeroporto. O capitão Denis Vukovic apresentou a tripulação e, pouco depois do jantar, foi hora de recolher ao camarote e dormir, que o corpo pedia descanso.

Festa da biodiversidade

Partida de Dubrovnik depois de um pequeno-almoço rico e variado. O casco afilado da Mendula serpenteava entre as escarpas alcantiladas e os bosques de pinheiros e ciprestes das pequenas ilhas do arquipélago de Elafiti, rumo a noroeste. Ao meio-dia, a goleta entrou no porto da ilha de Mljet e, no meio de um mar perfeitamente transparente, o almoço foi servido a bordo: risotto de polvo para entrada, lombo de atum com salada e legumes salteados e, à sobremesa, gelado.

A tarde foi dedicada a um passeio pelo Parque Nacional de Mljet, na parte ocidental da ilha, que só pode ser visitado a pé ou de bicicleta, ao longo dos trilhos assinalados. São 31 quilómetros quadrados de um autêntico festival de biodiversidade que se desenvolve entre a imensa floresta de pinheiros-de-alepo e de carvalhos-verdes – cuja preservação foi o motivo da criação do parque, em 1960. Uma das curiosidades é a colónia de mangustos, para ali levada no século XIX com o objetivo de controlar a população de cobras. Em pleno parque ficam o grande lago e o pequeno lago, ligados por um canal. No meio do grande lago, com acesso por barco, é possível visitar o Mosteiro de Santa Maria, construído no século xii para acolher monges beneditinos.

Da margem do grande lago até à localidade de Polace a caminhada revela uma sucessão de orquídeas, gladíolos e margaridas e o perfume da alfarroba e de muitas ervas aromáticas.
Ao início da noite, as energias foram recuperadas no restaurante Konobama, com peixe e marisco variados, regados com vinhos saborosos, sem esquecer um excelente cocktail quente-frio.

Perfume de lavanda

O ronronar dos motores fez as vezes do toque de alvorada – além das românticas velas, a goleta está equipada com modernos propulsores que lhe permitem navegar a uma velocidade de 12 nós (22,22 km/h). Eram seis e meia da manhã e a Mendula já sulcava o Adriático rumo a noroeste, em direção à ilha de Hvar, ao longo da costa montanhosa colorida do eterno verde das florestas vizinhas. Pelas 11 horas, o navio lançou âncora – e os mais corajosos saltaram para um mergulho nas águas calmas do Adriático. A princípio estava frio, mas depois de umas braçadas enérgicas já foi difícil convencer os banhistas a subirem a bordo.

A viagem prosseguiu até ao porto que dá acesso à cidade de Hvar, uma das mais procuradas pelos turistas que visitam a Croácia. E têm boas razões para isso, desde o constante perfume exalado pelos intermináveis campos de lavanda ao rico património arquitetónico, de que fazem parte a catedral renascentista de Santo Estêvão, ou o campanário e o palácio Hectorovic, do século XV, em estilo gótico veneziano. No primeiro piso do Arsenal funcionou o primeiro teatro de toda a Península Balcânica, em 1612.

A ilha de Hvar foi um dos cenários croatas (Dubrovnik foi o outro) da série televisiva Missing, um movimentado thriller com Ashley Judd, Sean Bean e Keith Carradine, exibida recentemente em Portugal.

A península de Hvar rivaliza hoje, quase taco a taco, com Dubrovnik. As razões do sucesso estão no perfume exalado pelos intermináveis campos de lavanda, mas também no património arquitetónico que lembra Veneza.

Como o vento no Adriático não é para brincadeiras, prevenido pela informação meteorológica da possibilidade de tempo borrascoso, o capitão decidiu jogar pelo seguro e alterou o plano do cruzeiro, levando a Mendula até à vizinha ilha de Brac, mais abrigada, onde passámos a noite, iniciada nas esplanadas da excelente doca.

À boleia da goleta

Esta viagem faz-se a bordo de uma típica goleta, um veleiro de dois mastros, com 36 metros de comprimento e 7,75 metros de largura, construído em 2012, que honra os seus antepassados mas somou conforto e mordomias.

Um mergulho na história

O dia seguinte amanheceu cinzento, a ameaçar temporal na rota que nos levaria a Split, mais a norte. Pouco depois, as previsões confirmaram-se: o mar, a início calmo, ficou alteroso e, mal chegámos ao largo, as ondas tornaram-se inseparáveis da Mendula.

