Passeio pelo centro de Helsínquia sem obrigação de estar a horas em qualquer lugar. Ninguém me espera, sou livre dos compromissos mais simples. Essa tranquilidade, adicionada a todos os corpos que passam sem olhar para mim, torna-me invisível. Como se me atravessassem, as pessoas não precisam de desviar-se, não dão qualquer sinal da minha presença. Com passos sucessivos, sem pressa, estendo o movimento longo da perna, sinto-me imaterial, como uma nuvem a pairar sobre os passeios do centro de Helsínquia. Sou feito sobretudo dos meus olhos.

Apenas o frio repara em mim. O frio chama-me desde longe e, logo a seguir, aproxima-se demasiado, entra por um ponto desprevenido – as frestas na manga do casaco, uma pequena mancha mal tapada pelo cachecol –, escorre-me por baixo da roupa, até me cobrir toda a pele, até ser uma segunda pele.

Frio? Pode sempre ser pior. Quando falei com finlandeses sobre o frio, responderam-me que poderia ser pior. E recordam histórias de invernos brancos, barbas geladas de manhã, motociclistas que ficaram com os olhos congelados por andarem sem capacete em janeiro.

Talvez seja por isso que os olhos dos finlandeses parecem feitos de gelo ou de vidro. Depois de algum tempo, depois de termos sido apresentados e nos termos encontrado algumas vezes, será possível fixarmo-nos nos olhos. Então, pode acontecer que a íris seja translúcida – cristal. Como a pele, como os cabelos das crianças, que não chegam a loiros, que são brancos e descoloridos. Os finlandeses parecem feitos de neve, como se guardassem no olhar, na pele, nos cabelos, uma reserva de luz. Irão usá-la aos poucos, gota a gota, durante o longo inverno, durante esses meses que parecem não ter fim – noites negras, dias turvos.

Os finlandeses parecem feitos de neve, como se guardassem no olhar, na pele, nos cabelos, uma reserva de luz.

Para mim, é cedo, mas já anoiteceu sobre o centro de Helsínquia. A noite é um frio negro que preenche os espaços, tudo o que pode ser inspirado e, logo a seguir, devolvido ao ar sob a forma de vapor. As pessoas são máquinas de vapor espalhadas pelas ruas da cidade. Neste instante, os elétricos passam e pertencem à mesma organização que, com cuidadoso equilíbrio, inclui também as luzes das lojas, tornadas muito nítidas pelo frio e por alguma solidão.

Não é difícil encontrar a solidão em Helsínquia. É subtil, pesa ligeiramente nos ombros. É a solidão da timidez: vejo-te a uma certa distância, poderia levantar a voz para chamar-te, mas não o faço. Fico aqui, com pena de não falarmos, de não podermos falar. No interior dos meus pensamentos, existe um mundo cercado pelo frio e pela noite, onde estou fechado. Quando já formos capazes de nos fixarmos nos olhos, no momento certo, poderei mostrar-to brevemente num sorriso cauteloso de sinceridade absoluta.

Nos passeios do centro de Helsínquia, sinto que também sou finlandês. Talvez esse seja um segredo que todos guardamos. Existe frio e noite no mundo inteiro, todos sabemos o que são. Por baixo do que usamos para nos cobrir, no fundo mais interior, talvez todos sejamos finlandeses.

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