O desembarque em Split foi feito debaixo de chuva, que continuou durante a visita à muralha, erguida no século III, e ao centro histórico da cidade favorita do imperador romano Diocleciano (244-311), que ali mandou construir o magnífico palácio onde passou os últimos anos de vida, após ter abdicado, em 305. Ele foi o primeiro imperador a abandonar voluntariamente o poder, ao fim de vinte anos de reinado. Introduziu importantes reformas políticas, económicas e administrativas (foi o criador da tetrarquia imperial que dividiu o Império Romano em duas partes, Ocidente e Oriente, cada uma governada por um Augusto, tendo como «número dois» um César) – mas ficou na História sobretudo por causa da feroz perseguição aos cristãos. Diocleciano acabou os seus dias de maneira pacífica, cuidando de hortas e jardins e gozando o luxo do palácio à volta do qual cresceria a cidade de Split, hoje declarada pela UNESCO Património da Humanidade.

No interior das muralhas, onde há casas de habitação ocupadas desde o século xii, é possível visitar tesouros da arquitetura como o antigo templo de Júpiter (hoje Batistério de São João), o peristilo, o portão de ouro (antiga entrada principal do palácio de Diocleciano) ou a Catedral de São Dómnio, além de várias outras igrejas, museus e galerias de arte. Muitos turistas adeptos do futebol costumam incluir no roteiro uma visita ao estádio do Hajduk Split, nos arredores.

Castelos e pedras da casa branca

Na manhã seguinte, como o tempo não estava de feição para navegar, a alternativa foi um passeio até Trogir, outra cidade Património Mundial, poucos quilómetros a oeste de Split, numa pequena ilha junto à costa. Fundada pelos gregos no século IV a.C., foi sucessivamente conquistada por romanos, bizantinos, muçulmanos, húngaros, venezianos, franceses e austríacos, até ser incorporada na Jugoslávia, onde se manteve (sofrendo a ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial) até à independência da Croácia, em 1991.

Ligada ao continente por uma ponte e à vizinha ilha de Ciovo por outra, a ilha amuralhada encerra a maior parte do centro histórico de Trogir, com acesso por dois portões: o portão da cidade, a seguir à ponte, e o portão do mar, balizado por um leão de São Marcos de pedra, símbolo da Sereníssima República de Veneza, que dominou a cidade durante séculos. Entre dois monumentos, ou durante um passeio despreocupado pelas ruas de Trogir, vale a pena parar nas inúmeras geladarias, pizarias, bares e restaurantes que animam as praças da cidade. São visita obrigatória a Catedral de São Lourenço, cuja construção foi iniciada no século XII, com uma porta em estilo românico e um campanário em gótico veneziano, onde se guardam pinturas e esculturas sacras de valor incalculável; o palácio Stafileo (século XV), em estilo gótico veneziano; a loggia e a torre do relógio (séculos XIV-XV), com uma estátua de São Sebastião; e, na ponta sudoeste da ilha, o castelo Kamerlengo, antiga residência do governador veneziano, com a grandiosa Torre de São Marcos (erguida em 1470), peça fundamental no dispositivo de defesa da cidade.

A título de curiosidade, os amantes de história que visitarem com vagar a Dalmácia não darão por perdido o tempo ocupado num passeio pela Baía dos Castelos (Kastelanski Zaljev), a faixa costeira entre Trogir e Split pontuada por sete castelos, construídos nos séculos XV e XVI para defenderem aquelas cidades dos ataques dos turcos.

Com ou sem a bênção da UNESCO, o certo é que este cruzeiro não deixa de fora um sem-número de cidades que se destacam pela envolvente paisagística, pelo seu encanto pitoresco e boa vida. É o caso de Split ou de Trogir.

Ao fim do dia, a Mendula rumou a sueste, de regresso à ilha de Brac, onde, na vilazinha de Pucisca – mundialmente famosa pela pedra branca da região (pedra de Brac), usada, por exemplo, na construção da Casa Branca, em Washington –, ocorreu o jantar com o capitão, momento alto de qualquer cruzeiro que se preze. Mas este não é um cruzeiro como os outros: ao longo dos dias da viagem, o capitão Denis Vukovic, todos os tripulantes e a guia Lana conseguiram criar um ambiente hospitaleiro, de simpatia e cumplicidade em que a informalidade quebrou o protocolo e os smokings e os vestidos de cerimónia acabaram postos de parte.

Marco Polo passou por aqui…

Após dois dias de chuva insistente, o sol voltou a brilhar sobre a costa da Dalmácia. Os motores deram sinal de vida logo pelas sete da manhã, rumo a sul, a caminho da ilha de Korcula (diz-se Korchula). Depois de um mergulho e umas braçadas em alto-mar e do almoço a bordo, a Mendula atracou no porto da cidade que dá nome à ilha, uma das maiores do Adriático, com 47 quilómetros de comprimento, e das mais montanhosas (o pico atinge os 560 metros de altitu- de). A entrada na cidade velha faz-se através de um portão fortificado (Kropnena Vrata) com uma torre imponente (Revellin), onde sobressaem as marcas da origem veneziana. O principal monumento é a Catedral de São Marcos, cujo tesouro, patente no vizinho palácio do Bispo, inclui quadros de Ticiano.

Mas a maior atração turística de Korcula são as ruínas da casa onde, segundo a tradição, terá nascido o grande explorador Marco Polo (1254-1324). Para os céticos, o facto de Marco Polo ter nascido no século XIII e as ruínas datarem de duzentos anos mais tarde não é o único motivo para duvidar da lenda…

Dubrovnik penou durante a guerra de independência da Croácia, entre 1991 e 1995, mas hoje, graças à ajuda da União Europeia e da UNESCO (ela já era Património Mundial antes da guerra), recuperou a alegria e o viço — deixando propositadamente vestígios da destruição para memória futura.

O Renascimento da Pérola do Adriático

Mergulho da amurada para um último banho de mar antes do almoço a bordo que antecedeu a chegada a TrogirDubrovnik e o fim do cruzeiro. A primeira visita – aqui com guia português – foi à impressionante muralha da cidade, totalmente reconstruída após a guerra de independência da Croácia, entre 1991 e 1995, que devastou a cidade. O restauro, com a ajuda da União Europeia e da UNESCO (o casco histórico da cidade já era Património Mundial antes da guerra), foi perfeito, mas deixou propositadamente vestígios da destruição para que não se perca a memória.

Os acontecimentos dolorosos do final do século passado são apenas os episódios mais recentes de uma história milenar, que teve a sua idade de ouro nos séculos xv e xvi, o auge do poder e da riqueza da cidade-estado de Ragusa (antigo nome de Dubrovnik). Este empório comercial, com uma frota de mais de quinhentos navios mercantes e de guerra, rival de Veneza e das outras potências marítimas da época, foi capaz de resistir como república independente, durante centenas de anos, à pressão dos ameaçadores vizinhos que se assenhorearam de praticamente toda a península Balcânica: os turcos. Conquistada pelos franceses, a República de Ragusa foi abolida durante as guerras napoleónicas, em 1808. Após a derrota de Napoleão, Dubrovnik e o resto da Dalmácia foram integradas no império austríaco e, pouco mais de cem anos depois, com a dissolução da monarquia austro-húngara a seguir à Primeira Guerra Mundial, na Jugoslávia. Mas os croatas nunca aceitaram de bom grado a primazia sérvia, inimizade aproveitada pela Alemanha e pela Itália durante a Segunda Guerra Mundial ao patrocinarem o efémero Estado Livre Croata, parceiro do Eixo. O longo período que se seguiu à tomada do poder pelos guerrilheiros comunistas de Tito (ele próprio croata) apenas escamoteou as rivalidades nacionalistas, que vieram à superfície após a morte do velho marechal, em 1980. Pouco mais de dez anos depois, a Jugoslávia desintegrou-se. A Croácia foi uma das suas herdeiras e, desde 1 de julho último, é o 28.º membro da União Europeia.

Hoje, Dubrovnik recuperou o esplendor que lhe valeu o nome de «pérola do Adriático». Além da volta pelas muralhas, com passagem pela torre Minceta e pelo Forte de São João, são pontos de paragem obri- gatória o Palácio do Reitor (supremo magistrado da velha Ragusa), do século xv, onde, durante o verão, decorrem muitos concertos de música clássica do Festival de Dubrovnik; a catedral e respetivo tesouro; ou a Igreja de São Brás. Alguns destes monumentos históricos serviram de cenário à cidade de Porto Real, na série de culto A Guerra dos Tronos.

A visita não fica completa sem um passeio pela Placa, a rua principal, animada por esplanadas, geladarias e lojas das grandes marcas internacionais (os restaurantes ficam nas ruas paralelas). Nas lojas de artesanato local há rendas e bordados e também corais – mas é preciso atenção porque aparecem à venda muitos «corais» falsos. Ao fundo da Placa, numa dependência do mosteiro franciscano, continua de portas abertas desde 1317 a mais antiga farmácia em funcionamento do mundo. Já fora das muralhas, o Lazareto é outro testemunho do papel pioneiro de Dubrovnik no campo da saúde pública: foi o primeiro lugar de quarentena para isolamento dos viajantes suspeitos de estarem infetados pela peste, o que permitiu salvar muitas vidas a partir de 1377.

A vida noturna é animada por espetáculos de luz e som e, com sorte, os visitantes podem ser brindados com um concerto de Klapa, a música tradicional da Dalmácia, cantada em coro a cappella (por vezes acompanhada com guitarra e bandolim). Para muitos turistas, a noite começa – e acaba – com um copo de marasquino, a bebida tradicional, um licor resultante da destilação de cereja amarga (foram encontradas duas garrafas de marasquino entre os destroços do Titanic). A companhia local, tanto masculina como feminina, é em geral hospitaleira e com um toque de elegância – ou não tivessem sido os croatas os criadores do acessório masculino mais usado em todo o mundo: a gravata.


Reportagem publicada na edição de setembro de 2013 da Volta ao Mundo. (número 227)

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